Cine Insônia
terça-feira, 21 de abril de 2015
Hacker (2015) - Michael Mann
Parece até uma adaptação de um conto cyberpunk, mas não é. Dirigido, produzido, e co-escrito por Michael Mann, Hacker é um filme de hoje, deste momento. Como o próprio explicou, Hacker não retrata uma realidade passada "recente", um reflexo retrospectivo, tampouco futurístico, embora esteja olhando para lá. É importante para Mann moldurar o momento, do macro até o micro. Bem lá do alto, o conjunto exuberante de luzes da metrópole, com ruídos eletrônicos e trechos de comunicações. Depois, dentro de um mundo inacessível a nossa visão, dos sistemas internos e circuitos elétricos de computadores, processadores por onde passam correntes elétricas. Tudo representado através desta mesma tecnologia. E é só depois disso que começamos a ser apresentados á estória, com um incidente envolvendo a explosão de uma torre de energia em uma usina nuclear, causada por um vírus que invadiu o sistema de computadores da estação. O seguinte universo é o mais próximo de nós, com a câmera passeando por uma cela contendo objetos pessoais - livros, fotos -, e onde reside o protagonista, um detento, que como outros personagens distintos da filmografia de Mann, obscuramente se desvela, predominantemente na sua existência presencial, nas suas ações instantâneas.
A trama de Hacker foi inspirada por um evento real, no qual uma usina nuclear no Irã foi hackeada por um novo vírus, causando danos em uma das centrifugas da usina. É o universo de existência dos blackhats, hackers, programadores, especialistas em códigos que podem invadir redes com objetivos diversos, como manipular e roubar informações; das nações com exércitos do ciberespaço, guerras de informação nas redes, espionagem pessoal, corporativa e industrial, vigilância integral e onipresente, big data, fluxos invisíveis de informação e dinheiro, dromocracia tecnológica, etc. Um cenário onde há sempre uma presença escondida no extracampo rastreando e mantendo sob controle o indivíduo, mais vulnerável do que nunca. É clara a importância, em Hacker, em capturar e adentrar este zeitgeist, explora-lo de diversas formas possíveis, e tornar-se parte disto, como uma das formas. Por isso, em vários momentos, o filme entrega-se aos recursos tecnológicos disponíveis e os integra em sua linguagem. O trabalho de Mann no digital não é novidade - afinal, ele se adiantou neste aspecto há mais de uma década -, e neste ele ainda vai além, com uso amplo de efeitos especiais - chegando à sequências inteiras. Abraçando a variação de perspectivas, na mutação de aspectos da imagem evidenciando seu caráter digital, imperceptivelmente cortando do enquadramento real para a imagem da câmera de vigilância.
Além do snapshot, de voar ao redor dos centros urbanos mais modernos e brilhantes do mundo, dos arranha céus gigantescos, que refletem o atual estágio da civilização (ao menos, uma parte desta), como estivesse dizendo "Isto é agora!", Hacker está à margem do tempo, é em boa parte "o de sempre", assim como outros filmes excepcionais que se lançaram aos mesmos objetivos não muito tempo atrás: Espionagem Na Rede, Enigma do Poder, etc. Estes filmes não se tratam apenas do envolvimento de indivíduos em tramas internacionais, conspirações, grandes emaranhados de desdobramentos complexos; eles contemplam todos os temas mais humanos: paixão, desejo, sexo, traição. As realidades virtuais e os objetos sintéticos a todo tempo encaram-se com o mundo físico e orgânico. No meio de tudo isso, os personagens vão em busca de seus objetivos: sobrevivência, amor, paz, autonomia, se forem possíveis. E nestes aspectos, é claro, estamos vendo qualquer filme da obra de Mann. Presenciando a mesma dinâmica, urgência, e tantas outras qualidades que levam a muitos credita-lo como autor. Os tiroteios carregados de realismo e dramaticidade, compostos esculturalmente; a humanidade dos personagens revelando-se de maneiras tão naturais e singelas, desde os principais aos mais periféricos, há sempre uma forte dimensão humana à narrativa - presente em torno de cada situação, nas idiossincrasias exibidas por cada personagem, em toda revelação de modo quase sempre sutil e inesperado.
Mas eles estão, novamente, distantes do desejado final feliz. Lidando com tantos obstáculos e tamanha violência, que qualquer êxito só poderá ser conquistado parcialmente. Esta violência, que não abandona o terreno sob nenhuma hipótese, é inevitável para que haja tal possibilidade. Nesta guerra na qual disputa-se tanto através da simples manipulação de dados computadorizados, ainda almeja-se as mesmas coisas: dinheiro e poder - só atualizam-se os modos de consegui-los. E por trás de todas as cortinas, estão velhos conflitos políticos, que em últimas instâncias acabam sendo resolvidos pelos métodos primitivos. Seria difícil Hacker escapar deste regime, e opta por não suaviza-lo. Por mais fortes que sejam as cenas de violência, elas se fazem necessárias levando em conta este contexto onde toda fisicalidade implora por sua representação - há um empenho para simular de forma realista o sistema interno de um computador, nada mais justo que o mesmo tratamento seja dado à uma cena de violência.
