* Matérias publicadas originalmente no jornal Extra Classe (edição online, dezembro de 2018) em versão editada.
Para acessar o jornal, clique: https://www.extraclasse.org.br/educacao/2018/12/os-desafios-do-uso-das-midias-em-sala-de-aula/
Os desafios do uso das mídias em sala de aula
Vinte anos se passaram entre o 1º Congresso Internacional de Comunicação e Educação e o 2º Congresso, realizados pelo Núcleo de Comunicação e Educação da Universidade de São Paulo (USP), sedimentando o enlace entre estas duas áreas do saber. O mais recente, em novembro de 2018, foi marcado por constatações: a Educomunicação deve estar inserida nas políticas públicas e currículos; e, com a chegada de computadores e outras tecnologias às escolas, é hora de reforçar códigos de ética e uso responsável das mídias, proteger dados pessoais e combater a desinformação.
Em São Paulo, o colégio particular Dante Alighieri e a Escola Municipal de Ensino Fundamental Casa Blanca reuniram este ano seus estudantes para discutir como se envolveriam nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Os jovens assinaram um documento dizendo: “Eu me comprometo a, em 2030, ter desenvolvido tais ações...” A ideia, diz o professor Ismar de Oliveira Soares (na foto à esquerda), é que a criança planeje sua relação de comunicação com o mundo na busca de soluções para os grandes problemas mundiais, saindo da individual para o coletivo. “Essa perspectiva é educativa e comunicativa. Daí o conceito e a prática da Educomunicação”, observa Soares, professor da ECA/USP e presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores e Profissionais em Educomunicação (APBEducom).
#pracegover: foto vertical. O professor Ismar
está em pé, na frente de uma parede vermelha,
ao lado de um banner do II Congresso
de Comunicação e Educação. Ele olha para
a câmera. Está sorrindo.
A Educomunicação pode assumir outros nomes, como Educação para Mídia ou Alfabetização Midiática e Informacional (Media and Information Literacy), mas o princípio é: não basta ter acesso à tecnologia. Professores e estudantes devem se envolver no processo de construção do conhecimento, discutir as implicações ética e responsabilidade das mídias no espaço escolar e na relação com o entorno. “A interface Comunicação e Educação tem raízes na América Latina na metade do século XX, quando a sociedade marginalizada e os movimentos sociais lutavam por meios de expressão, a Comunicação Alternativa. Ao mesmo tempo se difundia pelo continente, a partir do pensamento de Paulo Freire, a Educação Popular”, conta Soares. O objetivo era colocar para a sociedade temas que a grande mídia desconsiderava e a educação não levava em conta, como meio ambiente, democracia, questões étnicas, raciais, de gênero.
Em 2001, o Núcleo de Comunicação e Educação da USP recebeu o convite da rede pública municipal de São Paulo para ajudar a resolver o problema da violência nas escolas. “O sucesso da experiência se deve ao fato de que não foi dado um curso para professores, porém desenvolvidas experiências de práxis educomunicativas, com diálogo envolvendo professores, alunos e membros das comunidades escolares de 455 escolas”, recorda Soares. Sete administrações públicas depois, a Educomunicação segue inserida na rede de São Paulo desde o Ensino Infantil até o Fundamental.
Em outras escolas públicas e privadas, multiplicam-se projetos de Educomunicação. A rede das Irmãs Salesianas – Inspetoria das Filhas de Maria Auxiliadora, por exemplo, inseriu o conceito como referência de prática pedagógica em cinco continentes. “O que nos levou à Educomunicação foi a proximidade com a proposta do ensino preventivo”, disse a Irmã Márcia Koffermann, durante o Congresso. Nos últimos 20 anos, 350 teses de Mestrado e Doutorado retratando experiências educomunicativas foram defendidas em 92 centros de pós-graduação. A Universidade Federal de Campina Grande (PB) lançou o Bacharelado em Educomunicação e a Escola de Comunicações e de Artes da USP criou a Licenciatura em Educomunicação. No RS, há experiências em universidades e escolas.
