Notas para a Apresentação do livro
O Corsário dos Sete Mares,
de
Deana Barroqueiro,
23 de Outubro de 2012, no
Padrão dos Descobrimentos
1) Que livro é este?
É um livro que conta a vida e as aventuras de Fernão Mendes Pinto, um português do seu tempo, o séc. XVI que andou pelos sete mares e que escreveu ele próprio um dos livros mais famosos da epopeia portuguesa das viagens e dos descobrimentos - a PEREGRINAÇÃO.
2) Como é que o livro está construído ?
A autora dividiu o Romance em Sete Livros chamando Mar a cada um deles – Mar Roxo, Mar da Arábia e Malabar, Mar Austral, Mar da China, Mar do Japão, Mar de Java e Mar Andaman.
Cada Livro está dividido em Capítulos, cada Capítulo inicia-se com um Provérbio, a que se segue uma transcrição e que termina com uma história ou com um pedaço de história que se complementa em dois, três ou quatro capítulos.
Há sempre um “narrador atual” que é a própria autora e um “narrador” que faz parte da história ou que relata acontecimentos que presenciou ou de que apenas ouviu falar.
Os provérbios escolhidos são uma coletânea magnífica que por si só poderiam dar origem a um livro. A Deana foi buscar provérbios – portugueses, árabes, chineses, africanos, malaios hindus, maoris, japoneses, siameses, tâmil, bengali, jau, e os que designa como orientais classificando como tais aqueles que são comuns a várias culturas.
As transcrições são retiradas de um sem número de fontes e têm sempre uma relação direta com a história que é narrada nesse capítulo.
É portanto uma obra muito complexa, muito bem construída com imensas “intertextualidades”, mas que se lê muito facilmente sendo acessível a qualquer leitor que goste de romances históricos e que aprecie uma grande aventura vivida em ambientes estranhos e distantes que a autora recria com a sua mestria e com o seu grande talento como escritora.
3) O que nos traz o livro e o que nos proporciona a sua leitura?
Eu diria que o livro transporta-nos para o mundo ou os mundos em que alguns dos portugueses viveram no séc. XVI. Digo alguns porque estes homens das caravelas que fizeram a epopeia dos descobrimentos, das grandes viagens do Oriente foram apenas uma parte dos portugueses de quinhentos. A maior parte ficou por cá.
4) Quem eram os que foram e quem eram os que ficaram é algo que ainda vale a pena investigar.
No fundo os que ficaram foram talvez os mais acomodados, os menos ambiciosos, os medrosos ou talvez os que decidiram manter e alimentar uma retaguarda que era indispensável a todos os que se aventuraram e arriscavam as vidas no mar, na descoberta, na conquista de terras, no domínio dos mercados e no encontro, nem sempre amistoso, com as gentes que habitavam os lugares por onde os portugueses passavam ou onde se instalavam.
Estes ambientes para que a Deana nos transporta constituem um mundo fantástico cuja descrição nos fascina e nos entusiasma, mas que ao mesmo tempo nos leva a viver no mundo dos livros, das cartas, dos relatos, das informações, das descrições, dos mitos, dos apelos, dos pedidos, das cartas de chamamento, dos Tratados, das histórias, das lendas, das biografias e obviamente do próprio Livro PEREGRINAÇÂO que é a obra de referência que a autora cita amiudadas vezes porque é a palavra não do herói do livro, mas deste “anti-herói desmesurado de quem pouco mais se sabe do que aquilo que ele contou no seu livro publicado trinta e um anos depois da sua morte”.
Para além disto o Livro desperta em nós um interesse por saber mais sobre cada um dos acontecimentos que são descritos (e que são tantos) e sobre os quais há certamente muito livro para ler e muito documento para consultar e com conteúdo para refletir.
A bibliografia é muito extensa e cobre muito do que foi escrito sobre estas paragens e sobre a vida, os êxitos e os inêxitos dos portugueses nesta grande aventura coletiva em que ajudaram a construir um mundo novo e partir dos séc.s XV e XVI).
5) Gostei muito do Livro e confesso que o lí com certa avidez e com grande vontade de agarrar cada uma das histórias que nos são dadas a ler.
Há histórias e personagens deliciosas.
É um mundo da maravilha, da aventura, do insólito, da conquista e do exótico, também um mundo de guerras, cercos, fomes, naufrágios, traições, sangue, batalhas, gente feíssima, mortes, canibalismo que nos mostram o que poderá ser o Inferno, mas igualmente um mundo de amores, de raparigas lindíssimas, de paixões, de solidariedade, de cumplicidades, de alta gastronomia, de perfumes, de especiarias, de mel e frutos, de luzes, de esmeraldas, diamantes, ouro, prata e de mares com águas calmas e mornas que nos fazem sentir à porta do Paraíso.