É esperado que Hacker aproxime-se destas qualidades, dado o valor sensorial que Mann geralmente ambiciona para seus filmes. Não basta apenas um enredo a ser seguido, necessita-se de atmosfera, proximidade, sentimento, aquele algo a mais que não demora a ser percebido quando se trata do diretor. Uma certa tendência a experimentação, a abstração, uma autonomia no seu vínculo com o filme de gênero, como se estivesse sempre no controle do compasso, que deve se ajustar conforme seu olhar. Uma busca para fazer de uma cena o que ela pode, e deve ser; da tensão crescente entre duas pessoas com uma atração que não quer mais esperar e se rende, do confronto violento e passional que inevitavelmente terminará de forma brutal.
9/10
quarta-feira, 16 de julho de 2014
Sob a Pele (2013) - Jonathan Glazer
Texto com spoilers.
Foi uma surpresa que, chegando aos 30 minutos de duração do filme aproximadamente, eu percebi que embora desde antes mesmo de o assistir, eu já esperava um filme peculiar, mas o que estava presenciando era ainda mais estranho e indulgente. Na internet, entre vários textos que li, boa parte deles contém referências de diretores e filmes que se relacionam com o filme, e essas referências não são infundadas - podem ser reparadas logo de cara. Eu estava definitivamente marcado pela experiência, mas achei que havia ainda mais ali para absorver e precisaria de uma revisão. Então ao invés de adiar, resolvi fazer logo isso, enquanto o filme ainda cozinhava na minha cabeça. Surpreendente o quanto isso expandiu a minha compreensão e apreciação com ele, e durante a revisão já estava sendo recompensado.
O filme começa estranhamente com formas e espectros luminosos abstratos em um fundo negro, com sons fonemáticos indicando um alienígena programando uma linguagem, formando palavras do idioma inglês. À essa altura já temos ecos de Kubrick, particularmente de cenas de 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968), com trilha sonora drone de frequências contínuas e batidas repetidas. Em seguida, temos o misterioso motoqueiro que acompanha a trajetória da protagonista Laura (Scarlett Johansson) em todo o filme. Ele vai até a beira de uma estrada, e da mata leva o corpo de uma mulher até seu veículo. Na próxima cena, Laura (seu nome não é citado no filme ou presente nos créditos) aparece pela primeira vez. Em um imenso vazio com fundo branco, ela está nua, e a mulher raptada na cena anterior está no chão. Ela se veste com as roupas da mulher, que está deitada de olhos abertos com uma lágrima caindo em seu rosto. Quando termina seu procedimento, Laura percebe um pequeno inseto na barriga da mulher, pega em sua mão, e o examina, tendo aparentemente o seu primeiro contato com uma forma viva da Terra.
À partir disso, Laura sai em sua van pelas ruas da Escócia, interagindo com transeuntes de dentro de sua van, todos do sexo masculino. Essas cenas foram feitas com câmeras escondidas dentro da van, os homens abordados só descobriram fazer parte do filme após as cenas. Ela se comunica com os homens, quase mantendo um padrão - eles se abrem nas indagações, e são atraídos por ela. Inicialmente estes envolvimentos jamais ultrapassam um nível pessoal considerável. Dentre estes homens, um deles embarca em uma carona com ela, que o leva até um prédio abandonado. Ela o seduz e entra na escuridão do estabelecimento. Ele a segue, sem saber no que está se metendo. O interior se revela um breu imenso e vazio, com uma superfície que reflete os corpos e objetos. Ela anda de costas para o homem e vai se despindo, ele a segue e se despe também, porém enquanto segue os passos dela, começa a ser absorvido pela superfície, que toma forma liquida, quase gelatinosa. Ela se vira, refaz os passos e se veste novamente. E repete esta operação com outros homens seguidamente.
As questões acerca de sua missão não são esclarecidas explicitamente - mas também não demonstram necessidade de serem respondidas explicitamente. Assumimos uma perspectiva altamente subjetiva acompanhando as ações da alienígena, e já sabemos o suficiente. Após as suas atuações com os homens, em certo momento descobrimos o que vem a seguir. Dentro do abismo líquido, os seus corpos passam por transformações e se tornam um fluído negro, que através de uma plataforma são enviados para uma luz vermelha - precisamos de mais que isso para deduzir o que acontece aí? Estes aspectos não são fundamentais para a narrativa, possuem função pragmática apenas. O que interessa é acompanhar a trajetória da alienígena na Terra, já sabemos que sua missão é a abdução dos homens, pelo método de atração sexual, sem interações pessoais.
