Estamos perante um filme corajoso e perturbador. Corajoso porque não entra em jogos de moralidade dúbia e perturbador porque, custe o que custar a todos os optimistas que leiam isto, demonstra uma realidade muito verdadeira e pertinente. Perante um bando de “terroristas” que só se preocupam em armar-se em bons e dizerem que os estudos são para os marrões, Sonia perde a cabeça e vê-se obrigada a dar a aula da única forma possível: de arma em punho. É imperativo que se organizem viagens de estudo com os jovens, para que eles possam ver a figura que por vezes fazem e reflictam no rumo que as coisas estão a tomar. Estamos no ponto de ruptura, onde todas as liberdades e direitos são concedidos aos alunos e não se lhes exige nenhuma obrigação ou dever.
Título Original: La Jounée de la Jupe Realização: Jean-Paul Lilienfeld Argumento: Jean-Paul Lilienfeld Interpretação: Isabelle Adjani, Marc Citti, Denis Podalydès, Yann Collette, Nathalie Besançon Direcção de Fotografia: Pascal Rabaud Música: Kohann Montagem: Aurique Delannoy Origem: França/Bélgica Ano de Estreia: 2009 Duração: 87’
De repente, o cinzento e sisudo Mike Leigh deixou-se dominar pelo sorriso colorido de Sally Hawkins. É o que parece neste delicioso «Um Dia de Cada Vez» (mais uma tradução redutora face ao original Happy-Go-Lucky), obra cujo propósito é evidenciar o poder da alegria. E até onde pode ir a boa disposição? Muito longe, contagiando tudo e todos, até quem não quer dar uma cedência à depressão e ao isolamento. As premissas deste filme genuinamente britânico são tão simples quanto sinceras. O objectivo é apenas o de seguir os passos de Poppy, uma professora primária numa escola dos subúrbios londrinos, que optou por ser feliz. Apenas isso. Sempre afável, tem um visual muito próprio - feito de roupas exuberantes e botas de salto pontiagudo - e uma atitude descomprometida perante a vida. Às críticas de que é boazinha de mais, a protagonista responde com uma piada. Aos apupos pela sua irritante gargalhada, Poppy apenas se limita a repeti-la. E logo ao fim de poucos minutos o espectador está rendido pela singeleza das suas intenções.
Título Original: Happy-Go-Lucky Realização: Mike Leigh Argumento: Mike Leigh Interpretação: Sally Hawkins, Alexis Zegerman, Andrea Riseborough Direcção de Fotografia: Dick Pope Música: Gary Yershon Montagem: Jim Clark Origem: Reino Unido Ano de Estreia: 2008 Duração: 118’
António Campos foca a relação dos adolescentes com a Internet, usando para tal o ambiente snob de um colégio interno de Nova Inglaterra, onde a imaturidade própria da adolescência é acentuada pelos alunos se acharem acima das normas sociais. Uma tragédia morbidamente fascinante que é também uma visão sem concessões da hipocrisia americana. Ama-se ou odeia-se, mas é preciso reconhecer que Afterschool é uma primeira obra de destaque do talentoso realizador nova-iorquino. O trabalho do documentarista Frederick Wiseman é uma fonte de inspiração assumida de António Campos, mas também podemos citar Gus van Sant ou Michael Haneke. Afterschool um filme elegante e perturbador.
Título Original: Afterschool Realização: Antonio Campos Argumento: Antonio Campos Interpretação: Ezra Miller, Jeremy White, Emory Cohen, Michael Stuhlbarg Direcção de Fotografia: Jody Lee Lipes Música: Rakotondrabe Gaël Montagem: Antonio Campos Origem: EUA Ano de Estreia: 2009 Duração: 106’
Dia 24 Ou Morro, Ou Fico Melhor Laurence Ferreira Barbosa
A tristeza na adolescência é raramente evocada com tanta sensibilidade e idiossincrasia como aquela que Laurence Ferreira Barbosa revela na história de um rapaz perdido e das suas mais recentes “conhecidas”, totalmente inconformadas. À medida que a relação dos adolescentes se vai tornando numa folie à trois, os adolescentes vão caminhando de situações desajeitadas e humilhantes, para outras bem perigosas. A sensibilidade de Barbosa espelha-se num malabarismo entre a comédia, o embaraço social, e o drama psicológico numa história que – mesmo na volumosa área dos dramas dos adolescentes – se destaca como uma evocação de como é sentir-se jovem, estranho e solitário. As interpretações destes novatos da representação são notáveis. Civil e as irmãs Barbosa concedem aquele extra arrojado de hip-ness e perversidade perturbante.
