Thursday, June 9, 2016
Dona Glória
Não vi que ela chegara de surpresa, momentos antes de eu emitir aquele sonoro palavrão. Coisa corriqueira, uma dessas bobagens de trabalho, em que a pressão do “dead line” acaba levando a melhor sobre o bom senso e a razão.
O telefone tocava insistentemente e ninguém atendia. E eu, que dava os retoques finais num texto qualquer, fui perdendo gradativamente a concentração. Audivelmente irritado, gritei de minha sala:
– Atende essa porra aí….
Segundos depois, quando saio da sala para buscar um café, a cara quase caiu no chão.
Dona Glória estava lá, quietinha, sentada numa posição característica de “vó” (as pernas cruzadas, uma mão sobre o joelho e a outra mpostada em cima), com cara de quem estava fazendo de conta que não havia testemunhado tamanha grosseria.
Bem feito, terão pensado meus colegas de trabalho.
Bem feito!
Fiquei desconcertado. Extremamente desconcertado.
Mas fui lá e fizemos as apresentações formais.
Dei-lhe um abraço, ganhei outro. Bem mais fundo. Um abraço maior.
No abraço de avó Glória veio o abraço de todas as avós do mundo e uma esperança de que meu dia iria mudar. Que minha vida iria mudar.
E eu, aquele sujeito estressado que acabara de cometer uma enorme grosseria, senti-me perdoado ao ser abraçado por ela.
Senti na hora que não iria para o paredão.
Que não iria para o pelourinho.
E não haveria cadeira elétrica, prestação de serviço comunitário ou outro degredo qualquer.
O destempero havia sido compreendido, embora tudo ali tivesse sido devidamente registrado na caderneta de más-ações para o dia do Juízo.
Não cheguei a pedir desculpas, creio eu. Bad boy.
O nosso abraço, que durou alguns segundos e pareceu eternizar-se como uma destas coisas boas da vida, transpôs-me a um lugar bonito, muito distante dali.
No abraço de vó Glória veio uma sopa de legumes em um dia de gripe e febre. E uma bandeja de quindins, brigadeiros e biscoitos de polvilho.
Veio um embrulho colorido com o meu nome escrito, sob uma árvore de natal.
Veio um dia ensolarado.
Veio o som de um radio ao longe, na hora do Angelus, tocando a Ave-Maria.
Veio a lembrança de um bichinho de estimação que bem poderia ser um coelho branquinho, de olhos encarnados, um gato rajado ou um cãozinho vira-latas, daqueles que nos seguem o tempo inteiro e se deitam ao pé da cama.
Veio a algazarra de crianças na hora do recreio e o canto de uma cigarra.
Veio um carrinho de rolimã desembestado - descendo a rua -, um embornal de bolinhas de gude, um pião e um ioiô.
Veio um pé de fruta, carregado de pitangas vermelhas, cajus amarelos, laranjas douradas; carambolas. Jambos. Graviolas. Pequis. Mangas e cajás.
No abraço dela veio um ‘corguinho’ cheio de lambaris e carás, mandis, traíras, cascudos e piaus.
Veio uma árvore apinhada de passarinhos, canários-do-reino, tizius, sanhaços e bentevis.
Veio o telhado de uma igreja coalhado de andorinhas. E um solo de curió.
No abraço de vó Glória veio a primeira comunhão e a roupa nova, a camisa de tergal ainda com cheiro de loja, a calça-curta, o sapato “colegial” e a meia branca até o meio da canela.
Veio também o primeiro dia na escola. E um sorriso orgulhoso no dia da entrega do diploma do primário.
No abraço de vó Glória veio também a esperança de que eu viesse a ser, no momento certo, e apesar de todas as carências e deficiências, um adulto bom.
Um homem que soubesse pedir desculpas. Que soubesse pedir perdão.
E é o que tento fazer até aqui.
É a minha intenção, apesar de todo o atraso, nesta crônica-pedido-de-desculpas.
Mau menino, eu sei. Muito mau.
Vó Glória aí, desculpa. Foi mal.
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