Acompanhando a sociedade pela perspectiva da outsider, nos identificamos com o olhar dela - à principio indiferente. A cultura do ambiente urbano escocês não é diferente de qualquer outro. A rotina de trabalho, e cotidiano, que vão entrando ao entendimento da alienígena (assim como a nossa familiarização gradativa com a sociedade). Mais complicado é o indivíduo. Nos contatos com os homens que seduz, o que ocorre é a atração deles pelo seu corpo, motivados pelo instinto sexual. No momento em que ela tropeça na calçada, é assistida pelos indivíduos, em uma ação solidária de empatia. Dentro de sua van, é abordada por vários homens que tentam a emboscar, possivelmente para roubar seu veículo. Ela também acompanha um incidente de afogamento na praia, e tentativas sem sucesso de salvamento entre os envolvidos. À todos esses acontecimentos, ela reage com indiferença, a natureza humana não faz parte dela. Ela apenas busca realizar sua função, dialogando superficialmente com os homens em seu caminho, se expressando artificialmente em suas comunicações, com feições e gestos, e as desfazendo imediatamente quando já não as precisa.
O seu entendimento do mundo se acumula de forma gradual (como por exemplo quando ela vai ao shopping, e vê mulheres se produzindo com objetivo estético, então copia este comportamento). Ela apresenta familiaridade com a maquina (seu carro), e outros aparelhos. A gama de experiências e sensações vão se ampliando cada vez mais durante sua estadia, dirigindo pelas ruas, e em momentos, sendo levada pelos acasos. Ela sente o sangue de um homem em suas mãos, e examina a substância. Em certo momento, em um grande espaço escuro, ela aparece parada e inexpressiva, e o motoqueiro misterioso presente desde o início reaparece (obviamente ele é um extraterrestre também, com o que tudo indica, em um encargo de supervisão de Laura). Ele examina seu rosto, e olha diretamente para os olhos dela, possivelmente para garantir que ela permanece inalterada, não tendo se modificado durante sua missão.
O ponto de virada é quando Laura encontra, em seu procedimento padrão, um homem desfigurado - o ator que o interpreta realmente possui neurofibromatose, já que o diretor não queria usar próteses. O homem entra em seu carro, calado (diferente dos outros homens), e Laura o aborda da mesma forma que os outros homens, com as mesmas perguntas, e o corteja ao mesmo tempo. Ele, constrangido e introvertido não consegue acreditar na situação. Já Laura, não o distingue dos outros homens, fazendo perguntas que poderiam ser consideradas ingênuas ou maliciosas dada as circunstâncias. Ela se identifica com a condição solitária do homem, mesmo sem conseguir identificar as causas disso. A face exterior não significa nada à alienígena, gerando uma interação de maior abertura pessoal do que com qualquer outro dos homens anteriormente, ele não emite o desejo puramente sexual, mas primeiramente de contato, tão simplesmente. Ela segue o plano, levando o homem ao mesmo lugar no qual seduziu os outros, porém, no fim das contas, o resgata e deixa-o ir embora.
Com isso, a extraterrestre revela sua consciência humana em potencial, com demonstrações de emoção, desejo, curiosidade e dúvida, quando antes agia por programação e indiferença. Não que ela estivesse agindo sem qualquer noção de suas ações, mas dentro de uma natureza e compreensão de outra espécie. Quando se dá diante de um ser semelhante, de comportamento reservado, cria-se uma interseção. E o broto criado nesta eventualidade ascende à uma crise. Ela analisa o seu corpo e rosto, algo perfeitamente comum entre os seres humanos, por diversos motivos que vão da vaidade até a dúvida na identidade de gênero - pauta recorrentes na época atual. Ela deseja se adaptar à condição humana, mas não é capaz disso, a anatomia de seu corpo não a permite. Este conflito existencial, apesar de não possuir nenhum equivalente idêntico, possui semelhantes na realidade. Pessoas que não se sentem confortáveis no próprio corpo, ou que são incapazes das mais comuns atividades devido à problemas de saúde.
O filme agrada muito pela beleza visual, e realmente a cinematografia, a condução lenta e contempladora relembra muito os filmes de Tarkovsky, assim como o drama existencial, do ponto de vista feminino (com os toques de erotismo) lembram algumas obras-primas de Antonioni. Mas os méritos não ficam nestas semelhanças. O desenvolvimento que jamais sucumbe ao melodrama, sempre acompanhando os passos de Laura sem interferir na "temperatura" das situações, nas assimilações que a personagem vai retendo, bem como na naturalidade dos acontecimentos que a envolvem (principalmente no ultimo ato), pouco movimento, planos abertos, são diversas escolhas corajosas. Jonathan Glazer faz o filme do jeito que deseja, e consegue criar inúmeras cenas e imagens memoráveis. Sem pensar muito, Scarlett Johansson entrega a melhor atuação de sua carreira até agora, simplesmente impecável. No inicio, temos uma personagem examinando uma criatura que nunca viu, e no fim transcorrendo os próprios limites, do começo ao fim, e voltando as referências, como Kubrick e Tarkovksy fizeram, um filme sobre o (dramático) encontro com o desconhecido.
