sexta-feira, 30 de dezembro de 2005

Bodoqe n°8

Expediente

Editorial

A Catarse faz o Bodoqe. O Bodoqe faz a Catarse.
E a Catarse faz o caminho. Com os seus pés, marca sua própria trilha e cria suas raízes na ética e na dignidade de um jornalismo independente.
Nossos princípios são nossa carne e nossos ossos. Circulam por nossas veias.
A Catarse não tem medo de se mostrar. Com o Bodoqe, quer acertar a mínima imprensa que, a partir de hoje deixará de ser chamada de “grande imprensa”, pois de grande não tem nada. É pequena, é medíocre.
O dinheiro não a torna grande. Pode deixar forte, mas não grande.
Porque grande e forte são todos que lutam por um jornalismo como ele tem que ser: ético, justo, solidário e digno.
A luta é árdua. Mas cada passo nos dá a certeza da escolha certa.
O coletivo vai contra a mesmice que não soma, que só subtrai.
O coletivo quer mostrar os desvios da informação que a mínima mídia vende em suas prateleiras.
O coletivo quer a Catarse.E aí está a Catarse - Coletivo de Comunicação.

Tribunal de Cajamarca, região norte do Peru, 1994. Pesa no ar a insensatez.

André de Oliveira

- Você é terrorista? - pergunta o juiz.
- Não! Não sou terrorista.
- Mas você deve dizer que sim, que é terrorista, para que nesse momento fique em liberdade e possa estar sobre a proteção legal da Lei do Arrependimento!
- Mas não pode ser. Como posso dizer que sou terrorista, quando não o sou...

Coagida. Amedrontada. Sem conhecer as conseqüências reais da resposta “Sim, sou terrorista”. Pressionada pelo comissário de polícia de Cajabamba, povoado onde vivia, com recomendações de que seria a melhor escolha. Num turbilhão de confussões, Natividad Obeso, peruana refugiada na Argentina há 11 anos, deixa naquele momento uma marca profunda em sua vida: ser perseguida pela Justiça peruana por suspeita de crime que nunca cometeu.

Porto Alegre, 2005. Fora do Peru esquecida pelo mundo.

Só lhe resta agora denunciar sua condição oprimida e mobilizar solidariedade. Foi o que Natividad fez no painel “Refugiados”, do Fórum Social da Migrações, na tarde do domingo 23 de janeiro. Ergueu o braço no momento reservado à exposição de depoimentos. Denunciou. Porém não recebeu a solidariedade esperada. Sua voz era a súplica da ajuda. A resposta veio, lamentavelmente, pela perplexidade dos participantes. E a reação dela, o nó da angústia.

O silêncio refugiado de milhares de peruanas acusadas de terrorismo durante a ditadura militar de Alberto Fujimori permanece esquecido. Não há qualquer movimento organizado no Peru que logre reivindicar o fim de acusações mentirosas e defenda seus direitos fundamentais. Natividad e outras tantas peruanas estão lançadas ao destino trágico do abandono. Peregrinam em busca dum espaço humano de acolhida para resolver tantas injustiças. Peregrinam em busca da verdade.

Estas mulheres fazem parte do imenso contingente de pessoas obrigadas a abandonar o que as identifica e sustenta. Difícil de contar, mas o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ANCUR) estima em 17 milhões, só os que vivem em acampamentos. Outros números apontam 175 milhões de pessoas buscando sobreviver fora de seu país por conflitos variados.

São muitos. E são sós. O sentimento de solidão e afastamento domina a história de um refugiado. A intolerância reprime, distancia e isola. Cada caso tem seu sintoma degradante específico. O de Natividad é só um deles.

À sombra do Sendero Luminoso
O início da tormenta de Natividad está na bem sucedida aposta no negócio de revenda de cervejas nos povoados vizinhos à Cajabamba. O aumento dos lucros fez dela alvo fácil no regime de extorsão praticado pelo movimento armado peruano, que age com desenvoltura por esta região. Natividad sempre pagou regularmente o suborno exigido por medo. Mas o que incomodava os que a extorquiam era sua inserção comunitária durante a campanha para eleições municipais daquele ano. É que melhorar as condições de vida, para quem não necessita, só atrapalha é o que entendem os chefes do Sendero.

Numa noite, senderistas a capturaram e a levaram numa celebração em homenagem à Mão Tse-Tung. Na verdade se tratava de um julgamento popular. No banco dos réus, Natividad, sem entender nada do que se passava. A única lembrança é de que foi absolvida por seus conterrâneos e ordenada a desaparecer da festa imediatamente.

