(Para Jorge Pimenta e Laura Alberto)
O que trarei na bagagem desta minha viagem?
Trarei as luzes da cidade derramadas sobre a ribeira?
Trarei a ribeira do D'Ouro e suas águas a um passo da foz?
Trarei barcos carregado de pipas?
Uma janela da torre dos Clérigos?
A proteção do anjo apinhado de pombas no topo do hospital Santo Antônio?
Trarei uma lua cheia?
Trarei estrelas nortenhas?
Trarei azulejos?
Trarei as vielas estreitas desta cidade, como aquelas transportadas em nuvens para as vilas portugueses da Minas Gerais colonial?
Sim, porque existe muito do lugar de onde venho, neste lugar que, agora, visito pela primeira vez.
Existe um certo bairrismo, um orgulho ingênuo, um sotaque distinto e uma quase doçura na voz.
Existem ladeiras que sobem e descem, mercados permeados por um burburinho e um vozerio que ecoa de dentro dos cafés e tascas espalhados por todos os cantos.
É manhã na cidade do Porto e, no que chego, chove, turvando a visão diante de uma paisagem distinta.
Lanço meu olhar-turista sobre pessoas e coisas com a sede dos que tem sede, com a fome dos que tem fome.
E eu chego e sou bem acolhido, já à entrada, sentindo-me imediatamente em casa.
Eu, que caminho por essas ruas como se fossem minhas.
Eu, que sou afeito a intuir e a intuir somente.
Eu, que só sei sentir.
Sei que trarei desta cidade, quando retornar ao lugar que chamo casa, as cenas épicas dos painéis da estação de São Bento.
Trarei a conversa quase intimista do motorista do táxi.
Trarei tripas à moda do Porto, alheiras, tremoços e sarabulhos.
Trarei romãs.
Trarei o gosto picante do molho de uma francesinha degustada numa transversal da rua onde as putas fazem ponto quando cai a noite.
Trarei poemas de Eugénio de Andrade e textos de Valter Hugo Mãe.
Trarei um solo da guitarra de Rui Veloso e uma pedaço de toucinho do céu, fatiado das páginas do menu do Dom Tonho.
Trarei os muros e paredes pichados, espirrados da fúria de um povo que não se dobra ou aceita as injustiças sociais que ainda persistem.
Trarei o doce-azedo das uvas que espremeram para fazer o vinho que embriagou e irmanou todos nós, durante a estada.
O calor dos abraços que entreguei e recebi, mais que em dobro.
Trarei nas malas o luto das roupas negras das mulheres que trafegam pelas ruas, como se ainda vivêssemos num século distante.
Trarei um olhar de adeus diante do mar.
Trarei tradição.
Trarei o peso da história.
E um pedaço dela, impregnado, essa tatuagem nas retinas.
Trarei uma travessia à pé da ponte Dom Luís I.
Trarei as canções de um concerto que reverbera, ainda, como se estivessem frescas como as laranjas dos pomares que adornam todo o norte do país.
Trarei um livro retirado do acervo da livraria Lello, que é uma espécie de relicário nobre das palavras, um dos lugares mais bonitos que meus olhos já viram.
E farei o meu caminho de volta, como quem atravessa um abismo.
Porque o oceano Atlântico é um abismo que separa os dois continentes e impede um abraço.
E eu cumprirei duas vezes este percurso numa agonizante jornada.
Nas despedidas, ficará o refrão de um fado.
No coração, o desassossego dos que deixam para trás um pedaço grande da alma.
Mesmo assim, ficará a sensação de que levo muito mais do que deixo.
A Música Que Toca Sem Parar:
poema de João Monge, interpretação do Trovante.