8,5/10
quinta-feira, 26 de junho de 2014
Eles Voltam (2012) - Marcelo Lordello
O processo passado por Eles Voltam (idem, 2012) para finalmente chegar aos cinemas não foi fácil. Produzido em partes ao longo de 2010, passou por difíceis etapas em sua produção, finalização e distribuição, de forma que em 2012 chegou a ser exibido em festivais, e finalmente em 2014 chegou aos cinemas. Infelizmente, a produção audiovisual Brasil ainda passa por uma triste realidade, na qual realizadores independentes passam por trancos e barrancos para realizar suas obras, na esperança de conseguirem finaliza-los e distribui-los, na pobre condição de coexistir com o monopólio que rege o cenário brasileiro - cada vez mais padronizado e comercial, e consequentemente, limitado e pouco alternativo.
É uma verdadeira pena, pois, assim como em tantas outras áreas da arte, cinema é uma coisa que o brasileiro faz muito bem, e há muito tempo. As dificuldades sociais, de tal forma, é um tema recorrente do cinema nacional, bem como a realização de filmes independentes no país é historicamente marcante, feito na base do velho "ideia na cabeça e câmera na mão". Eles Voltam foi roteirizado inicialmente como curta-metragem, sobre solidão e sobrevivência. A futura conversão para longa-metragem trouxe a possibilidade da exploração de muitos outros temas diversos, a expansão do projeto tornou o filme algo único, filmado in loco em toda sua duração em realidades absolutamente opostas, com formato de uma odisseia íntima, cuja protagonista deve lidar com circunstâncias até então completamente desconectadas de sua realidade.
Como em uma subversão de gênero, a jornada da protagonista ocorre em uma configuração de fábula realista, com personagens legitimamente mundanos, em locações verdadeiras, vivendo a realidade sem ornamentos. A beleza da natureza e a autenticidade das locações substituem grandes cenários decorados, ou feitos por computação gráfica. Afinal, é uma questão de saber se apropriar das condições, e uma questão de método. Miyazaki contou estórias de amadurecimento infantil em dimensão animada. Em O Serviço de Entregas da Kiki (Majo no takkyûbin, 1989) assume uma perspectiva fantasiosa e singela no tratamento da protagonista, já em A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kamikakushi, 2001) entrega-se ainda mais a imaginação, e ao uso de simbolismos. Os irmãos Dardenne, em O Garoto da Bicicleta (Le gamin au vélo, 2011) se aproximam da ótica introspectiva, realista e alegórica que compõe o filme de Lardello, porém sem os comentários sociais, e com uma estética melhor modelada ao público geral. A lista é longa, muitos influenciados por Alice in Wonderland de Lewis Carroll.
Eles Voltam certamente figura entre os mais desafiadores a cerca do tema. Transpondo a fantasia pela realidade crua, é importante o olhar nas relações de poder e situação social e noções familiares. Atravessando uma caminhada relativamente curta, Cris é apresentada a outra face do mundo, que ela poderia conhecer através da mídia, mas que agora ela conhecerá de verdade, de perto. A humildade das moradias isoladas dos centros urbanos, o caráter hospitaleiro da pobre família que lá reside, a natureza da convivência neste âmbito. Lardello falou sobre sua experiência em visitas com estas comunidades. Do outro lado, a família da pequena burguesa, hiperprotetora, assustados com a possibilidade de contato da garota com o mundo exterior, mas que em um ato irresponsável a deixaram na situação que mais temiam.
Com isso, Cris, de 12 anos, é apresentada no inicio como uma garota dependente e assustada, com uma personalidade desconfiada e silenciosa. Após um curto período de vivência, assume uma nova disposição de conhecer o mundo que vive (o que não é uma mudança de personalidade, mas de comportamento), e uma postura independente, representada principalmente na simbólica sequencia em que não objeta em conhecer uma nova colega de classe, e que depois a leva à praia. Tornando-se quase um reflexo de seu irmão, sempre com seu celular, fones de ouvido, e em outra cena, jogando videogame. Não que os medos e a insegurança terminem por aí - como vemos nos momentos finais -, mas há definitivamente a transformação, o amadurecimento que chega a todos nós através do acaso e da observação - sexual, consciente, sensível -, o que é alegórico no plano final, representando a passagem para uma nova fase. Não são precisas muitas palavras.
Na internet, circulam muitos elogios, e também críticas ao filme - aquela coisa de sempre, reclamações sobre o ritmo do filme, em outra, sobre "inexpressividade da atriz", ou a má sonoplastia. Enfim, estamos falando de um filme cujo os silêncios e a observação paciente em cena é igualmente importante as ações e diálogos. Lordello desafia as convenções, absorvendo dos seus queridinhos de cinefilia - fã de Ozu -, filmando com calma e indulgência, normalmente os planos são muito perto ou longe, câmera na mão. Porém nada é injustificado, essa perseverança em observar todos os pequenos detalhes é algo importante na proposta de Lordello, e esse objetivo é atingido. Não se pode ignorar os méritos de Maria Luiza Tavares, ou Mallu como o diretor a chama, que interpreta a protagonista. Com certeza, é uma atuação juvenil da qual me lembrarei, a naturalidade e sutileza que apresenta é fundamental, e próprio ao filme, que supera a dificuldade financeira através da delicadeza no qual foi feito, com atores não profissionais (algo que jamais torna-se um problema), belíssima trilha sonora sempre complementando as cenas (clássico de Milton Nascimento logo no inicio). Um filme para ser celebrado por diversas razões, em uma época no qual o trabalho independente já deveria ser muito mais viável, e o cinema brasileiro é ainda visto com preconceito por seu próprio público.