Titulo Original: Soit Je Meur, Soit Je Vais Mieux Realização: Laurence Ferreira Barbosa Argumento: Laurence Ferreira Barbosa, Nathalie Najem Interpretação: Florence Thomassin, François Civil, Marine Barbosa, Carine Barbosa, Thomas Cerisola Direcção de Fotografia: Julien Hirsch Música: Reno Isaac Montagem: Isabelle Poudevigne Origem: França Ano de Estreia: 2009 Duração: 113’
Um borbulhoso retrato do estranho, selvático e incrivelmente desconfortável tempo da adolescência, UNS BELOS RAPAZES coloca uma mão cheia de gargalhadas de torcer o coração directamente no focinho. O desenhador de Banda Desenhada Riad Sattouf estreia-se com um conto divertido sobre um par de falhados que vive pequenos triunfos e humilhações intermináveis de uma ânsia sexual adolescente. Embora o filme adolescente conhecido como o tenho-de-dar-queca tenha sido rotineira e ainda mais eficazmente explorado no passado, Sattouf e o co-argumentista Marc Sygras (Replay) oferecem uma forma de comédia ainda mais cruel, presenteando uma série de gargalhadas visuais – numa média de uma ou duas por cena – concentrada em todos os poros oleosos das suas personagens.
Título Original: Les Beaux Gosses Realização: Riad Sattouf Argumento: Riad Sattouf Et Marc Syrigas Interpretação: Vincent Lacoste, Anthony Sonigo, Alice Trémolières, Noémie Lvovsky Direcção de Fotografia: Dominique Colin Música: Flairs e Riad Sattouf Montagem: Virginie Bruant Origem: França Ano de Estreia: 2009 Duração: 90’
Escolha de Daniel Barroca. Auditório do Instituto D. Afonso III (Convento Espírito Santo). Entrada livre.
(nota: por estas e por outras a seguir se prova que o Cineclube de Faro tem a maior e melhor biblioteca de cinema a sul do país, e quase-quase toda catalogadinha e tratadinha nas revistas de cinema! sim, porque quanto aos livros já está a 100%... :-)
Ninguém ficará indiferente à grande coragem que presidiu a todo o processo de crítica e auto-crítica envolvido no fabrico desta pequena obra-prima. O enigma que o filme revela e a seu modo resolve (devolvendo-o inteiro ao espectador) reside já no próprio título, propositadamente ambivalente: se, por um lado, as imagens mostram um ritual no qual uma comunidade negra africana - os aouka - parodia o brutal exercício do poder por parte dos «senhores» colonizadores (les maîtres), qualificando estes últimos de temíveis loucos, por outro, a maneira como Rouch monta essas imagens e as articula com outras (o princípio e o fim da fita) demonstra a que ponto a necessidade de exorcizar os crimes lesa-civilização do colonialismo branco, através dum rito insuportavelmente primário (no sentido de leitura literal de actos e factos observados, no sentido também de reconstituição estilizada porque elementar da rede obscura de impulsos que levam os actores do poder a desempenharem-no como se vê...) leva a que os intervenientes na cerimónia apareçam aos nossos olhos como mestres (maîtres) consumados no jogo vital da loucura. E o público que somos acredita realmente que os aouka aprenderam a dominar a loucura para se salvarem da dominação dos loucos. O génio de Rouch consistiu essencialmente em captar o invisível das relações no visível da sua teatralização e em optimizar o entendimento do que nos é estranho porque a um tempo nos é familiar - através da montagem tão certa, cruel e sensual que a curta duração dos planos não impede a impregnação nesse combate da terra e do sangue, fundador de todas as relações histórico-humanas (ou seja, míticas...); através do comentário off, cujo valor de delírio interpretativo questiona não só o saber-ver dos brancos como, por um efeito de espelho, o saber-fazer dos pretos, transformando a apetência do saber tout court numa pura precaução mental, numa antipoética da razão resignada; através, por último, do enquadramento discursivo do filme que corta pela raiz qualquer tentativa de minimizar ou iludir a importante discussão da barbaridade que as imagens propõem. Ao longo da sua aventura