6) Apenas para incentivar à leitura do livro gostava de referir algumas das figuras e dos episódios que mais me chamaram à atenção:
• O Reino de Prestes João
• Bento Castanho – um dos narradores
• A história de Iria Pereira e do filho Diogo
• A Joana e a Isabel –Zobeida e Giauhare
• O Corsário Soleimão Dragut – ao serviço de Soleimão o “Magnífico”
• O Cerco de Diu – Coja Çofar – Bahadur
• Tristão Gomes • 2º narrador do Cerco de Diu
• Chaul de baixo – portugueses
• Chaul de cima – mouros
• Filho de D. Francisco de Almeida – Lourenço, que morre a combater atado a um mastro depois de lhe terem partido as duas pernas
• A tomada de Goa em 1510
• Carta de Afonso Albuquerque a D. Manuel
“
Casados segundo o mandamento de Afonso de Albuquerque, O Terribil
• Rui Dias e a sua Nazima
• A última história passada em Diu e contada no final do Livro II - mar da Arábia e Malabar é fantástica:
“Os portugueses depois de terem morto cinco dos “rumes”(mouros) e prendido os restantes simulam uma cena de canibalismo impressionante.
António Azevedo manda que retirem os fígados e manda-os assar. O escravo corta o fígado em postas leva-os para a cozinha, troca-os por fígados de porco e come-os com os seus companheiros obrigando os guzarates a assistir à cena”.
“Terminado o repasto, o capitão deixa sair os guzarates e o rume sobrevivente, mais morto do que vivo, para irem contar o que tinham visto”.
• A viagem ao Reino dos Batas
• Os antropófagos
de Samatra, Malaca e Java
• O mito da Criação de Samatra
• A descrição de uma arma desconhecida que é o “boomerang”
• Timorraja
• A História da Marquesa
• Inês de Leiria – Filha de Tomé Pires
– Vasco Calvo
(o Alcochete)
• A vida na China:
O imperador
– O Leão Coroado no Trono do Mundo
– O carácter que representa o Imperador
• Um pormenor mas muito significativo é a descrição do enorme número de livros que é publicado na China; Escolas e Universidades: Mandarins aí formados e
Exame para entrada na administração pública
(Matteo Ricci - Jonathan Spence - The Memory Palace of Matteo Ricci).
• O grupo dos três amigos solidários entre sí: Fernão, Zeimoto e Cristóvão
• Yin e o Yang – muito bem explicados: o céu e a terra – a luz e a sombra
– o masculino e o feminino – o branco e o negro
(Tudo se completa - O Taoismo). • Admirável a comparação entre as Letras de Câmbio e as Indulgências.
• A Muralha da China: o Amato Lusitano; Vasco Calvo e a família que ali vivem.
• A paixão por Huyen a Noiva Roubada:
“Cativa mas indomada, doce como o mel, enigmática como uma especiaria, dura como um diamante”
– A verdadeira encarnação do oriente, uma das mulheres mais bonitas e atraentes que o livro contém
– A morte de Huyen no naufrágio, morrendo agarrada aos dois irmãos e com Fernão sem conseguir salvá-la.
• A viagem de Fernão de Magalhães, em que
a propósito conta: “
a glória podia ter cabido a Portugal mas na nossa terra “quando na república a monda cresce, os bons não vêm o lume”
• A descrição da conquista de Malaca por Afonso Albuquerque
• A carta de S. Francisco Xavier aos seus companheiros residentes em Goa em que descreve os japoneses dizendo que “
entre gente infiel, não se encontrará outra que ganhe aos japões”
• O encontro com S. Francisco de Xavier. Diz a narradora/ autora:
“Acompanhámos Fernão Mendes Pinto durante a primeira década da sua peregrinação de vinte anos no Oriente, aquela em que mais viagens fez, mais países visitou, mais desastres sofreu, mais fortunas ganhou e perdeu e mais personagens encarnou – espião, embaixador, médico, corsário, mercador, contrabandista e guerreiro mercenário-, que ele narra nos primeiros duzentos capítulos da sua obra.
Apartamo-nos dele aqui, porque esta nossa narrativa já vai longa – sendo o tempo tão curto e a vida tão breve – tanto mais que nos vinte a seis capítulos restantes Fernão vai contar, não as suas façanhas mas as do padre Francisco Xavier de quem se fez amigo.
Após a morte do fundador da Companhia de Jesus , Fernando Mendes Pinto sentiu uma profunda exaltação religiosa e decidiu abandonar as ambições e prazeres mundanos para se consagrar a Deus. Entrou para a ordem como noviço, despojando-se de todos os seus bens, libertando os seus escravos e doando aos jesuítas a avultada fortuna que finalmente conquistara.