8,5/10
quinta-feira, 12 de junho de 2014
Baionetas Caladas (1951) - Samuel Fuller
A guerra sempre foi um tema amplamente explorado no cinema, o que não faltam são grandes filmes. Este é, antes de tudo, um filme de Samuel Fuller. Isto é, uma cruzada potente, de realidades e emoções. Os personagens quase sempre são mais importantes, são os verdadeiros portais para entendermos melhor todo o resto. Se a guerra é uma coisa confusa, para os personagens ela é assim ainda mais confusa, são colocados a prova todo instante nas circunstâncias mais complexas e imediatas, os seus destinos - e o destino de tudo - raramente estão em seus controles, mas a jornada é dolorosamente necessária (e assim vem na cabeça a maior parte da obra de Fuller), para chegar a catarse.
Em Baionetas Caladas (Fixed Bayonets, 1951), ninguém está realmente em comando, aliás, ninguém deseja o comando. O esquadrão de soldados está desde o início fadado a renunciação de qualquer estado de controle. Ser o comandante é ter o poder de organização, estratégia e autoridade hierarca sobre o resto do soldados, e ao mesmo tempo, o peso infindável de sobrevivência, de todos, e de si. Porém, pela conjuntura natural das coisas, isto é um mal necessário, e a fragilidade da sobrevivência é um fardo para todos. O protagonista Cpt Denno tem plena consciência disso, mas como já sabemos, ele não é dono de seu destino. Como em Capacete de Aço (The Steel Helmet, 1951), também de Fuller, produzido pouco antes, Fuller dedicou esta obra à infantaria americana. O olhar do diretor é direcionado a eles em ambos os filmes, em situações bem parecidas - no campo ativo da guerra. Os motivos que ocasionam as guerras, ou outros tipos de debates ideológicos não são focos, estamos de olho desta vez para o mais perto possível dos seus participantes do mais baixo escalão, e as questões não são nem um pouco menos complexas.
Através de conflitos de grande força emocional e psicológica - retratadas com muita sutileza e autenticidade, méritos primordiais por quais Fuller é conhecido -, os elementos em volta da narrativa são problematizados e expostos com precisão. E não são poucos. O que faz um homem participar de uma guerra é uma questão com inúmeras respostas, se está questão não é respondida (mesmo sendo feita literalmente, por um dos personagens para outro, que não sabe responder), ela é confrontada. Os problemas políticos que geram a guerra perdem dimensão e quase desaparecem no campo de batalha diante das questões existenciais. A realidade da guerra, para quem a vive na pele, é a efetivação das maiores tragédias imagináveis - e a única glória que se transparece súbita é a da sobrevivência. Os atos de bravura e coragem estão sempre escoltados de calamidades, quando o inimigo se aproxima, se revela humano, não é fácil puxar o gatilho.
Em um melhores momentos de Baionetas Caladas, e com certeza o mais simbólico, os soldados americanos em seu abrigo, escutam de longe o som do instrumento de sopro dos soldados coreanos. Um dos soldados murmura a melodia simultaneamente, e em seguida reconhece a semelhança com a música utilizada entre os próprios americanos em ambiente de guerra. De toda forma, o que segue pouco depois é conflito. As questões de etnia são recorrentes na filmografia de Fuller, em Capacete de Aço, o cerne da narrativa são as relações étnicas no campo de batalha, neste aqui, o tema também é visualizado, a infantaria americana possui asiáticos, negros e brancos, todos tornam-se uma identidade homogênia.
O estilo naturalista de Fuller se faz valer mais do que nunca, não há glamour, não se saber quem vai viver até o final, as mortes são repentinas e secas, o diretor não nos poupa da violência, o sangue não aparece, mas há sempre a agonia dos moribundos, em explosões os membros desmembrados, os corpos cobertos por gelo. A mise-en-scène é muito bem composta (inclusive com um plano-sequencia no inicio), gerando algumas belas cenas - como a da mina -, que me lembraram a habilidade do diretor com os elementos de tensão, os close-ups característicos, o humor sutil, as panorâmicas dentro do grupo de soldados, todos tem seu momento, os relatos de sonhos e expectativas do futuro com a angustia da sobrevivência, esta delicadeza, ao lado da explosão que acaba cedendo ocasionalmente entre os próprios companheiros. Fuller infiltra um meio de incertezas e dúvidas, e se não extrai respostas (e esse não é o objetivo), oferece humanidade.
