sábado, 13 de maio de 2017

Leitura Crítica da Mídia: violência contra meninas e mulheres

Quando a mídia é cúmplice


Nos primeiros dias de abril de 2017, na televisão que está sempre ligada em um restaurante, uma apresentadora falava sobre o assédio sexual sofrido pela figurinista Susllen Tonani por parte do ator José Mayer, da TV Globo. Inquieto, um dos frequentadores que assistia reclamou com o amigo: “De novo? Que exagero, nem foi tão grave!”. 

Na mesma semana, enquanto a TV Globo emitia uma nota pública afirmando que “repudia toda e qualquer forma de desrespeito, violência ou preconceito” em relação ao caso de Mayer, no programa Big Brother Brasil (BBB), transmitido pela mesma emissora, o participante Marcos Harter intimidou Emily Araújo, sua então “namorada”, contra uma parede, dedo em riste, após apertar seu braço. Foi expulso do programa, depois que a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, interveio para apurar o que a delegada Márcia Noeli identificou como “um caso clássico de violência doméstica transmitida em rede nacional”. Ao comentar sobre o programa na escola, um adolescente de 16 anos retrucou: “Ele nem bateu nela!”

Ainda naquela semana, o cantor Victor Chaves, da dupla Victor e Leo, foi indiciado por agressão contra sua esposa. Chaves foi flagrado por uma câmera interna em um elevador, agredindo Poliana Bagatini, fato que tinha negado antes. Diante da denúncia, foi afastado do júri do programa The Voice Kids, competição entre crianças cantantes transmitida pela TV Globo, que encerrou aquela edição, ironicamente, com jurados e jovens cantando o refrão “Inútil, a gente somos inútil” em tom festivo.




(assista  à cena em http://gshow.globo.com/realities/the-voice-kids/videos/t/para-assinantes/v/the-voice-kids-programa-do-dia-020417-na-integra/5771729/ clicando em 01:18:14)


"Inútil" parece ser a capacidade de entender que estas situações são, sim, exemplos de violência, que é preciso falar sobre isso, ao contrário do que dizem o estudante e o homem acima descritos, e que a mídia - e aí se incluem também outras emissoras além da Rede Globo - ajudam a propagá-la. “É uma construção histórica. Há anos o corpo feminino é objetificado em propagandas e programas de entretenimento”, avalia a jornalista Iara Moura, integrante do Intervozes Coletivo Brasil de Comunicação Social e do Conselho Nacional de Direitos Humanos. “Isso acontece até no jornalismo”, constata. Dificilmente fontes de reportagens de economia são mulheres. Ou, quando há interesses econômicos e políticos, como é o caso da Reforma da Previdência, as questões das mulheres têm menos destaque. 

Iara não tem dúvida de que a expulsão do agressor no programa BBB foi uma resposta aos protestos de movimentos feministas, resultado, por sua vez, de anos de luta. “Mas foi atrasada, porque esperou chegar à violência física, e só foi interrompida pela intervenção da delegacia da mulher. Em 2012, houve um estupro presumido de uma participante do BBB que estava bêbada e na época a emissora foi omissa”, lembra. Esse fato é prejudicial do ponto de vista educativo, porque leva crer que a violência contra a mulher só se resume à agressão física, quando a Lei Maria da Penha prevê violência psicológica, sexual, moral e patrimonial. “Numa sociedade em que uma mulher é agredida a cada cinco minutos, aproveitar-se de uma situação de violência para acumular índices de audiência até o ponto em que uma agressão física chega a ser praticada de fato é, para nós, mais que omissão. É cumplicidade”, diz a Nota Pública divulgada pela Rede Mulher e Mídia da qual o Intervozes faz parte.

 “A gente cobra do Ministério Público Federal que tome medidas para responsabilizar a emissora, que é uma concessão pública”, informa Iara. E acrescenta: a sociedade pode e deve fazer esse controle social, que não é censura. “Na França, assim como nos Estados Unidos, há órgãos de controle com participação social. O órgão federal francês, por exemplo, ouviu a população em audiências públicas e elaborou recomendações para coibir situações de violência em “reality shows” como o BBB porque entende que esses programas interferem na formação cultural e de identidade das pessoas”, relata.  

