Thursday, December 22, 2011

Porque Hoje é Quinta-feira

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Acordei no horário de sempre, preparei café e parece que algo está acontecendo à minha volta. Tem sempre alguma coisa acontecendo, não é mesmo?
Mas hoje é quinta-feira e nada de importante - ou maior - acontece nas quintas-feiras.
Roberto Drummond escreveu que este é o dia mais neutro da semana.
Tão neutro, que poderia ser riscado do calendário e ninguém daria por sua falta.
Ninguém presta atenção nas coisas, às quintas-feiras.
Ninguém faz vigília.
Ninguém fica de prontidão.
Ninguém dá plantão.
É o dia propício para o crime perfeito ou para a fuga do inferno, porque ninguém estará atento.
Ninguém nasce, ninguem morre numa quinta.
Ninguém adoece, ninguém se cura.
A dor fica dormente.
A alegria anestesia-se.
E a felicidade se exila num outro código postal.
É quando as cartas importantes extraviam ou são entregues em endereço errado.
Perceberam que nenhum feriado cai numa quinta?
E ela chega sempre um dia depois das cinzas do carnaval.
Chega sem alegoria, sem enredo, sem fantasia, nem samba no pé.
Não existem golpes de estado neste dia.
As rebeliões se aquietam.
Os motins dormem numa rede.
Não conheço uma única flor das quintas-feiras.
As árvores não farfalham, o vento não venta e o mar desencrespa.
O vulcão arrefece.
Não existem feiras, nas quintas.
O amor não se reconhece no espelho e o ódio abranda.
Ninguem se casa entre a quarta e a sexta.
A areia movediça se firma enquanto o luar também clareia a lama.
E ninguém é engolido.
Ninguém vomita.
Ninguém tem taquicardia.
( o coração mente quietudes).
E, aí, é seguro dizer que ninguém se entope de barbitúricos.
Ninguém dança um bolero. Ninguém rodopia no salão.
Ninguém vende a salvação. Ninguém se salva.
(Até mesmo porque ninguém se salvará).
Ninguém sabe da missa um quinto, na quinta, posto que não existe missa neste dia.
Ninguém canta, ninguém ora, ninguém chora as suas amargas pitangas.
Isto tudo, porque, nas quintas-feiras, Deus e o diabo descansam dentro da gente.
E a gente nem percebe, porque nas quintas-feiras as coisas se desapercebem de nós.



A música qeu Toca Sem Parar:
porque esta canção nunca toca às quintas-feiras, Alguém Cantando, Caetano Veloso e Nicinha... Alguém Cantando.

Thursday, December 15, 2011

Dentro dos olhos de Marina Jardim

















Nos olhos de Marina existe um jardim.
E uma lua feita de argila e uma folia de rei.
Tem um céu feito de estrelas camponesas e um chão rabiscado de giz.
Tem uma frase de congado, o canto de uma rezadeira e um trancelim.
Tem, ainda, um pasto, um chapéu de couro, um gibão, um aboio e um entardecer.
Tem um boi de janeiro.
E boiadas o ano inteiro.
Tem mulheres feitas de barro, homens calejados nas lavouras e crianças esculpidas em nuvens.
Tem o trote de um cavalo, o berro de um carneiro e um cobertor de lã.
Nas veias desta mulher corre um rio cheio de peixes de escama e prata, e meninos brincando nas águas e fazendo ti-bum.
E, nos remansos deste rio abundam jequis, canoeiros, canoas, bancos de areia e um mar, abraçando tudo, onde certamente existirá uma foz...
Nas retinas de Marina vive uma fada, que com o seu condão toca o solo e o transforma em carrossel.
Transmuta carência em cirandas, tristezas em pombas, desesperança em porvir.
Nas pupilas de Marina mora um jeito de olhar que é só dela.
Mora uma delicadeza, uma alegria e um bem-querer.
Moram pés que ganham o mundo e mãos que moldam a vida.
Nas suas telas florescem gerânios, açucenas, semanas-santas e pequis.
E existe uma feira, onde se acha panelas e potes de barro, colher de pau, peneira, cestos, farinha, goma, hortaliças, verduras, frutas e um jeito de existir.
Tem também um arco-íris de mil cores e matizes, que não existem noutro lugar, que não lá.
E é lá que ela garimpa suas cores e inventa seus vermelhos, seus amarelos, seus azuis...
É nesse tear que ela tece retalhos feitos de asas de borboletas, e dá vida aos forrozeiros e cantadores de seu lugar.
É neste cenário que seu pincel coloca os tambores na rua e decreta um estado de euforia e felicidade.
Porque ela é vida. É celebração.
Na sua paleta habitam violas de braços coloridos com laços de fita, bandeirolas e bordados, um papagaio de papel e um pião.
Ela lapida cascalhos de Diamantina, fertiliza palmeiras comunistas em Itaobim, abençoa pecados inocentes em Padre Paraíso e afaga crianças que cantam pelas ruas de Araçuaí.
Marina Jardim tem no peito um coral de lavadeiras.
Tem uma cantiga-de-roda. E uma bandeira do divino.
Tem pincéis que falam a língua do seu povo e cores emprestadas pela pele de sua gente.
Tudo o que ela pinta é lindo e cheio de vida.
Quanto Marina Jardim pinta, ela pinta com os olhos de Deus.