8/10
segunda-feira, 13 de janeiro de 2014
O Segredo do Abismo (1989) - James Cameron
Ao final de O Segredo do Abismo (The Abyss, 1989) não há dúvidas, este é o mesmo diretor de duas maiores bilheterias da história do Cinema, e por conseguinte, duas das maiores megalomanias também. James Cameron é um explorador nato, e um visionário ativo em grandes causas, além de seu trabalho aclamado como cineasta, é conhecido pelos seus projetos de exploração nas profundezas do mar (no qual inclusive detém um recorde), pelo envolvimento e conscientização em problemas ambientais ao redor do mundo (notavelmente em relação ao derramamento de petróleo), bem como um defensor público do vegetarianismo. À parte de toda grandiloquência inconfundível todo arsenal artístico característico e famigerado do diretor se faz presente.
Para começar, como se trata de uma trama de resgate, Cameron trabalha nos seus campos de conhecimento ideais - a ação e a aventura -, e não suficiente, traz a história ficção-cientifica, drama e toques de romance e humor, ou seja, a sintese dos elementos-base que compõem o cinema hollywoodiano como ganhou definição pós o fim dos anos 70, e os amplificando dramaticamente à ponto de sua edição sem cortes especial (a mesma que vi) tenha mais de 170 minutos. Horas preenchidas pelos mais diversos exageros e possibilidades imaginadas que proporcionam o genero: dei ex machina impossíveis, cenas de ação grandiosamente executadas (inclusive dramaticamente), caso amoroso forte e complexo, ficção-cientifica descabida e despirocada, conflito de EUA e URSS (no qual não poupa nenhum dos lados), e todos os componenentes gerais levando a um arco narrativo megalomaniaco fantastico e ridiculo.
É um Cameron descontrolado, e totalmente reconhecivel dentro do universo constituido: personagem feminina forte, e bem construída entre seu temperamento explosivo e sua sensibilidade feminina, protagonista de atos heróicos e redentores, efeitos especiais muito à frente de seu tempo, a marca fortemente anti-militarista e belicista que Cameron imprime em paralelo a sua época (fim da Guerra Fria), a relação entre homem-maquina e a tecnologia predominante e cercante que é ao mesmo tempo uma razão de sobrevivência e desespero. Porém, em contraponto a alguns outros filmes seus, aqui Cameron deve aproveitar o confinamento e claustrofobia como palco de sua história - como faz também em Aliens - O Resgate (Aliens, 1986) e Titanic (idem, 1997), não exatamente da mesma forma. Estações submersas, meios de transportes sub-aquaticos e corpos sendo subjugados pela força de pressão das profundezas do mar e pelas constantes situações de afogamento iminente. O que é diametralmente oposto as perseguições e confrontos urbanos de ambos os The Terminator dirigidos por Cameron e as sequencias gigantescas de guerra futurista em outro planeta em Avatar (idem, 2009). Prova que o diretor tem total dominio de seu material, sendo um eximio manipulador da ação, e possuindo uma noção extraordinária na criação de tensão e perigo independente do cenário em que se passe seus filmes.
No seu terço final, o que era um drama de sobrevivência e um thriller com pitadas de sobrenatural, se transforma de vez em uma ficção cientifica antológica e épica (o que gera uma das cenas de ficção mais irresponsáveis e cômicas que consigo me lembrar), e possivelmente é um dos motivos da reputação tão controversa e mista que possui até hoje. Para mim, um belo feito de cinema de espetáculo e que se deixa levar pelo artificio e pelo idealismo romântico como principio - mesmo que sim, isto seja também um veiculo para assertivas "nobres" totalmente desproporcionais e com pouquissímo poder de argumentação para se levar em consideração, ainda que não chegue a ser nenhum pastiche politico não intencional. É neste contexto emaranhado e extremo que enxerga-se traços de um diretor corajoso e visionário, e um filme que na pior das hipóteses é um esforço válido e audaz.
8/10
segunda-feira, 4 de novembro de 2013
Irma Vep (1996) - Olivier Assayas
É impressionante a riqueza de detalhes e congruências que Assayas espalha ao decorrer do filme, ainda que tudo corra da forma mais orgânica possível. Com um seguimento de cenas desprendido e decorrente só das ideias e justaposições organizadas em movimento. São varios fatores que somam em nossa visão e culminam nos mais variados tipos de reflexões: a contemporâneidade sempre acentuada principalmente na vertente cultural, na trilha sonora figuram Sonic Youth e Luna, o status-quo do cinema sempre comentado (Tim Burton, John Woo, Jackie Chan, etc), no olhar cosmopolitano à Paris mais brevemente (em cenas dinâmicas e com luzes evidentes, dentro do metrô, na entrada de uma boate com música eletrônica); o tour de force de Maggie Cheung, e substancialmente a representação de personas, estética e esteriótipos do cinema dentro do tempo e sua fama - o diretor francês em decadência (mas por Assayas um artista que se faz as perguntas certas), o cinema ornamental hollywoodiano, o cinema oriental de artes-marciais no seu auge, os profissionais de cinema excêntricos e as relações entre eles.