COMO DENUNCIAR:
Mídia sem violações de direitos: http://www.midiasemviolacoes.com.br/ 

O projeto iniciou com denúncias de violações de direitos humanos praticadas em programas policialescos de TV. Conheça casos frequentes e saiba como denunciar. 










sexta-feira, 12 de maio de 2017

Leitura Crítica da Mídia: Como falar sobre identidade de gênero nas escolas





Mônica Waldhelm é professora do Ensino Médio, titular de Biologia no Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro (CEFET/RJ), doutora em Educação pela PUC-Rio e consultora da Unesco. 







Mônica Waldhelm foi uma das entrevistadas da reportagem “Nem uma  a menos. Mesmo? ” publicada no Jornal Extra Classe, edição 213, de maio de 2017. Por questão de espaço no jornal, foi reproduzida apenas parte das respostas enviadas pela professora por e-mail. Eis aqui a entrevista completa. 

Diz a reportagem do jornal Extra Classe: 

"Para a professora e consultora da Unesco Mônica Waldhelm, os professores não podem perder a chance de contribuir para que se concretize o papel da escola como locus social onde se espera que as aprendizagens se efetivem de modo intencional, planejado e para tod@s. “Aprendizagens que incluem reconhecimento, respeito e valorização da singularidade humana”, salienta. Mônica é uma das autoras do livro de Ciências do Projeto Apoema, aprovado pelo Plano Nacional do Livro Didático para uso em redes privada e pública, que virou notícia após o protesto de um grupo de pais de Ji-Paraná (RO). Eles consideraram as ilustrações de órgãos genitais “conteúdos de educação sexual impróprios”. Mônica sugere: “É preciso aproximar-se das famílias e de demais setores da comunidade escolar e sociedade, identificar as concepções do papel da escola e, se houver reducionismo ou crenças que limitam o trabalho em prol da diversidade, não fugir do embate. É hora de fazer parcerias, de reconhecer a dificuldade do outro – e nossa – em romper com visões de mundo cristalizadas historicamente”.

Segue a entrevista completa com a professora:

1- Pode-se dizer que a retirada dos termos "identidade de gênero e orientação sexual" da Base Nacional Comum Curricular, e a onda de conservadorismo e censura que não permitem a professor@s discutirem relações de gênero nas escolas vão fomentar ainda mais a violência contra mulheres, trans, gays, lésbicas a longo prazo, e não só nas escolas? Como, então, atuar de forma a resistir e impedir os retrocessos? 