Natividad procurou a polícia para formalizar denúncia de seqüestro. O mesmo delegado, que meses depois aconselharia ela a assinar a confissão de terrorista, foi quem não aceitou sua queixa, sem explicar qualquer motivo.

Meses depois, chega à Cajabamba uma ordem de captura contra Natividad pela acusação de colaboração estratégica com o movimento Sendero Luminoso. O indiciamento partira de Leodan Alfonso Alcalde, condenado como terrorista arrependido e transformado em fonte de denúncia pelo órgãos de segurança pública. Detalhe: Natividad, até hoje, não tem a mínima noção de quem seja o sujeito.

Antes da chegada dos policiais, Natividad, mãe de quatro filhos, foge para um povoado distante, aluga uma casa, coloca sua mãe como guradião da família, foge para a Argentina, passa a sofrer discriminação étnica e social por ser imigrante e fica os próximos sete anos como fugitiva ilegal. Só em novembro de 2001 a Justiça Argentina emite sentença reconhecendo sua situação de refugiada.

Desde então passou a integrar a luta organizada dos militantes na Argentina. É presidente do grupo Mujeres Peruanas Unidas Migrantes y Refugiadas. Seu desejo é voltar para seu país. A ordem de captura desencoraja a tentativa de encarar os tribunais. O crime de terrorismo não tem prescrição no Peru.
Lhe restam quatro alternativas. Enfretar diretamente o processo judicial, o que significa sua imediata prisão. Apresentar uma defesa de inocência desde a Argentina, com uma chance muito reduzida de ser aceita, pois como poderá abrir um processo em que não haverá interrogatório. Levar o caso até a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ou permanecer em Buenos Aires, determinada a esperar a dia em que a insensatez que pesa no ar abra um brecha a uma ajuda que chegaria na rua Jufre, sala 2, sede de sua organização. Natividad tem fé. É uma lutadora refugiada. Trabalhadora oprimida.

Buffet 1

Buffet 2

Uma criança morre a cada cinco segundos no mundo...

Fabiana Mendonça

E a família senta a mesa para o abençoado almoço, aos berros com os seus e em silêncio servil frente à televisão.
E a filha reclama com os pais pelo imperdoável ato de não poder consumir um produto qualquer novo, cheiroso, dentre tantos que a sociedade apresenta.
E o marido que briga com a mulher por ela ter se tornado parte da mobília e ela exige em troca que ele ainda seja a ilusão de um tal príncipe encantado tão vendido em histórias capitalistas-infantis.
E uma criança morre a cada cinco segundos no mundo...
E os governos e suas amigas empresas buscam mais controles e maior poder em outros territórios além-mar. E políticos “representantes” do povo, que em seus currículos jamais consultaram o interesse popular, criam leis e governam para si, para os amigos, parceiros e financiadores.
E o mundo é regido pelo poder financeiro, onde vidas são traduzidas em números, sentimentos são manipulados pela publicidade e tudo recebe um código de barras com seu valor pré-estabelecido. O dinheiro é sua religião dominante.
E uma criança morre a cada cinco segundos no mundo...
E numa mesa de bar um grupo de amigos bebe há várias horas e nem sequer se cogita em falar em crianças, muito menos naquelas que desfalecem em algum lugar do mundo.
E nos corredores do alto poder, crianças não entram, pois o lugar está abarrotado de quem dá mais, de ternos, gravatas e tailleurzinhos comprando ou vendendo a vida de mais uma dessas inocentes criaturas prematuramente arrancadas do mundo.
E ninguém fala sobre isso, não nasce um mísero rubor de vergonha na cara de nenhum santo cristão, ateu, ou seja lá que deus escolheu para seguir.
E não salta uma indignação sequer em algum peito que ainda tenha algum órgão a pulsar.
E uma criança morre a cada cinco segundos no mundo...
E não acorda memória nenhuma que lembre o que é ser criança. E essas que estamos fingindo desconhecê-las, no curso normal da vida têm seus corpos desprendidos das almas cedo demais.
E UMA CRIANÇA MORRE A CADA CINCO SEGUNDOS NO MUNDO!
E O QUE TU FAZ A CADA CINCO SEGUN-DOS DA TUA VIDA?


E algum título descreve essa situação?