de caçador e presa das imagens do «outro mundo» aqui tão perto, Rouch registou muitos rituais que comportavam estados de transe. O que os distingue do rito de LES MAÎTRES FOUS é contudo fundamental pois que as divindades ocultas da cultura indígena poder político, social e cultural, de cuja dominação opressiva a cerimónia se apresenta como catarse possível. Como acontece em geral com as obras-primas - e esta por magia e felicidade foi precoce - ao realizar LES MAÎTRES FOUS, Rouch descobre uma utilidade nova do cinema. Acometido pela revelação dos poderes do instrumento, o iniciado construirá pedra a pedra o edifício teórico e experimental do ciné-transe. Como raras vezes acontece com os grandes cineastas é o seu próprio olho que Rouch põe a nu. Regina Guimarães, A Grande Ilusão nº 15/16
O cinema de Jean Rouch coloca diversos problemas interessantíssimos, é mesmo um dos mais ricos quer do ponto de vista temático quer do ponto de vista fílmico com que podemos deparar na segunda metade do século. O menor desses problemas não é, por certo, o da identidade, não apenas cultural mas «tout court», que ele leva até às últimas (que são, por vezes, também as primeiras) consequências. Branco entre os negros, primeiro, nos seus filmes os negros surgem entre os brancos e marcados pela civilização destes, e os brancos entre os negros e marcados pelas civilizações respectivas. Questão menor, dir-se-á, numa obra em que o processo de se tornar outro se impõe como o percurso mais importante, como o acontecimento decisivo que coloca cada ser na sua dupla dimensão de real e de ficcional (ou ficcionante) Este cinema que faz dos contrastes o impulso dinamizador do ficcional, do real e do fílmico oferece-se-nos hoje com a naturalidade que decorre de seres e de sociedades em transformação do e no mundo. Se assim não sucedeu quando Rouch começou no cinema, no imediato pós-guerra, foi porque muitos bloqueamentos então permaneciam nas sociedades ocidentais, para as quais um branco era um branco, um negro era um negro e pronto, conversa acabada. Como não encaixavam no esquema então dominante do filme exótico porque sobre uma realidade diferente, os seus filmes foram considerados como etnológicos, que também eram, e como destinados a circuitos especiais, sem que tivesse generalizadamente sido intuído que por eles passava alguma coisa de fundamental, não apenas no plano pulsional mas também no formal, do próprio cinema e da sua modernidade, então nascente. Rouch, um moderno, porque autor de filmes etnológicos e minoritários? Não é essa a questão, embora com o decurso do tempo se tenha percebido que o cinema na sua totalidade não podia nem pode passar sem elementos de registo, visual e sonoro, e sem elementos de ficção, combinados de maneira diversa. O que impressiona, em primeiro lugar, no percurso de Jean Rouch anterior a MOI UN NOIR, sobretudo a partir de LES MAÎTRES FOUS, e posterior a ele, é uma evidente dedicação ao problema do Homem no seu e nosso tempo. Esses modos diferentes de viver que o caracterizam nos meios diferentes que habita ganharam, com o trabalho dele, o estatuto de modelos não apenas antropológicos mas também fílmicos. De JAGUAR a PETIT A PETIT, passando por LA PYRAMIDE HUMAINE, CHRONIQUE D 'UN ÉTÉ, CHASSE AU LION À L’ARC e GARE DU NORD, e prosseguindo, por exemplo, com a série «Sigui», é toda uma problematização do conflito e da transferência de valores que é equacionada, é toda uma encenação e ficcionalização do imaginário que é filmada e projectada para nos dar a ver o século XX em alguns dos seus problemas mais agrestes e duros de resolver, como os da colonização e do convívio entre raças, entre costumes, entre modos de vida e maneiras de ver o mundo, entre valores sociais e culturais diferentes, assim como é a persistência de práticas e rituais ancestrais que é rigorosamente fixada para que permaneça como documentação da vida dos povos para além das circunstâncias históricas. Há, com