Se antigamente a Educomunicação lutava pela expansão das oportunidades de comunicação, hoje discute como inserir a responsabilidade no uso de tecnologias na formação desde a infância. “As pessoas se apoderaram da mídia por um aprendizado intuitivo, com a perspectiva imediata de se sentirem autoras. As fake news são produto da abundância de canais, sem o necessário compromisso social para o seu uso”, explica Soares.
As jovens Nataly Mendes, 13 anos; Bianca Barcellos, 14, Marina Raniere, 14, e Naira Rivelli, 14 (na foto acima), estudantes de SP, deram palestra e participaram da cobertura midiática do Congresso. Envolvidas com a elaboração de programas de rádio e vídeo na escola, sabem a importância da Educomunicação. “Creio que seja a fonte maior de aprendizado para mudar o mundo, olhar para as coisas de forma diferente e entender o que vemos a nossa volta”, resumiu Naira.
#pracegover: Bianca, Nataly, Marina e Naira estão em pé, olhando para a câmera, sorrindo, na frente de um fundo preto. Elas tem os braços entrelaçados. |
No Canadá, está nos currículos, mas na maioria dos países ainda são iniciativas isoladas
Uma mobilização de professores de Ontário, no Canadá, criou em 1978 a Associação para a Educação Midiática (Association for Media Literacy) e hoje a Educomunicação é obrigatória e faz parte dos currículos escolares daquele país. “Na época não havia Internet, mas o grupo conseguiu se reunir e falar sobre suas paixões, se organizou e chamou a atenção dos administradores e do Ministério da Educação”, conta a professora Carolyn Wilson, da Faculdade de Educação da Western University, que esteve em São Paulo para o II Congresso Internacional de Comunicação e Educação, na ECA/USP, em novembro deste ano. “Alguns fatos podem ter ajudado, como a preocupação com a violência na televisão e o avanço da cultura norte-americana no mercado canadense”, reflete.
Carolyn Wilson |
A iniciativa daquele grupo provou ser visionária, segundo Carolyn. “Acreditamos que o público pode ser ativo na recepção da mídia”, diz. Alguns critérios para o sucesso deste movimento são o envolvimento de professores, pais e mães; o apoio das autoridades; o treinamento de profissionais nas faculdades de Educação e Comunicação; o desenvolvimento de estudos e pesquisas; consultoria para escolas e disponibilização de materiais relevantes para uso em sala de aula. A Associação realiza oficinas e conferências para disseminar informação e ajudar no desenvolvimento do currículo. Há muito material de apoio no site da Aliança Global para Parcerias na Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco (GAPMIL, sigla em inglês), da qual Carolyn é presidente do Comitê Diretivo Internacional.
Gianna Cappello |
Na Itália, onde as atividades de Educação para Mídia não são obrigatórias, as iniciativas existem graças ao esforço de professores. “A Comunidade Europeia recomenda a Alfabetização Midiática como um fator que leva à cidadania”, lembra Gianna Maria Cappello, da Università degli Studi di Palermo, em Roma, e integrante da Associazione Italiana per l’Educazione ai media e alla Comunicazione, que há 27 anos realiza cursos de verão para treinar professores e profissionais. Existe tecnologia nas escolas, mas a habilidade de uso está ainda muito voltada para o mercado de trabalho. O interesse pela utilização dos meios se tornou maior recentemente com o evento das fake news. “A Educação para Mídia desenvolve o pensamento crítico”, lembra.
Gianna argumenta que a Alfabetização Midiática é apenas parte da solução do problema: “Precisamos fazer uma reforma dos meios. Se queremos a Internet como espaço livre, temos que ter regulação e transparência, quebrar monopólios comerciais, controlar o uso de dados pessoais”. Sugere que as empresas digitais paguem taxas a serem reinvestidas em programas de educação para os meios. “Empresas como Google e Apple não são neutras, precisam se alinhar à regulação da mídia”, observa. Preocupa a Gianna a inserção destas empresas nas escolas da Itália, oferecendo treinamento a professores, expandindo suas marcas.
Gullermo Orozco Gómez |
Já existe atualmente um movimento de formação de redes de defesa das audiências em vários países para avaliar o conteúdo dos meios veiculados, inclusive na América Latina, informou, durante o Congresso, Guillermo Orozco Gómez, professor da Universidad de Guadalajara, no México, membro da Associação Latino-Americana de Investigadores da Comunicação. “Este é o momento para trabalharmos unidos mais do que nunca, de fazermos um movimento latino-americano de Alfabetização Midiática entendendo suas contradições”, convocou.