Vem cá, por que tu me olha assim? Vejo medo em teus olhos e repulsa em tua expressão. Por que muda de caminho para não cruzar comigo? Tu desvia o olhar e finge que não me vê. Por que amaldiçoa minha existência? Em rodas de amigos finge compaixão e sozinho em teu egoísmo sente-se aliviado pelo assassinato de mais um dos meus?
Ei, olhe para mim. Mire bem meu rosto e seja franco contigo. Acredita que sou assim porque quero? Olhe para meus pés. Uso chinelos. Acha que não sinto frio no inverno? Acha que estou precariamente vestido porque quero? Crê que peço comida por gula? Que cheiro cola para tornar mais divertida a vida? A cola é o meu cobertor, o meu agasalho nas noites frias de um inverno sem piedade. Te incomodo porque urino em tuas calçadas e defeco em tuas praças? Meus filhos ranhentos não são dignos de brincar com os teus? Acaso os sonhos infantis não são os mesmos, recheados de super-heróis, grandes partidas de futebol, uma casa arrumadinha num futuro colo-rido? Todos fazem parte da mesma geração que nos sucederá. E onde está a diferença?
E tu, o que faz por mim? Crê que não tem responsabilidade sobre como vivo? Olhe para longe do teu umbigo. Também tenho umbigo. E tenho outras marcas de violência, outros buracos de bala, outras tentativas de me expulsarem deste mundo. E este mundo também não é meu? Também não mereço casa? Por que não me dá emprego? E por que não me educa?
Não me censure por ser a conseqüência da tua falta de ação. A cidade também é minha. As ruas também são minhas. Mas antes eu as tivesse como trilhas para bem viver. Antes eu as não usasse para dormir.
Sim, sou morador de rua.

Entrevista com Santiago

Neltair Rebés Abreu, conhecido como Santiago, é um cartunista de dar orgulho para qualquer gaúcho. É um dos melhores do mundo. Só isso já serve para explicarmos o porquê dele ser o nosso primeiro entrevistado. Mas, além disso, o Santiago é uma figuraça, um cara simples como o traço dele e sempre bem humorado. E a imprensa do Rio Grande do Sul, com exceção do Jornal do Comércio que contratou o cara, é de uma mediocridade e de uma ignorância atroz por boicotarem ele e os demais cartunistas talentosos que o nosso estado tem. Mas o seu Neltair é muito maior que qualquer jornalzinho metido a besta. E o Bodoqe oferece sempre as páginas para o seu talento, o que para nós é uma honra.
Participaram da entrevista a Fabiana, o Rafael, o André e o Pedro Metz. Ela foi realizada há algum tempo e aqui transcrevemos alguns dos melhores trechos. Bom proveito!


O INÍCIO
Eu desenhava desde menino. Quando vim para Porto Alegre, eu estava entre fazer o curso de jornalismo e o de arquitetura. Nesse tempo, comecei a fazer jornais estudantis e senti que havia um certo mercado para o humor, mas eu achava que não sabia fazer humor, só histórias em quadrinhos, com situações realistas. Depois descobri que eu tinha aquilo que chamam de verve, aquela coisa de tu criar situações engraçadas, pessoas que têm senso de humor. Aí não parei mais. Nesse tempo, comecei a publicar num espaço chamado Quadrão, uma página que o jornal Folha da Manhã, na década de 70, mantinha para iniciantes. Aquilo me deu um estímulo. Depois de um tempo fui contratado pela Folha da Tarde para fazer algumas ilustrações. E comecei a ganhar alguma coisa por aí. Botei a cara nisso e tornei minha profissão. Desisti do curso de arquitetura.

TINTIN
Eu sempre lia humor, gostava. Minhas influências na infância é Disney. Na adolescência eu comecei a ler Tintin, depois, aqueles humoristas da Revista Cruzeiro. Já na minha juventude apareceu o Pasquim, eu já conhecia o trabalho do Ziraldo, do Jaguar e tal. O meu desenho acho que é filhote do Hergê, do Tintin. Quando eu comecei a exercitar o humor, a minha linha era a clara, como se diz, o traço limpo, que é a escola dos belgas, do Tintin. Eu tive uma fase incrível que eu copiava o Ziraldo. Eu tinha cerca de 20 anos nessa época. Depois, consegui me livrar do Ziraldo, tanto que eu parti para um desenho bem diferente do dele.

