27 de Setembro
QUARESMA, José
Álvaro Morais, Portugal, 2003, 95'
FICHA
TÉCNICA
Realização: José Álvaro de
Morais
Argumento: Jeanne Waltz e José Álvaro Morais
Música: Bernardo Sassetti
Imagem:
Acácio de Almeida
Interpretação: Beatriz Batarda, Filipe Cary, Rita Durão,
Ricardo Aibéo, Laura Soveral
Origem: Portugal
Ano: 2003
Duração: 95'
SINOPSE
David é casado, tem uma filha pequena, e está a poucos dias
de partir para o estrangeiro com a família.
Mas com a morte do avô, ele tem ainda que regressar à terra, e ao seio de uma família
com quem há muito não convivia.
E uma viagem que era para durar o tempo de um funeral, acaba por transformar-se
numa estadia de vários dias.
Porque aí David conhece a mulher do seu primo, e vai-se deixando enredar no seu
sortilégio de mulher perturbada mas encantadora...
O vento... No cinema, sabemos desde Fugiu Um Condenado à
Morte (Robert Bresson, 1956) que ele "sopra onde quer", do mesmo modo
que com Histoire de Vent (Joris Ivens, 1989) aprendemos que é possível buscar a
visibilidade do invisível. Agora, com o novo filme de José Álvaro Morais,
Quaresma, o vento é outro que não essa Fé que nos religa aos deuses ou nos faz
demandar a Terra. Porque este vento é anima, sopro interior, instinto vital,
algo, enfim, que permite ao homem ou à mulher irem além de si ou a tal
aspirarem. Zé Álvaro consegue isso com um filme assombroso (e assombrado...),
Quaresma, do qual, antes de mais, urge destacar a prodigiosa interpretação da
protagonista, Beatriz Batarda, melhor ainda "que a sua em Peixe Lua
(2000), do mesmo cineasta. Beatriz (n. Londres, 1974) iniciou-se no cinema aos
14 anos (Tempos Difíceis, João Botelho, 1988), aos 19 fazia de filha da sua
prima Leonor Silveira (Vale Abraão, Manoel de Oliveira, 1993), para ter o seu
primeiro grande papel aos 20 (A Caixa, Manoel de Oliveira, 1994). Entretanto
subiu ao palco da Cornucópia e rumou até Londres, onde estuda (e faz) teatro,
por lá se fixando, com intermezzos de cinema entre nós, mostrando, filme após
filme, que é hoje em qualquer parte do mundo uma excepcional actriz.
Esta sua interpretação em Quaresma comprova-o à saciedade. Na acepção mais
genuína do verbo ser, ela é o filme. E é-o porque a sua alegada semi-loucura é
tal qual a desrazão desse elemento primordial do filme: o vento. E, tal como
ele, livre, insubmissa, irreverente, inesperadamente quietude e inquietude,
brisa e tufão. Sempre, porém, autêntica e sempre também excessiva de mais para
o acanhado dos habitat onde é forçada a conter-se. Mesmo se, qual visionária, a
aura da tragédia que transporta lhe permite dizer "isto não existe",
revelando assim que o "isto" onde vive é um não-lugar, não já passado,
nem presente, nem futuro, donde se impõe sair. Ao que todos, aliás, aspiram,
submetendo-se, todavia, à rotina, ao bom senso, às convenções, ao acomodado
modo de vida, à memória... Ela não: pássaro na gaiola que seja, não se resigna;
desafia tudo e todos até acabar por...
Não conto, um filme destes - belíssimo e pungente - não se conta, o que não
impede que acrescente que José Álvaro Morais (n. Coimbra, 1945) logra aqui a
sua melhor obra. E melhor nem tanto pelo retraio de um certo Portugal e de um
certo modo de ser português, quanto pela subtileza do olhar. O seu: sensível e
crítico, espécie de cântico do desencanto, suspenso ainda assim por um ténue
fio de esperança. Um olhar estruturado na multiplicidade de personagens símbolo
com que povoa o filme, simbólico ele próprio, logo pelo título - Quaresma.
Um filme de contrastes, a começar pelos locais da acção, primeiro em Portugal,
depois na Dinamarca, e o Portugal é a Serra da Estrela e a Dinamarca é uma
cidadezinha costeira postada na planura do país. Dois espaços batidos pelo
vento, que sopra no alto da serra, como sopra no mar. Vento que (não por acaso)
é o motivo do estudo científico do protagonista masculino do filme, incapaz
porém de abrir os braços a esse outro vento libertário que a seu lado sopra, o
fascina e amedronta, e é uma mulher: Ana/Beatriz Batarda. Uma personagem digna
de Agustina, mas na realidade criada por José Álvaro Morais e Jeanne Waltz,
co-autores do argumento - excelente. Como a frieza da luz dada pela fotografia
de Acácio de Almeida e a partitura original de Bernardo Sassetti que, sem se
lhe impor, discretissimamente pontua o filme, em consonância com o ritmo
narrativo das imagens, plenas de silêncios. E não apenas os da protagonista -
criança, adolescente, mulher - sem chão em que pousar. Filha do dono de um
pequeno hotel, casada com o filho de um industrial de lanifícios, ela é o rosto
que sobressai de uma nova geração: a que descende de uma mediana burguesia de
província, saudosa de uma antiga abastança feita de proteccionismos e cumplicidades
salazarentas. Uma nova geração que - confusa, sem norte que se lhe veja - como
que vive a penitência dos erros e desperdícios de outrora, herdeira de um tempo
sem regresso. O que se intui desde logo pela sequência inicial de Quaresma: o
velório de um avô, figura tutelar de uma casa em desagregação.
José Álvaro Morais sabe captar tudo isto, quer gerindo o tempo e o espaço das
personagens quando conflituam nos lugares concêntricos dos seus pequenos
quotidianos, quer quando, em magníficos planos gerais de uma singular durée, as
enquadra na austeridade grandiosa da paisagem. De um e de outro modo dando,
assim, a ver a sua dupla dependência: da História e da Natureza. Agrestes
ambas. Pelo que delas todos querem fugir, sentindo-se, no entanto, a elas ligados
e... presos. Na ânsia de qualquer coisa de indizível, para o que lhes falta,
contudo, um golpe de asa. Por enquanto? As últimas sequências de Quaresma, até
pelo seu contraste, mais do que permitir adivinhar o destino das personagens,
admitem todas as respostas. Ou à penitência não sucedesse a ressurreição...
Rodrigues da Silva, Jornal de
Letras