No RS, experiências criativas extrapolam fronteiras
Nas aulas de vídeo do professor de História Jesualdo Freitas de Freitas, da Escola Municipal de Ensino Fundamental (E.M.E.F.) Timbaúva, em Porto Alegre, os tripés para estabilizar a filmagem feita por ele e os estudantes são montados com canos de PVC, e terão rodas adaptadas de uma cadeira giratória para o movimento de câmera. “Todo mundo curte. Equipamento para nós é celular, não temos muitas possibilidades”, avisa. Alunos do turno inverso e da Educação Integral fazem oficinas de fotografia e vídeo. Outros professores perceberam as mudanças nos estudantes e passaram a colaborar. Freitas começou a atuar como educomunicador produzindo programas de rádio-poste com alunos da E.M.E.F. Chico Mendes em 2004. “No início, tinham vergonha de faltar, depois se soltavam”, conta.
Freitas é um dos professores que já exercia a Educomunicação sem saber que tinha esse nome. Sua experiência está documentada em um blog e pode ser replicada em qualquer escola. Quando descobriu a APBEducom em 2012, passou a participar de encontros nacionais e regionais, como o Educom Sul.
A professora Rosane Rosa foi uma das pioneiras nessa área. Em 2008 deu início ao Programa de Ensino Pesquisa e Extensão Educomunicação e Cidadania da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). O encontro Educom Sul nasceu sob a iniciativa de seu grupo de pesquisa Comunicação, Educação e Cidadania, ligado ao Programa de Pós-graduação de Comunicação Midiática e ao Programa de Tecnologias Educacionais em Rede da UFSM, com a proposta de ser itinerante para expandir a Educomunicação no Rio Grande do Sul. A primeira edição foi na UFSM, a segunda na UNIJUÍ, a terceira na PUC. “Sempre teve parceria com a Secretaria Estadual de Educação e a Coordenadoria Regional de Educação do local, com vagas reservadas para professores da rede pública, priorizando quem desenvolve projetos educomunicativos e políticas envolvendo Comunicação e Mediação Tecnológica”, observou. Ela concedeu esta entrevista por e-mail, de Maputo, onde atualmente atua no Projeto de Educomunicação Intercultural entre Brasil e Moçambique.
O próximo Educom Sul será na UFRGS, em data a ser definida, reunindo profissionais e pesquisadores de Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. “Será um momento para que as pessoas se conheçam, façam parcerias”, informa Evelin Haslinger, mestre em Ciências da Comunicação e integrante do Núcleo da ABPEducom RS.
#pracegover: A educomunicadora Evelin está sentada (é aprimeira à esquerda, olhando para a câmera) com um grupo de jovens do Mostratec Júnior. (Foto: Arquivo Pessoal) |
Evelin é educomunicadora voluntária na Mostratec Júnior, projeto da Fundação Liberato, e em cursos para professores e jovens em situação de risco social. “Estamos diante de uma sociedade que tem muitas informações e tecnologias, mas não sabe lidar com tantos recursos. A Educomunicação permite reflexões: precisamos do conhecimento, das técnicas, mas acima de tudo precisamos ser solidários e humanos, respeitar e compreender os jovens”, acredita.
Em sua dissertação de Mestrado intitulada “Era uma vez Frozen: o conto de fadas e suas ressignificações na circulação midiática”, Evelin mostra como as pessoas se apropriaram da personagem da Disney e da música “Let it go”, produzindo outros significados, como memes e paródias na Internet. “Trouxe elementos para contribuir com o contexto atual educacional, em que jovens não querem mais receber conteúdos prontos ou decorar, querem o protagonismo, já produzem vídeos, criam blogs. Muitos destes conteúdos são reflexivos. Nas mídias sociais encontramos espaço fértil para estimular a criatividade”, avalia, e acrescenta: “Não preciso da melhor tecnologia para trabalhar com Educomunicação, mas de uma boa relação com os educandos, para trazê-los a uma gestão democrática e compartilhada da interface Educação e Comunicação”.