Infelizmente, acho que esta será uma das consequências nefastas do silenciamento acerca das relações de gênero e diversidade em modo geral. Aqui no Rio de Janeiro, a escola federal onde lecionei e meu filho estudou - o tradicional Colégio Pedro II - aboliu a distinção do uniforme por gênero em 2016, abrindo caminho para o uso de saia por meninos.  Esta decisão foi resultado de uma série de discussões e mobilizações catalisadas por eventos anteriores no âmbito desta escola.  Em agosto de 2014, um grupo de estudantes promoveu um protesto para apoiar um colega transexual. Na época, a estudante que ainda usava o nome de batismo e uniforme masculino decidiu trocar as calças por uma saia durante o intervalo de aula e foi repreendida pela direção da escola. Como resposta, os colegas decidiram vestir saias em apoio.  Em setembro do ano passado, o "x" foi colocado no lugar das letras "a" e "o" em avisos institucionais e em provas. A medida foi adotada para respeitar a liberdade de gênero, mas a escolha acabou gerando polêmica. Alguns chegaram a argumentar que o uso da letra no lugar dos artigos masculino e feminino desrespeitava a língua portuguesa.
    A decisão do Colégio Pedro II, festejada por quem reconheceu nela um avanço no respeito à diversidade, foi criticada duramente pelos mesmos grupos que em sua maioria defendem a patrulha ideológica no âmbito da escola.  O referido colégio - incluindo o reitor e alguns docentes-  é alvo de um processo judicial. 
    Onde trabalho atualmente, no CEFET/RJ, o uniforme é um jaleco. Saias e bermudas só são proibidas (para ambos os gêneros) nas aulas nos laboratórios onde há regras para a segurança física.   Como professora, sinto-me feliz ao ver casais homossexuais de mãos dadas no intervalo das aulas, de ter um aluno de vestido florido, jaleco da escola e batom, sentado na primeira fileira da sala, sem se sentir constrangido por mim ou pelos colegas. Mas reconheço o estranhamento e desconforto ainda presente na escola.  Como uma camada densa de ar que luta para se dissipar. Novos ventos precisam continuar soprando para que isso possa acontecer. 
          Percebe-se que não há como descolar uma questão da outra. O conservadorismo vem se impregnando, tentando fincar suas raízes nas diferentes esferas do trabalho realizado pela escola.  Seja na discussão dos currículos, nas reflexões propostas pelos docentes, na eleição de diretores, no papel dos grêmios escolares, nos uniformes, eventos comemorativos ... e nos livros didáticos adotados.  
           Se não há discussão sobre diversidade na escola, naturalizam-se o preconceito e discriminação e a violência decorrente destes. A meta não pode ser reduzida à simples tolerância.  É preciso querer mais da sociedade. E do papel da escola. Currículos, projetos e práticas pedagógicas devem explicitar a importância da problematização das questões de gênero assim como o racismo, a bioética, o papel da mídia, a política. Todas urgentes e necessárias. O contexto atual, com a exclusão do "dos termos “gênero e orientação sexual” da última versão do texto da Base Nacional Comum Curricular entregue ao Conselho Nacional de Educação é desfavorável e represente um retrocesso preocupante, sem dúvida.  Mas não impede que as secretarias, escolas, professores e autores de livros didáticos continuem a incluir esta questão se a consideram importante na formação dos alunos.  
      Nós, professores, não podemos perder a chance de contribuir para que este papel da escola se concretize. Sei que o cansaço do dia a dia por vezes nos tira o ânimo e confiança nas mudanças. Mas se não agirmos agora, participando dos diferentes fóruns de discussão e decisão, seremos meros executores de determinações de secretarias e direções de escolas.  É nosso direito e papel, garantido por lei, participar da elaboração - e revisão periódica - dos projetos pedagógicos de nossas escolas. Muitos colegas desconhecem o que está escrito e portanto legitimado como compromisso de todos, nos PPP de suas escolas. Proponham uma leitura e revisão coletiva. Como o currículo foi construído em sua escola? Que princípios norteiam as práticas docentes?  Há espaço garantido para o debate democrático, para a inclusão, para a diversidade em todas as suas formas? Como os próprios professores se sentem em relação às questões de gênero, por exemplo? É preciso coragem e abertura no coletivo docente para esta reflexão interna que afeta o trabalho de toda a escola. Sem uma postura de culpabilização ou recriminação.           
        Mais do que nunca é preciso aproximar-se das famílias e demais setores da comunidade escolar e sociedade.  Identificar as concepções dos pais de alunos acerca do papel da escola. Se houver reducionismo ou crenças que limitam o espaço para o trabalho em prol da diversidade, não fugir do embate. Nem se colocar em posição defensiva ou autoritária. É hora de fazer parcerias, de acolher, de reconhecer a dificuldade do outro - e nossa-  em romper com visões de mundo cristalizadas historicamente - inclusive pela própria escola.  Mas lembrar do compromisso da escola como locus social onde se espera que as aprendizagens se efetivem de modo intencional, planejado e para todos os alunos. Aprendizagens que incluem o reconhecimento, respeito e valorização da singularidade humana. 


Alun@s do curso de Biologia da UERJ que desenvolveram
com o com o CEFET/RJ, atividades com as turmas de ensino médio
 no núcleo de sexualidade.Integram um grupo chamado
Liga de Sexualidade. A foto é da semana de extensão em 2016.
(Fotos: Arquivo Pessoal)



2- Como você sugere que @s professor@s discutam e reflitam sobre estes temas na sala de aula? Pode dar um exemplo?

