A minha cobardia perante a morte envergonha-me. A minha recusa em encará-la de frente torna-me menor. Por isso tranquei-a na cave e fujo dela desde então. Tento esquece-la, finjo que ela não existe, para poder aceitar os meus dias. Vivê-los depois dela tornou-se absurdo. Aceitar continuar a viver quando nos lançam a morte ao caminho, só pelo prazer de ver quem sobrevive a quem, é aceitar viver corrompido por um jogo que antes de começar sabemos quem são os derrotados: os vivos e os mortos. Mas dos mortos, dizem que vão para melhor.
A minha cave fica no Alto de S. João. Tem um número na porta e uma chave que, no entanto, não uso para a abrir.
Foi aqui que encerrei uma dor que não conhecia e no alto da minha pujante vida, me julguei até imune. Não estava preparada para a conhecer tão cedo. Sei agora que nem mais tarde, porque hoje continuo a não estar preparada para ela. Na necessidade de sobreviver à falta de coragem de pôr termo a uma vida que senti não merecer, ignoro que ela exista e é por isso que não tenho certeza nos meus dias. Porque é a morte que dá certeza à vida e eu escolhi ignorá-la. Não sei que mulher sou, que mãe, que guardiã do seu maior bem, que permitiu que ela, a morte, sorrateira e silenciosamente, lhe levasse uma filha e com ela o meu chão.
E como se caminha sem chão?
E sem dias?
E embora não os querendo, os meus dias teimavam em ser dias e, sem no entanto terem sido, só muitos anos depois percebi o que foram. Simplesmente dias. Cumprindo o tempo. O tempo que curaria a minha dor. “com o tempo passa”, diziam. Mas o tempo doía-me. Insultava-me com a passagem dos seus dias, das suas horas, que me recordavam as horas daquele dia. Até que depois, muito tempo depois, veio o dia que o tempo curou. Depois desse dia, os dias são de dor que ficou sem doer.
O que o tempo ainda não curou é o medo que tenho da morte. Eu e ela vivemos em luta constante na recusa da vida que eu insisto em guardar dentro de mim.
É por isso que não a visito com medo que ela aprenda a subir a escadas da cave para me visitar de novo.
É por isso que aquela porta continua a só ter um número por nome. Dar o nome da minha filha àquela porta, era dar à morte a vida que ainda hoje lhe continuo a negar.(in "A Minha vida num Livro" de Pedro Sena-Lino)