Copiado do 4R – Quarta República com prévia autorização do autor a quem agradeço profundamente.
"Correr
Assim que acordava, e depois de se lavar e tomar o pequeno-almoço, o menino queria correr, correr muito, porque as suas pernas, irrequietas, o obrigavam. Uma maravilha, saltar, andar atrás do cão e jogar à bola. E foi por causa desta que tudo aconteceu. A bola, ao fugir para o meio da estrada, começou a rolar a toda a velocidade. Com medo de a perder não se apercebeu do carro e foi atropelado.
Não se recorda de nada, apenas da bola a rolar pela rua. Deitado na cama do hospital via os pais, muitos familiares, médicos, enfermeiras, uma multidão cheia de sorrisos. Não sentia dores. Cuidavam dele, brincavam, contavam histórias, ofereciam-lhe prendas, livros, lápis, muitas coisas com as quais iria brincar durante longos dias em que teria de permanecer deitado.
E, num desses longos dias, no hospital, pediu uma bola ao pai. – Uma bola? Mas não podes jogar aqui. – Não faz mal! É só para dormir comigo. Depois quando for para casa vou brincar no quintal. Vou correr atrás dela e não vou para a estrada.
Mas o menino não sabia que ia poder correr, nem jogar à bola. O acidente tinha-lhe provocado uma lesão na medula, onde nascem os nervos que fazem movimentar os músculos. No sítio onde ocorreu a lesão nasciam os nervos que iam para as pernas. Os nervos são uma espécie de fios elétricos e se estiverem cortados não podem levar a energia aos músculos. Foi o que lhe aconteceu. Depois de lhe terem explicado, perguntou, com muita naturalidade: - Porque é não pedem a um eletricista para colar os fios? Tiveram de lhe dizer que era muito complicado. Talvez um dia seja possível, mas até lá tinha de fazer muito exercício. Muito. E aprender a usar a cadeira de rodas. Ao princípio achou piada, mas ao fim de algum tempo começou a impacientar-se. Queria correr, sentia necessidade em correr, mas não podia. Era ajudado de todas as formas, mas estar preso à cadeira, embora tivesse aprendido a utilizá-la, incomodava-o.
À medida que crescia, sentia a falta da liberdade. Era o momento em que acariciava a bola e a lançava contra a parede. Nunca largou a bola, nem a bola o deixou. Sempre juntos, umas vezes ficava ao fundo da cama, entre dois pés adormecidos, outras, ao seu lado, no chão do quarto, no quintal ou ao seu colo quando ia na cadeira.
Aprendeu a não pronunciar a palavra correr e substituiu-a por rolar. Pedia que o ajudassem a rolar para a rua, para o parque, para a escola, para tudo o que era sítio. Fazia-o com alguma satisfação, e por vezes com velocidade excessiva, o que era perfeitamente compreensível. Os próprios colegas quase que chegavam a bulhar entre si para poderem conduzi-lo, rolando, rolando. Mas quando estava só, e via-os à distância, sentia uma estranha sensação de privação da liberdade. Olhava então em redor e, pouco a pouco, começou a ver a “correria” do mundo envolvente, das nuvens, do sol, das imagens, dos sons, da luminosidade, do frio, do calor, das sombras, dos silêncios, das gritarias, dos animais, de todo um formigueiro permanente, que armazenava no seu pensamento em gavetas aveludadas construídas para esse fim. Quando começou a ter muitas gavetas, algumas já cheias de preciosidades, frutos da sua visão, olfato, audição e toques repetidos, retirava algumas dessas imagens, sons e sensações táteis e construía novos quadros, novos pensamentos e emoções que não sabia que existiam ou que podiam nascer dentro de si. E, assim, com o tempo, passou a escrever coisas lindas, a desenhar coisas novas e até a musicalizar a sua curta mas já intensa vida. Sentia-se diferente, uma espécie de prazer profundo idêntico ao que sentia quando era mais pequeno, quando pronunciava o verbo correr e o conjugava na primeira pessoa, sempre atrás da sua bola. Bola essa que lhe fazia, silenciosamente, companhia. Sempre que pensava na sua forma de viver o mundo, acariciava sem se aperceber a sua velha bola.
Crescia à mesma velocidade que os seus amigos, não nas pernas, simbolicamente adormecidas, mas nos seus pensamentos. As obras nasciam umas atrás das outras para sua satisfação e alegria dos amigos e familiares. Todas elas eram novas formas de liberdade que só alguém na sua situação poderia atingir. Mas ao partilhar as suas emoções e pensamentos contribuía para a libertação dos que pensam que só pelo facto de poderem correr são livres. Reaprendeu a utilizar o verbo correr, conjugando-o em todas as pessoas. Corria no seu pensamento e fazia correr o pensamento dos outros.
Quando conseguiu substituir a liberdade que teve em tempos de correr pelo correr da liberdade de pensar, tornou-se livre e deu liberdade a todos os outros, os quais sem a sua ajuda nunca teriam sido verdadeiramente livres.
E a bola, adormecida como um cachorro, aos seus pés, bem sabe que é verdade. Mas não sabe dizer, ou não quer!"
Por Salvador Massano Cardoso