PASQUIM
Quando eu iniciei na Folha da Tarde, comecei a me sentir mais seguro e arrisquei mandar algumas coisas para o Pasquim. O pessoal gostou e publicou. Fiquei entusiasmado e comecei a mandar com freqüência. Tive uma participação boa no Pasquim, lá por 77, 78 até a data de fechar. Fui colaborador habitual. Tinha desenhos que quando a Folha da Tarde não queria publicar, eu mandava para o Pasquim e saía e era um sucesso. Quando um desenho era negado pela chefia de um grande jornal naquela época, queria dizer que era um desenho bom, contundente, era crítico.

COOJORNAL
Eu era só ilustrador e às vezes fazia uma charge para o jornal. Eu ilustrava uma crônica do Luís Fernando Veríssimo. Quando surgiu a cooperativa eu me associei. O Coojornal foi uma reação imediata ao fechamento da Folha da Manhã, que foi um jornal muito livre, que marcou época por ser combativo. E com um padrão de jornalismo que nunca mais voltou a ter aqui no sul. E como era um jornal nessa linha, ele foi pressionado até que em 1975 todo mundo pediu demissão. E esse pessoal, que era uma nata do jornalismo jovem, com muita garra, com vontade de desafiar a ditadura ficou inconformado. Como já havia um embrião de uma cooperativa, esse pessoal se reforçou em torno dela.

REVISTA BUNDAS
Acho que o Ziraldo centralizou muito na pessoa dele, que é um senhor com mais de 70 anos. Ficou uma visão de pessoas mais velhas. Acho que ela tinha que ter um caráter mais renovado, eu não sei bem o que é... Algumas sessões feitas por cabeças mais jovens. Além disso, acho que ela foi atropelada também pela questão econômica. Tenho certeza que foi um boicote econômico das agências de propaganda. Os publicitários sempre gostam de se auto-elogiar, se dizem ousados... Aí quando surge uma revista Bundas, eles não botam anúncio porque dizem que é imoral, que é um palavrão... Onde está a ousadia desses caras então? Usaram a desculpa de que Bundas era um nome muito forte e o anunciante não queria se vincular a isso. Mas como é que os caras fazem anúncios com bebidas que tem muito mais que bundas, mais que sexo? A própria publicidade, às vezes, cai num mal gosto, com apelo sexual e tudo mais.

ESTADÃO
A experiência com o Estadão foi a mais terrível que eu já tive na minha vida. Fiquei nove meses mandando desenho daqui de Porto Alegre. Tinha que fazer três, quatro desenhos, pois os caras viam fantasmas em tudo que é coisa. Era cada análise mais maluca... Desenho que tinha um carinha de pé torto não podia porque a “sociedade dos pés tortos” iria reclamar... Então como fazer humor? O humor é extremamente livre, solto e irreverente. Humor é subversão, ele subverte as coisas. Fazer uma coisa comportadinha é o caminho para não ter graça nenhuma.

BOICOTE
Todo o Brasil elogia a qualidade dos cartunistas daqui. Tem o Moa, o Bier, o Edgar Vasques, o Juska, que são excelentes desenhistas. Como é que esses caras não estão nos jornais? Ninguém contrata esse pessoal. Por que? É por ignorância? Eles não sabem que tem essa mão-de-obra, que é barata e boa? Ou é muita ignorância ou é uma marcação em cima. Eu quero crer que os caras têm medo do humor por ele ser bem popular. Eles não conseguiram inventar ainda uma figura que tem de sobra na área do texto que são os “colunistas amestrados”. Não conseguiram inventar ainda o “cartunista amestrado”. Se bem que tem um que é até amestrado demais. Um amestrado que chega ser guardião dos interesses do patrão dele.

SÁBIAS PALAVRAS
Eu não posso pensar que nem o patrão. O negócio dele é outro. Ficam falando que o anunciante vai tirar o anúncio, mas ele precisa do veículo. Não tem que ficar cortejando o anunciante.

Aço e Carne

Adel Braga

Mesmo depois de ter feito aquilo dezenas de vezes, o carrasco ainda sentia-se desconfortável e triste. Sendo incapaz de eliminar seus sentimentos, ele teve que aprender a controlá-los. Para isso, ele dizia a si mesmo que não era ele quem matava. Considerava-se tão inocente quanto a lâmina - um feito de aço, o outro de carne, mas essencialmente iguais. O carrasco não mata, a lâmina não mata. Pensar que ela era sua cúmplice na inocência ajudava a tornar o trabalho mais simples, diminuindo seu desconforto.
Às vezes sentia que não era um bom profissional. Achava que não devia sentir nada pelos homens e mulheres que executava. Mas com o tempo acostumou-se consigo mesmo e descobriu que podia fazer seu trabalho com grande eficiência.
Aquele dia tudo aconteceu como sempre. As horas passaram em seu ritmo normal. Os sentimentos vieram de sua maneira costumeira, intensificando a medida em que a hora aproximava-se - não vieram nem mais nem menos intensos. Quando achou que era o momento, o carrasco soltou a corda que prendia a lâmina que, com a velocidade e frieza da luz do relâmpago, separou sua cabeça encapuzada de seu, agora inerte, corpo.