A Música Que Toca Sem Parar:
de Lery Farias e Paulinho Assumpção, na voz de Paulinho Pedra Azul, Jequitinhonha.

Jequitinhonha
Braço do mar
Leva esse canto prá navegar

Traz do garimpo
Pedra que brilha
Mais que a luz do luar

Jequitinhonha
Jequitibarro
Mete essa unha, tira da terra
Vida talhada com as mãos

Já te quis, já te quis, já te quis tanto
Já te fiz, já te fiz, já te fiz sonho
Te cantei, te cantei, te cantei pranto
Como a água da chuva que inunda esse chão...

Wednesday, December 14, 2011

Em Nós













Luís Ruffato é um amigo virtual, muito antes do surgimento da palavra virtual. Trocávamos correspondência na era pré-email e isto só foi interrompido com o surgimento da internet.... Não acreditam? Perguntem a ele...
Ruffato ainda não era um dos grandes escritores do Brasil, mas já era um grande homem, uma figura ímpar.
Ele, que se firmaria como um dos grandes romancistas do Brasil, surgiu em minha vida como poeta. E sempre admirei os versos de sua lavra. Pra mim, ele será sempre o poeta. Um poeta imenso.
E, hoje, quero postar um poema dele.
Uma poema-letra de canção, brilhantemente musicado pelo juizforano Luizinho Lopes, outro amigo querido.
É pra ver-ouvir... e propagar.

EM MIM
(Luizinho Lopes – Luiz Ruffato)


E A SOLIDÃO QUE ORA SINTO
ABISMOS ABISSAIS
E A SOLIDÃO QUE ORA SINTO
ABISMOS ABISSAIS
NÃO É MONTANHA APÓS MONTANHA
É ALGO MAIS
CÉU SOBRE AS MINAS
MÃOS SOBRE AS MINHAS

TALVEZ NÃO ENTENDA
A LENDA SILENCIOSA EM MIM
TALVEZ NÃO ENTENDA
A LENDA SILENCIOSA EM MIM
NÃO É COSTUME APÓS COSTUME
É MUITO MAIS
NÃO ESTÁ EM MIM SÓ
ESTÁ EM MIM
EM MIM EM MIM EM MIM
NAS GERAIS

Tuesday, December 6, 2011

Mil e uma indagações para um passe de calcanhar





















Quantos gols terá marcado o jogador Sócrates?
Quantas vida terá salvado o médico Oliveira?
Quantos passes errados?
Quantas bolas na trave?
Que decisões questionáveis terá tomado homem e jogador?
Onde teria acertado mais do que errado, este senhor?
Onde termina o homem e começa o super-homem?
Onde finda o mito e começa o cidadão?
Seria vermelho o seu sangue e transparente a sua dor?
Quais seriam suas verdadeiras paixões?
Seria a bola, os amigos, a ideologia ou a medicina?
Onde se sentiria com o coração mais pacificado, o homem nascido em Belém do Pará e criado no interior paulista?
Seria feliz numa mesa do Bar Pinguim, em Ribeirão Preto?
Numa mesa de operação de um hospital de periferia ou num estádio de futebol?
Quais seriam as suas influências?
Preferiria Leon Trotsky a Pelé?
Misturaria numa mesma frase Lampião, Adoniran e Macunaíma?
O que o fazia sorrir: uma balada de Chico ou um bolero de Pablo Milanés?
Teria chorado, e de que dor?
Teria tido outro amor, além das chuteiras que calçou?
Teria deixado um pedaço de sua alma no Sarriá, naquela fatídica noite em que Paolo Rossi vendeu a alma ao diabo para nos jogar, brasileiros, no fundo mais fundo do poço do inferno?
Pode ser que sim. Pode ser que não.
Lembrando seus feitos, fico aqui com aquela estranha sensação que todo mortal tem diante de seus ídolos.
Falo o seu nome até com uma certa intimidade.
Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira.
Este era o nome na certidão de nascimento: um ser quilomêtrico.
Um legado.
Magrão, para uns.
Doutor, para outros.
Gênio da raça. Referência.
Classe no ser e no jogar.
Pai, filho, irmão, amigo. Lenda.
Poesia, coração.
Calcanhar, cabeça.
Consciência e irreverência.
Ponderação.
Era um dedo na ferida aberta pelos algozes da ditadura militar. E era a esperança da cura e cicatrização.
Muito mais do que gols, quantas vidas terá tocado, com o condão mágico do seu pensar?
Sim, porque de todas as suas qualidades, aquela que mais me sensibilizou, sempre, foi a sua maneira de pensar.
O futebol do nosso país, mais que uma paixão, teve nele uma referência para além das quatro linhas.
Da boca de Sócrates para a boca do povo, numa tabelinha, a palavra democracia foi verbo e substantivo.
Estávamos na reta final da ditadura militar, os tempos eram difíceis mas ele nos ensinou que existia a felicidade fora de um estádio.
Na madrugada deste sábado insuspeitíssimo, a condição humana - que é o mais implacável de todos os marcadores -, o derrubou. E o juiz da vida nem marcou falta.
No dia 3 de dezembro, aos 57 anos, jogou a sua última partida, chutou sua última bola.
E o país inteiro chorou.