No mais, a história do cinema de acordo com tempo e disseminação, com heranças estilisticas (mais especificamente) sendo deixadas e absorvidas em diferentes pontos do tempo e localidades da pratíca cinematográfica. Melhor exemplo disso: a Irma Vep do filme seriado original Les Vampires (1915) interpretada por Musidora com roupagem e maquiagem predominantemente pretas, influenciando à Mulher-Gato de Tim Burton em Batman: O Retorno (Batman Returns, 1992) por Michelle Pfeiffer, que depois inspira a fantasia de Irma Vep do próprio Assayas com o material brilhante e apertado no corpo de Maggie Cheung.
Coexistir com esta modernidade, se assim preferir, é o que torna possível, os níveis e angulos que surgem e podem ser contemplados com a presença de Maggie Cheung. Atríz célebre pelos filmes de ação que fez nas décadas de 80 e 90, pelos inumeros trabalhos no cinema oriental e inclusivamente em Hong Kong (chamarei de Maggie sua personagem em Irma Vep, e Cheung ao me referir à própria atriz). Assayas dissertou sobre a experiência de acompanhar a atriz interpretando uma personagem em situações extremamente similares e peculiares à sua própria vida. Tal que ser uma estrangeira no set, responder a entrevistas - e Assayas deixou-a com uma disposição livre e espontânea na qual ela "apenas podia se deixar levar e reagir à situações enquanto aconteciam". Deste modo, o espectador vê em tela, assim como diz o diretor, uma personagem que oscila entre a autenticidade e a encenação. A brincadeira se realça na cena em que Maggie é entrevistada por uma jornalista irônico e que ferozmente critica o diretor de seu filme, em contraponto ao atual cinema oriental de artes-marciais (no qual compara a precisão das coreografias ao balé), então Maggie se esquiva do entrevistador (que acusa o diretor de fazer cinema apenas para a elite e aos intelectuais) e defende o diretor "tedioso" e decadênte com o qual trabalha. Obviamente, o efeito desta situação é muito mais efetivo aos espectadores do filme em sua época (e principalmente cinéfilos). Mas hoje seria como ver qualquer atriz/ator do mainstream norte-americano defendendo a arte de um diretor estrangeiro, peculiar e em insurgimento. Ou pelo simples fato de Cheung/Maggie interpretar um papel nada como os que faz regularmente - instância do espelho que Assayas faz do filme-contemporâneo.
Os códigos de Assayas não terminam neste aspecto, como também fazem várias e diversas alusões sobre cinema enquanto: arquitetura, tempo, industria, cultura, e ideologia. Assim como De Palma sempre remete às suas versões de cinema, Assayas iguala alguns de seus métodos durante Irma Vep e podem ser resumidos como (1) a evidenciação de que o cinema é primordialmente construção, uma fusão de ciência e instinto, objetos são movidos em cena, atores são posicionados e dirigidos, elementos constituem uma lógica discursiva e técnica para depois serem exibidos (2) mesmo que o espectador esteja ciente disso, isso em nada intervém na interação, e seu potencial continua o mesmo. O que torna Irma Vep um filme ambos sobre o ato de realização cinematográfica, como o de assisti-lo. E provalmente, existem ainda fenomênos que podem ser extraídos de em uma revisão. Essas ideias se concretizam na cena máxima de Irma Vep, na qual Maggie em meio crises de produção de seu filme, chega em seu quarto, veste o figurino de Irma Vep e sai pelo hotel sobre em uma ótica já fantasiosa e extremamente ficcional, digna de filmes de espionagem dos mais sofisticados. Ela sai pelo hall do hotel, invade um quarto de uma mulher, rouba uma jóia e sai em uma fuga precisa e refinada na chuva. Bem como diz muito sobre o artista e a necessidade de imersão em sua arte, narra uma reflexão da tensão dos sets de filmagem (calculado e previsto) à exterioridade (real e sem precedentes) refratando diretamente ao receptor a natureza do episódio sem contexto estético-narrativo algum (que bem poderia ser descartado): o espectador será capaz de imergir em qualquer possibilidade que um filme possa oferecer, mesmo que sem nenhuma lógica/sentido prévio. Esta pode ser vista como sua sequencia-sintese e definitiva de um dos filmes mais importantes e merecedidamente cultuado dos ultimos 20 anos.
9,5/10
segunda-feira, 16 de setembro de 2013
A Bela da Tarde (1967) - Luis Buñuel
Tantos são os precedentes de Buñuel como sendo, fundamentalmente, um cineasta de critícas e sátiras, que nem mesmo este escapa de esteriotipação. Este, bem como alguns outros exemplos de sua filmografia - leia-se O Bruto (El Bruto, 1953) e Nazarín (idem, 1959) -, são recorrentemente reduzidos à posicionamentos relacionados à religião, política e à burguesia. Particularmente, não acho à toa que os mesmos citados acima, estão entre os que mais simpatizo pelo diretor; por serem, essencialmente filmes sobre pessoas, onde também existe forte influência dos fluxos arredores, inclusive sobre estas personagens, no entanto, os focos estão nas ações, desenvolvimento, e visões que se realizam e nos proporcionam à partir destes papéis. Estes aspectos de visão singular do cinema de Buñuel poderiam vir a ser analizado mais à fundo, ou apenas, evidenciados mais à tona.