Arte, por Hals

Arte, por Rafael Corrêa

Somos

Jefferson Pinheiro

Eu sou a profissional do sexo com nojo do próprio corpo, vendo carinhos falsos como flores de plástico. Sou o rico que odeia o pobre. O pobre que odeia o rico. Sou o assassino fardado. O policial envergonhado da farda. Sou mais uma criança que morre de fome enquanto o mundo ri e se diverte. Sou o protesto na porta da fábrica. O sindicalista encomendado ao matador de aluguel. O homem-bomba aos pedaços antes da bomba. A menina com o rosto refletido no esgoto. Sou a deficiente na cadeira de rodas rasgando solitária as pedras da rua. O cara que saiu pra estuprar a garota após uma overdose de sexo pela TV. Sou o idoso que apodrece na fila do hospital público. A menina negra que só tem bonecas loiras pra brincar. Sou o voto nos filhos da puta que vende o futuro do país. O operário que não almoça. O rio poluído com os dejetos químicos das empresas. Sou o lobby de políticos pra favorecer latifundiários. O trabalhador mantido escravo na fazenda. A criança indígena assistindo desenho animado pela vitrine. A criança sem doce nem brinquedo que o noel esqueceu no Natal. Sou aquele que sofre em silêncio o que a vida lhe deu de presente. Sou os olhos fundos, gordos de lágrimas. Sou o cão sarnoso com a espinha quebrada a pau. O veneno no bucho do cão que desagradou ao vizinho. Sou o cego esperando ajuda pra atravessar a rua. A dignidade que não se quer enxergar no olhar do morador de rua. Sou a falta de oportunidade num país injusto. A menina que o pai vendeu ao gigolô. O menino pra quem você fechou o vidro. O cara comendo os restos do seu lixo. Sou a grávida descalça com um sorriso estranho, caminhando na chuva de inverno em meio ao trânsito. A menina que desmaiou de fome na escola. A seringa do pó. O sangue infectado com HIV. Sou a fatalidade que você atropela justamente quando encheu a cara de álcool. Sou mais um agricultor sob a lona, com bandeira e sem terra, plantado ao longo da BR 290. Sou mais um trabalhador sem trabalho, mais um número nas estatísticas. Eu sou o filho sem pai, a mãe sem marido, o pai sem mulher nem filho, sou mais uma família que se perdeu. O animal que nasceu pro abate sou dinheiro nas mãos de quem comprou a minha vida e vendeu a minha morte. Sou mais um menino sem teto, sem família nem governo que não tem pra onde ir e sobrevive de migalhas.A pobreza espancada e humilhada. Sou o medo na manhã do carcereiro, do presidiário, da visita íntima. Sou a manhã sem luz, presa, sufocada contra o tempo. O preconceito e o dinheiro na sentença do juiz. O suicida caindo do 17º desandar. A inundação das lágrimas que arrebentam com todas as portas e cavam todos os túmulos. A ligação que não foi feita, o abraço que não foi dado, a palavra de carinho que não foi dita, sou o gesto de amor que não se realizou. A cruz de braços abertos que vai se jogar do topo da igreja. Sou o suicídio da fé. A Constituição servindo ao pó na estante. A espinha na qual se alojou o projétil. O crânio prometido pra bala de fuzil. Sou a criança sem escola nem infância. O homem inventado por Deus, aprendo enquanto me arrebento. Sou o amor apodrecendo em frente à porta. Quem não tem pra onde correr. A resposta para o que você não quer perguntar, a explicação para o que você não quer saber. A esperança que se perdeu do futuro.

Mas também sou a consciência que não se apaga, a voz que não cala e o punho cerrado contra a tua cara. O jornalismo e a catarse que não têm preço e o suor dos que não desistem de lutar. Sou o que guarda o segredo da dor. O que está por trás do que ninguém entende. Sou eu, você e todos. Porque não exista quem não esteja no sofrimento dos outros nesse dia comum perdido no espaço e no tempo.