(parida com lágrimas em 6 de dezembro de 2011)


A Música Que Toca Sem Parar:
a parceria genial de Gilberto Gil e Chico Buarque, nas vozes de Chico e Milton Nascimento, um manifesto contra a ditadura militar que o Doutor Sócrates ajudou a vencer com um passe de calcanhar:

Cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor e engolir a labuta?
Mesmo calada a boca resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa?
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada, prá a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

De muito gorda a porca já não anda (Cálice!)
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, Pai, abrir a porta (Cálice!)
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade?
Mesmo calado o peito resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Talvez o mundo não seja pequeno (Cale-se!)
Nem seja a vida um fato consumado (Cale-se!)
Quero inventar o meu próprio pecado (Cale-se!)
Quero morrer do meu próprio veneno (Pai! Cale-se!)
Quero perder de vez tua cabeça! (Cale-se!)
Minha cabeça perder teu juízo. (Cale-se!)
Quero cheirar fumaça de óleo diesel (Cale-se!)
Me embriagar até que alguém me esqueça (Cale-se!)

Thursday, December 1, 2011

Precisa-se de Homens














(Para Lula Barbosa)
O anúncio no jornal obedece os preceitos que um pequeno anúncio na seção de classificados deve ter: é dinâmico, direto, deixa bem claro o que se busca e a recompensa, mas com duas pequenas diferenças.
O anúncio é bem maior do que os normalmentes publicados na página de Classificados e, no final, não existe um número de telefone de contato.
Mas dá a ler que precisa-se de homens. E que a contratação é imediata.
Precisa-se de homens com boa vontade.
Homens sem igreja.
Nenhuma igreja. Mas que sejam homens de fé.
E que sejam generosos e estejam dispostos a repartir.
Que não aceitem a fome, a falta de um teto, as mazelas do calor e do frio e a injusta distribuição.
E que entendam a diferença entre conhecimento e sabedoria.
Que não sejam couraçados ou invasores.
E que estejam dispostos a apagar com uma borracha as linhas de fronteira, pois a partir de agora, tudo será uma coisa só.
Precisa-se de homens gentis.
Homens que tenham no peito um jardim, e não uma trincheira.
Homens firmes, idealistas, e que levantem uma nova bandeira.
Uma bandeira sem brasão.
Uma bandeira sem ideologia, limpa de sangue e sem tradição de conquistas.
Uma bandeira pura e branca como a pomba de Pablo Picasso.
Como a água de um riacho.
Como o algodão.
Precisa-se de homens que abdiquem da ganância, que abominem o lucro predatório.
E que sejam pacíficos e solidários.
Homens que não sejam o lobo do homem e que sejam o oposto do que representam os falsos profetas de Wall Street.
Que não sejam salvadores de pátrias e de almas.
E que não sejam amigos próximos de Deus.
Precisa-se de homens para a construção de uma grande obra.
Para a maior obra que já foi edificada até aqui.
Uma obra bem maior que a represa de Itaipu, Matchu-Pítchu, as muralhas da China e do que a própria China.
Precisa-se de homens para a construção de uma grande obra.
Precisa-se de homens para a construção de um novo mundo.
E, posto que amor, com amor se paga, paga-se bem.


A Música Que Toca Sem Parar:
Milton Nascimento musicou um poema de Carlos Drummond de Andrade e nassão esta vesão cantada de Canção Amiga.

Eu preparo uma canção
Em que minha mãe se reconheça
Todas as mães se reconheçam
E que fale como dois olhos
Caminho por uma rua
Que passa em muitos países
Se não me vêem, eu vejo
E saúdo velhos amigos
Eu distribuo segredos
Como quem ama ou sorri
No jeito mais natural
Dois caminhos se procuram
Minha vida, nossas vidas
Formam um só diamante
Aprendi novas palavras
E tornei outras mais belas
Eu preparo uma canção
Que faça acordar os homens
E adormecer as crianças
Eu preparo uma canção
Que faça acordar os homens
E adormecer as crianças.