Tuesday, June 19, 2018

O vil perdão



Eu perdoo você

e suas pequenas mentiras,
suas grandes mentiras
e até aquelas
que ainda não contou.


Perdoo
as promessas de campanha,
as promissórias afetivas
seus ‘eujuros’ e 'euteamos'

jamais ditos

Perdoo a nudez fingida,

os seios oferecidos

as felizes geometrias

os trejeitos de Marilyn

e os gozos de festim.


Perdoo as nuvens vazias de chuvas
seus minuanos, tsunamis
perdoo os raros dias de sol
e a ausência de verões
  

Perdoo os seus boleros
e rumbas, suas dores
indolores
e o aço frio dos  punhais.


Perdoo as bandarilhas
ardidas, urdidas
enfiadas
em minhas costas
e esta sangria imposta
tantos uis
tantos ais.


Eu perdoo você como
quem perdoa Judas,


mas perdoo, principalmente,

os seus pra sempre
e o jamais.





Friday, June 8, 2018

Quase um pedido de desculpas a Anthony Bourdain


Para a psicanálise o sonho é um espaço para realizar desejos inconscientes reprimidos. Na visão dos esotéricos, os sonhos podem significar experiências fora do estado de consciência e antecipar acontecimentos na vida da pessoa que sonhou.
A oniromancia, previsão do futuro pela interpretação dos sonhos, tem grande credibilidade nas religiões judaico-cristãs. Não sofro nenhuma influência religiosa, mas acontece algo comigo que me deixa bastante transtornado.
Sonho muito. 
Sou um sonhador, não apenas no sentido poético do verbo, mas também no viés prático. 
Durmo pouco, sonho muito. 
Poucas são as manhãs em que não acordo com algum resquício "quimérico" da noite mal passada. Não raro, a leveza de bons presságios é atropelada por algum pesadelo que deixa marcas terríveis. Já acordei chorando muitas vezes no meio da noite. 
É tão ruim. 
Dá uma sensação de abandono e dor. 
É como ser despertado dentro de uma bolha em que se respira sozinho, se morre só.

No decorrer da vida eu tive alguns sonhos recorrentes que foram desaparecendo com o tempo, mas existe um, em particular, que me atormenta e é sempre aterrador. 
Mesmo pouco afeito a esoterismos, fui procurar o significado em um dicionário de sonhos e a descoberta fez o mais absoluto sentido.
Sempre que sou 'visitado' por uma boca perdendo dentes é sinal de morte em meu entorno. 
Aconteceu na passagem de um amigo de infância, de parentes e pessoas próximas. 
Na noite passada a boca desdentada retornou e eu tive a certeza de que receberia uma notícia ruim antes do café da manhã. 
E foi assim que, mal abri os olhos, recebi telefonema de minha filha Isabella, que havia acabado de chegar à escola.
- Papai, liga no noticiário da TV. Anthony Bourdain cometeu suicídio na França.

Não sou amigo de Bourdain. 
Sequer o vi pessoalmente, mas havia entre nós uma estranha proximidade. Proximidade essa que era estendida a milhões de pessoas em todo o mundo, obviamente. 
Nas duas últimas décadas, ele foi presença cotidiana em minha sala, protagonista de uma das únicas coisas que aprecio ver na tv, o programa Partes Desconhecidas.
E não vem de hoje a admiração.
Tomei conhecimento de sua existência no ano 2000, quando ganhei de presente o best seller Kitchen Confidential. No livro, ele esmiuçou a realidade dos bastidores das cozinhas dos restaurantes nova iorquinos. Um choque de realidade.

Na transição para a telinha, apresentando agora um programa em que viajava pelo mundo experimentando a culinária local, Bourdain inovou trazendo um contexto muito diferente do que se vê na saturada televisão dos dias de hoje. 
Autor dos textos, deixava-me encantado com a prosa espontânea e cheia de nuances, que só os grandes escritores conseguem tecer.
Durante essas quase duas décadas, eu o vi experimentando esquisitices como conserva de ovo de pato fecundado, sushi de carne de cobra e pirarucu, achando sempre um jeito, por exemplo, de jogar luz sobre as feridas da relação EUA-Vietnam, criticar ditadores em suas próprias casas ou achando beleza de lugares esquecidos como Ghana e Etiópia.
Filmou a travessia de indocumentados na fronteira com o México e era um grande defensor da causa dos imigrantes nos EUA.
Foi assim, destemido, que o vi em Beirute, após as gravações serem interrompidas por violentos ataques aéreos israelenses. 
Bourdain dividiu conosco a beleza dos cartões postais dos lugares que visitou, sentando-se com pessoas comuns, dignitários, poetas malditos, refugiados e ícones do cinema e do rock and roll. E era sempre como se o telespectador tivesse um lugar à mesa.
Várias foram as vezes em que ele esteve no Brasil, país que adorava confessadamente. 
Retratou Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, a Amazônia e a minha Belo Horizonte. 
E foi em BH que aconteceu um episódio deplorável, em que uma pessoa brandindo um revólver invadiu o restaurante em que filmavam o segmento. 
Clientes, funcionários e equipe de filmagem se atiraram ao chão buscando abrigo. Foi um caos, retratado por ele com o peculiar senso de humor. Em nenhum momento criticou a cidade e seus cidadãos.
Como mineiro, fiquei envergonhadíssimo, e cheguei a comentar que gostaria de pedir desculpas em nome do meu povo, caso tivesse, um dia, a oportunidade de lhe apertar a mão. 
Não rolou.
Infelizmente, o restaurante da vida fechou as portas para ele.
Bourdain pediu a conta. 
Pagou e subiu, deixando-nos tentando digerir o abismo de uma perda imensurável.