2335 caracteres para falar do Brasil é pouco

Gustavo Türck

Disseram que eu teria 3 mil caracteres para escrever no Bodoqe. Aí resolvi mandar um texto antigo que fiz. Interessante. Deve estar aqui do lado. Bom, o que já era pouco ficou menor ainda.

Então fiquei pensando no que escrever neste pequeno espaço que sobrou. Tinha que ser sobre o Brasil, claro. Quem sabe sobre a situação econômica? Bom, mas daí eu teria que analisar todo o crescimento histórico desta colônia, culminando nos anos de Palocci & Cia, que mantêm a matriz tributária absurda, cobrando dos pobres impostos e isentando os ricos. Seria algo como um Robin Hood às avessas. Certamente eu faria a comparação com o regime feudal, quando os senhores das terras cobravam dos servos impostos até para usar ferramenta. Mas não ia dar certo.
Muita coisa para falar e pouco espaço para escrever.
Desisti.

Daí pensei em escrever sobre o Judiciário. Nosso presidente já disse, certa vez, que os caras têm uma caixa preta. Olha, só se for cheia de dinheiro, porque o que ganha grana essa gente... Se eu fosse escrever sobre esse poder, diria que eles formam uma casta praticamente impenetrável. Eu teria que falar sobre os astronômicos salários dos juízes e desembargadores e certamente teria que levantar o fato do tal de Auxílio Moradia.
Onde já se viu isso?! Quem ganha salário mínimo no Brasil tem que se virar para morar onde der, mas quem ganha 5 dígitos de salário tem ainda auxílio para morar?! Meu Deus. Ah! E certamente eu teria que contar a história do casamento da filha do presidente do Tribunal aqui do Rio Grande do Sul. Um tal de Stefanelo. Foram distribuídas na festa caixas dos mais caros charutos cubanos e tiarinhas de antenas. Aquelas tipo marciano. Só que na ponta, ao invés das costumeiras bolinhas, havia cifrões. Isso é tripudiar na pobreza. Imagina como se acendiam os charutos nessa festa...

E eu poderia também estar falando dos nossos deputados que decidem o tamanho do seu salário e só legislam em causa própria, ou então da questão do ensino na universidade que ao invés de formar cidadãos forma mão-de-obra qualificada. Eu poderia falar ainda da mídia brasileira, na mão dos grandes grupos, virada em novela e noticiário de agência. Ou então da Venezuela! Isso! Que Brasil que nada! Vou escrever sobre Hugo Chávez! A Verdadeira Revolução não Será Televisionada!

Vamos lá, então... Ih! Acabou meu espaço...


BRASIL

“Brasil, mostra a tua cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim”, confia em mim Brasil, confia...

Bandeira, auriverde pendão, estandarte de um povo sofrido. Tens a imagem de teu povo. Judiada, maltratada, pisoteada, mas viva! Apoiada em mãos trabalhadoras, por detrás de sua fazenda encontra-se teu filho. Esperançoso, o último a morrer!

Por mais que uns se perguntem “Mas que país é este?!”, ou de versos em prosa destoem o caminhar glorioso de uma gente de fé, com futuro, tua glória, teu colorido preto-e-branco mantêm-se imponente. Por mais que mãos estrangeiras venham te afagar para logo depois rasgar-te, destruir teu patrimônio, ainda sobra a tua gente, a tua música...

Pátria amada idolatrada, meu lar... Salve, salve! Não tens culpa de quem a dirige, assistes a uma degradação um tanto perene, um desrespeito para com tuas majestosas estrelas, tua voz se faz rouca, “Ordem e Progresso”...

Dos filhos deste solo és mãe gentil, mãe chorosa, desesperada. Tens o solo, tens os filhos, mas a estes é negado teu colo, teu amor, tua terra...

Lábaro estrelado, maravilhoso pano de fundo de injustiças, parque de diversões do capital!!! Teus enteados não a deixarão só!!! Urge respeito ao teu desenho!!!

Vamos, bandeira, ensina-me a ser forte! A ter esperança! A amar-te...

Vamos, bandeira, de mãos dadas decidir nosso futuro. Em punho a tua coragem, o teu choro raivoso me guiarás ao teu coração! Sentirei a tua dor, sou teu filho... “Eles” sentirão o teu, o nosso perdão...
Às margens plácidas de um riacho, se fez um país, uma nação, consumou-se um povo, um amor. A tua literatura, tua poesia, tua juventude, nossa... Destoa ao longe o brado retumbante “PÁTRIA AMADA BRASIL”!!!

Artur, o Arteiro, por Rafael Corrêa