Passado um ano de noviciado, todavia, na sua quarta viagem ao Japão como embaixador ao serviço da Coroa e do padre Mestre Belchior Nunes Barreto, curou-se da crise de misticismo e saiu da Companhia de Jesus, regressando pouco depois ao reino, no ano de mil quinhentos e cinquenta e oito, para casar, criar família e escrever a sua Peregrinação que, no entanto, não foi publicada em sua vida.”
NOTAS FINAIS
1) A GLOBALIZAÇÃO
Fernão é preso e vendido na Costa de Malabar a um grego num mercado da Arábia.
Alguém diz:
“Os portugueses …sabem trabalhar nos barcos, na pesca ou em qualquer outro ofício…ou então podeis vendê-los na Índia ou no Cairo…".
2) OS PORTUGUESES
Algumas notas que se retiram e que podem ser verificadas na vida de hoje
a) Logo no início quando se fala de D. Manuel diz-se “
O Venturoso, assim que subira ao trono começara a desfazer tudo o que o cunhado fizera e a afastar todos os homens da sua confiança”.
b) O grande Rei D. João II – “
que escolhia os homens segundo as suas qualidades, valor e mérito, sem jamais atender a peitas ou influencias”.
c) A inveja – “O
seu espírito crítico mantém-lhe os pés assentes na terra e Fernão duvida se terá coragem para pôr em letra de imprensa o relato das suas viagens” e depois diz – “
teme a invejice dos portugueses, um povo propenso como nenhum outro à murmuração contra os que sobressaem da mediana condição”.
(comparar com Camões-última palavra dos Lusíadas).
d)A desorganização –A fala que Martim Afonso de Sousa fez ao Vizo-Rei:
“
– Apenas oitocentos desses reinóis são fidalgos, cavaleiros ou homens de criação das casas reais – contrapõe o capitão Guedes, com um riso amargo -, os restantes são gente bisonha, «de quinhentos réis de soldo», criminosos, maltrapilhos e moços sem barba. Quando mais necessitamos de gente sabedora das cousas da Índia, calejada da guerra, trocam o governador e mandam-nos gente que nunca empunhou uma espada, sem préstimo para nada, quanto mais para combater…
– O feitor tira uma carta de um estojo e agita-a no ar:
– A gente mais antiga da India, que queria combater sob as ordens de Nuno da Cunha, está muito agastada com esta mudança. Escreveram-me a contar a fala que Martim Afonso de Sousa fez ao vizo-Rei quando este se queixou de não achar homens que quisessem ir na armada. Ouvi, que vale a pena. – Desdobra a folha e lê: – Senhor, os homens da India são já enfadados de sempre servir com muitos trabalhos a pobreza, de que vêm a morrer no hospital, os que não morrem no mar ou na guerra. E quando esperam mercê de satisfação, então se vai o governador com que serviram, e tornam a começar a servir de novo com o governador que vem; e assi são velhos no serviço e novos no merecer. Pelo que, senhor, não se espante vossa senhoria achar os homens enfadados, e a culpa não a deite aos capitães e fidalgos, porque esta é a verdade.”.
e) Uma conversa muito interessante passada na China entre Fernão e Jorge e três tártaros que querem saber quem são e de onde vieram aqueles portugueses.
Diz um dos tártaros:
“Esta gente, ao vir conquistar terra tão distante da sua pátria, dá claramente a entender que deve haver entre eles muita cobiça e pouca justiça”
Ao que o outro responde:
“Assim parece, porque homens que por industria e engenho voam por cima das águas todas, para adquirirem o que Deus lhes não deu, ou a pobreza neles é tanta que de tudo lhes fez esquecer a sua Pátria, ou a cegueira que lhes causa a sua cobiça é tamanha que por ela negam a Deus e a seus pais”.
(Peregrinação).
f) As desavenças entre portugueses
“
Fernão dava-os por perdidos. Embora não sentisse estima por eles, lamentava deveras a sua perda, visto serem os portugueses tão poucos e tão dispersos por aquelas longínquas paragens, que só teriam salvação se se unissem e amparassem, em vez de se digladiarem em contínuas quezílias, tratando de matar-se uns aos outros ao menor desentendimento. Como sucedera com o seu bando.”
2) Promessas que não são cumpridas
Fernão que trabalha para Pêro de Faria e é embaixador de um grande Reino promete a Timarvaja que depois da guerra com os “achens” os portugueses de Malaca lhe vão restituir as terras perdidas. Perante esta promessa o Timorraja diz-lhe: “
Rogo-te que não tomes por tão néscio que creia nas vossas promessas.”
3) A Deana termina o livro com uma frase nos agradecimentos em que depois de agradecer ao João Pires Ribeiro a sua colaboração nos diz “
ajudando-me a escolher as melhores histórias para o leitor poder agora provar o gosto da canela, do cravo e da pimenta” e eu diria também dos “borrachões” cuja receita é idêntica à dos que faziam em minha casa em Castelo Branco.