A interpretação do cinema de Buñuel é uma consequência de seu provável maior signo quando acionado, a sua subjetividade critica e sensível em relação ao comportamento humano individual ou coletivo (este ultimo englobando todos os outros aspectos que derivam deste macrocosmo) sendo representado com suprema veracidade e agressivididade. As metáforas e simbolismos são características por sua evidência, e por suas posturas decisivas. Mesmo assim, Buñuel foi reconhecido como um diretor que rejeitava várias das interpretações direcionadas à seus filmes, portanto, culpava o próprio mundo pelo o que veêm em seus filmes. Criava puramente à partir das conclusões do que via. O progresso da dessacralização, chegada da modernidade, ambiguidade do comportamente humano, reflexos sociais entre burguesia e miséria através dos tempos. Reinando uma visão particularmente pessimista e que como recursos, foi do surrealismo ao realismo; do próprio autor ainda existe de forma visceral a lenda, sua persona, suas ideias, preconceitos todos à deriva, e como o seu legado, seus filmes, escorregadios por suas naturezas ideológicas categóricas e apresentação frontal.
Em a A Bela da Tarde, Catherine Deneuve (no auge de seu título de simbolo sexual) interpreta Séverine, uma belissíma, e frustrada mulher casada com um médico, em uma relação limitada pelo receio da jovem em consuma-la. No entanto, curiosa sobre bordéis e assuntos relacionados começa a trabalhar em um bordel, e à partir disso, se relaciona com outras prostitutas, sua cafetina e seus clientes. Seria a segunda personagem de Deneuve em um curto período de tempo conectado ao tema de repressão sexual, e de forma como isso pode vir a afetar de forma terminante a saúde psicológica e emocional de uma pessoa. No filme anterior da atriz em parceria com Roman Polanski - Repulsa ao Sexo (Repulsion, 1965) - a consequência seria a psiconeurose.
Neste mesmo filme, Polanski desvela apenas em seu ultimo quadro a razão da inibição sexual de sua personagem. Buñuel não faz de forma tão diferente ao dar pistas do inicio desta condição de Séverine, inserindo dois flashes passageiros em sua narrativa: no primeiro, é acariciada e beijada de forma maliciosa por um homem mais velho, e no segundo, está na igreja quando pequena e recusa a aceitar a hóstia de seu padre. Logo realça traços de um passado de possível abuso sexual e opressão religiosa. Na fase adulta, expressa apenas nos seus pensamentos mais obscuros os seus desejos e fetiches, utópicos e irrealizáveis, em um matrimônio sem comunicação e em uma sociedade tediosa por demais e de aparências. Mas o foco de Buñuel não é a tipíca deformação de superficies sociais, mas sim do individuo, guiado pelos instintos, e que por baixo dos seus ternos e formalidades, também possui todos os tipos de porões imagináveis, dispostos à extravasar isso em bordéis e quartos assim que podem.
Nas cenas que registram o ato - preliminares, nas propulsões de fetiches -, Buñuel ainda expõe a patente controladora dos homens burgueses, dominadores e misógenos, não só eles, também o marginal que se torna intimo de Séverine, jovem, mas também violento e egoísta; e enquanto desmascara o homem, enaltece a mulher, enquadra e contempla Denueve no auge de sua beleza (são muitos os registros marcantes de imagem da atriz no filme, por serem tão elegantes, sensuais, e provocantes), além do mais, a atitude feminina independente e insubordinada. Séverine vai da dona de casa culpada e frigida, para uma mulher livre, conquistando autonomia e que usa de todas as sua ferramentas para ir até o desconhecido e também, ao próprio auto-conhecimento, não à toa, apenas após sua própria libertação pessoal, consegue engatar seu relacionamento, sendo que neste, nem mesmo existia.
Homoerotismo, necrofilia, adultério, fetiches. Mesmo na sutileza de sua grafia, técnica sutil (e voyeuristica), Buñuel (em seu trabalho de direção dos mais notáveis pelo dominio da mise-en-scène) fez o suficiente para ir até onde provávelmente nenhum diretor havia ido até então. Antes de De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut, 1999), A Professora de Piano (Le Pianiste, 2001) e outros, Buñuel já checava até os submundos mais inacessíveis da avidez pelo sexo, pelo anseio intenso das descobertas e rumos que o desejo descontrolado e a indefensabilidade pode levar. Quase sempre perigosamente auto-destrutivo. Afinal, atua-se na nudez plena, da carne e do interior, onde abdica-se do controle voluntariamente ou não e além dos limites do corpo, revela-se a vulnerabilidade instantânea e possivelmente fatal. Surreal ou não, está ali.
9/10
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