   No CEFET/RJ, nós professores de biologia optamos por trabalhar com Núcleos Temáticos no currículo de Ensino médio técnico integrado. Um dos Núcleos é o de Reprodução e sexualidade.  A abordagem que damos é interdisciplinar, abrindo espaço para que os conhecimentos da biologia instrumentalizem estudantes para debates que envolvem: gênero, papéis sexuais, papéis sociais, "padrões " de beleza, mídia, consumo e sociedade, saúde etc. Articulando conhecimentos da História, Sociologia, Arte e outras disciplinas do currículo, buscamos sempre que possível, realizar projetos integradores. Temos clareza de que gênero e sexualidade não dizem respeito apenas à dimensão biológica, mas não nos omitimos no debate. 
   Recebemos periodicamente, através de projetos de extensão e programas de estágio, alunos de universidades que participam conosco das aulas, realizando atividades envolvendo dinâmicas com materiais midiáticos variados (desde revistas a documentários), com foco na problematização.  As turmas se identificam com os jovens universitários e participam ativamente das discussões. 
   Em paralelo, o CEFET/RJ vem desenvolvendo aos poucos a realização de eventos como peças de teatro, palestras e debates com foco no combate ao preconceito e diferentes formas de violência, abertos à comunidade.  
  Antes de iniciar as atividades no Núcleo de Reprodução e Sexualidade, realizamos uma sondagem, utilizando uma caixa de sugestões na qual as turmas colocam temas que gostariam de conhecer e debater. A partir deste levantamento, traçamos um planejamento ampliando com tópicos que consideramos também relevantes.  
    Foi gratificante, por exemplo, ver rapazes que no início mostravam-se refratários e ficavam constrangidos em se expressar, desenvolverem uma pesquisa na escola para levantar concepções e sentimentos de alunas acerca da menstruação e TPM. Esta imersão masculina no universo feminino é riquíssima, expande referenciais e visões de mundo e pode colaborar para uma cultura de não violência contra a mulher. 
     Da mesma forma, as garotas puderam ouvir e constatar que seus colegas do gênero masculino também têm dúvidas, inseguranças e medos internos.  Sem a problematização, a consequência mais comum é o caminho da naturalização do machismo e homofobia, nos discursos e práticas.  
  Também considero fundamental, no lugar de proibir, usar as tecnologias de informação e comunicação como instrumentos de trabalho com os alunos. O cyberbullying não pode ser ignorado no combate à não violência no campo do gênero.  É importante trazer conteúdo de redes sociais para discutir com os alunos. Eles devem ser levados a reconhecer a dimensão perversa e poderosa das imagens que ridicularizam pessoas, dos comentários maldosos, dos aspectos éticos e criminais envolvidos no compartilhamento de certas imagens e vídeos. Que estas são formas de violência que também devem ser objeto de combate e atenção. A espetacularização de aspectos da vida íntima e privada é uma questão contemporânea que a escola deve trazer para discussão. 
    Produções culturais como grafitismo, rap, funk, hip hop, programas e vídeos disponíveis na internet também representam fontes de material, estimulando-se sempre que possível, que os próprios alunos produzam conteúdo a partir das discussões realizadas. É preciso estimular o protagonismo juvenil. Como desejar que os alunos participem e avancem no pensamento crítico, quando o currículo que é desenhado ignora seus interesses e expectativas? Se a aprendizagem se dá na relação com objetos e sujeitos, como pode ser favorecida em contextos sem significado para o aluno?  Isso não é diferente no campo da discussão de gênero.  
   Para finalizar, como coautora de livros didáticos, não posso deixar de lembrar da importância de adotar obras que colaborem com este trabalho, trazendo textos, imagens e propostas de atividades que estimulem o debate e ajudem ao professor e à escola na formação de valores pautados na ética, solidariedade e respeito aos direitos humanos e sociais. 
       




Leia também a reportagem “Escola sem Pinto”, publicada no El País, em que Mônica Waldhelm fala sobre a ação contra o livro de que é uma das autoras: