Wednesday, August 29, 2018

Às vezes morremos







(Para o poeta Sérgio Xarepe, em Portugal)


Às vezes morremos pisoteados por multidões ensandecidas no sanatório das ruas de uma cidade em chamas.
Apagamo-nos, emudecidos, amordaçados por votos de silêncio, que são uma espécie de homilia lavrada de punho próprio.
É amarga a hóstia da culpa.
Somos asfixiados pelo laço da corda dos dogmas que adotamos, temos os joelhos dobrados, enquanto gangorreamos sobre um banquinho de fibra de vidro. 
Tombamos ao som de buzinas, motores de aeronaves que fazem rasantes sobre nossas cabeças cansadas, no limite do enlouquecer.
Findamos com os pulmões negros e enfumaçados.
Caímos de cirrose e sífilis, o fígado em frangalhos, os rins deteriorados e o pâncreas em petição de miséria.
 Carecemos de uma espinha dorsal de titânio e de uma pele mais grossa para resistir.
Às vezes, vamos murchando aos poucos, em conta-gotas, a desilusão diluindo no cadafalso dos dias.
Noutras, nos espatifamos rapidamente na curva de uma estrada perigosa ou desabamos no caos desenfreado de um leilão de misérias.
Finamo-nos dormindo, enfartados, sonhando com praias paradisíacas ou viagens num trem fantasma.

Às vezes nos matamos. 
Suicidamos sem overdose, sem acionar o gatilho ou acender o rastilho.
Somos assassinos silenciosos de nós próprios.
Covardes, sem o grilhão do remorso, somos uma legião de fracassados andando em círculos, sem jamais sair do lugar.
Rastejamos.
Homens-répteis.
Tornamo-nos criaturas insones de olheiras profundas, tristes caricaturas daquilo que nunca conseguiremos ser.
Temos na mão o passaporte para o fracasso, o salvo-conduto da dor.  
Órfãos de nós próprios, somos mortos-vivos perambulando no labirinto das horas.

Morremos de esquecimento. De covardia. De soberba ou arrogância.
Asfixiamo-nos de ganância, ignorância e pela ausência de virtudes.

Falimos.
Falhamos.

Somos interrompidos.
Desconectados.
Morremos.
Às vezes morremos.
Uns pelos outros.
Um para o outro.
Às vezes morremos os dois.
Morreremos sempre.
Nesse filme low budget fadado ao fracasso de bilheteria - que é a vida – não haverá final feliz.
Não, não haverá:
Nenhum de nós dois sorrirá no fim.

Thursday, August 16, 2018

Aretha Franklyn e Deus



Para Aretha, uma saudade anunciada.

Tomara que Ele não me castigue, generoso e bom como é. Mas gostaria de deixar registrado que Deus, em seus momentos de lazer, escuta Aretha Franklyn. 
Acontece naqueles instantes em que Ele não está sendo massacrado com as aprontações de seu inimigo; não está dolorido com nossas fraquezas; e desvia a atenção das traições mais absurdas.
Ele aperta o play e Aretha canta Do Right Woman, Do Right Man.
É quando brotam margaridas na face da terra e arrefecem-se os vulcões. 
São esses os momentos em que coisas boas acontecem para a humanidade. É quando proliferam milagres e os cientistas descobrem a cura para alguma doença. É quando assinam tratados de paz e nascem crianças perfeitas. 
Quando Deus escuta Share Your Love with Me, multiplicam-se os peixes e os pães. 
Eu sinto a presença de Deus quando Aretha Franklyn canta. 
Outro dia, vi um video em que ela interpretava uma canção de Carole King e era Deus quem fazia o duplo papel de ouvinte e de intérprete: na plateia, Ele se emocionava; no palco, tocava piano com um casaco de pele. 
Era Ele que transformava o mundo em um lugar melhor durante os 3 minutos e 48 segundos da música.
Ali, naquele momento, Ele se redimiu de seus falhanços e eu pude esquecer os refugiados sírios, espremidos em uma embarcação, arriscando a vida numa fuga do inferno pelas águas do Mediterrâneo.
Eram homens, mulheres e crianças, todos filhos d'Ele.
Pude desviar a atenção do rapaz descendo do carona da moto com uma arma na mão, durante um sinal vermelho.
Pude esquecer o desejo do homem-bomba de abrir os braços  (como um Cristo Redentor de Kandura) e apertar o detonador em plena Times Square iluminada de ganância e neón.
Esqueci por quase 4 mininutos a fome e a injusta distribuição.
Mas nem só de Aretha Franklyn vive o Todo Poderoso.
Quando Ele se cansa e cochila no serviço, acontecem tsunâmis, Fukushimas, golpes de Estado, negociatas de corrupção e gols-contra no futebol. 
Tenhamos compaixão.
Deus está cansado, não lhe damos sossego. 
Quando Ele chega ao limite do corpo é o momento em que a voz de Aretha se cala e os casais se desentendem, as nações declaram guerras, inventam bombas destruidoras e o pão de queijo carboniza no forno.
O leite derrama quando Ele se cala e Aretha Franklyn fica muda. 
Mas não é só com Aretha que Deus se emociona, pois sinto a sua presença em tantas outras coisas, que cabe aqui enumerar.
Quando o outono decreta o fim do verão e Deus pinta de ouro (e cobre e zinco) a paisagem do norte das Américas, Ele revela – em toda a glória e esplendor  - um momento de divina vaidade.
Eu escuto Deus no discurso do papa Francisco, o papa mais tolerante, mais gente-boa que a humanidade já conheceu.
Escuto Deus na chuva.
Escuto o Seu assovio quando o vento varre os telhados. 
É Ele que assopra a cabeleira dos canaviais e joga anilina no mar.
Ele pinta aquarelas coloridas com as quatro estações e está presente quando vejo um quadro de Portinari ou me lembro de um gol de Pelé.
Quando leio Manoel de Barros e sua simplicidade, eu o sinto.
E em Adélia se derretendo por Jonathan.
Ou quando Cora Coralina fala de biscoitos.
Registro sua presença na voz de meus pais, já velhinhos, ao telefone: sinto-o cristalino quando, na hora da despedida, os dois pedem que Ele me abençoe.
Mas é quando minhas filhas me chamam de pai, que eu escuto mais forte sua voz.
É este o momento da canção em que Aretha Franklyn, muito emocionada, atinge as notas mais altas e arrepia a pele de Deus.