efeito, um modelo Rouch no cinema da segunda metade do século, um modelo que instaura o homem como medida do homem, que se constituiu como referência inarredável do cinema na segunda metade do seu primeiro século de existência e que não estava contido no cinema anterior, nem em Robert Flaherty nem em Dziga Vertov nem nas diferentes escolas de documentarismo. Em segundo lugar, e como parece evidente, é uma dimensão ficcional que acaba por emergir na obra de Rouch, que tantas afinidades tem com o cinema documental. É essa «volta» que o cineasta impõe a um meio de expressão que, quase desde o seu início, tentou ser ficcional e artificioso para mais e melhor ser comercial, aquilo que nos deixa estarrecidos perante a importância do papel de Jean Rouch na evolução do próprio cinema A evolução da sua própria obra, que aponta para um acolhimento aberto de uma dimensão ficcional, como se descoberta na própria realidade, que estava como que escondida nos seus primeiros trabalhos africanos, surge-nos como a consequência lógica da necessidade dos seres que filma de passarem, nas situações conflituais que vivem, pela experiência de «ser o Outro» para poderem, plena e complexivamente, "ser Um». Ou de como ficcionar, nem que seja parcialmente (e em Rouch, com o tempo, a ficcionalização tornou-se uma prática estruturante, como forma de melhor e mais perfeitamente aceder à realidade dos seres e dos objectos e à dimensão mítica deles veja-se, nesse sentido, «Bateau-givre», o episódio de «Brise-Glace» que dirigiu), pode acabar por ser um passo determinante no registo mais documental do mundo, como condição mesmo da sua própria pertinência. Mas essa necessidade de ficcionar para melhor compreender e tornar compreensível uma realidade social é, em Jean Rouch, indissociável de um outro nível, o da representação pelos próprios personagens dentro dessa ficção. É por esse nível de representação, que pode assumir a forma da representação mimética do outro como em LES MAÎTRES FOUS, a forma do psicodrama, como em LA PYRAMIDE HUMAINE ou a forma da assunção de valores do outro como em JAGUAR e PETIT A PETIT que o cineasta faz passar um processo de aquisição de elementos para a estruturação de uma identidade não apenas cultural depois da sujeição do indivíduo e do grupo à influência do «outro» Não posso deixar de referir ainda que a importância da palavra, escrita ou dita, na elaboração fílmica de Jean Rouch, foi talvez o elemento que, desde cedo, veio contribuir decisivamente para que ele fosse considerado como um moderno, e dos mais importantes - e recorde-se que ele foi contemporâneo de gente tão importante para o cinema moderno como Georges Franjus e Alain Resnais. Com a palavra, esse «flagrante delito de legendar» a que se referia Pierre Perrault, Jean Rouch intrometeu uma dimensão nova no imaginário cinematográfico moderno, no modo de o conceber e construir, que outros vieram a aproveitar e desenvolver posteriormente. Pela palavra, nos filmes dele se afirmou, impossível de ignorar, uma dimensão verbal, nem sempre discursiva, na imagética cinematográfica. A construção fílmica que a palavra implicada nos seus filmes introduz, reconduz estranhamente o seu cinema a uma forma de expressão dir-se-ia que primitiva, como se a palavra e a imagem se combinassem quase arbitrariamente, embora efectivamente se combinem numa discursividade audiovisual nova. Deste modo, a importância de Jean Rouch na história do cinema não se limita à função documental e antropológica deste, mas abrange também o nível das formas de expressão e da estética. Pouco dado a homenagens, parece-me, todavia, de toda a pertinência saudar em Jean Rouch um dos inventores do cinema moderno numa das suas formas menos divulgadas mas nem por isso a menos importante, muito longe disso, e como um dos cineastas que mais longe o levou ao longo de uma obra de total coerência ética e estética. Carlos Melo Ferreira, a Grande Ilusão, nº 15/16
ENTREVISTA A JEAN ROUCH
Saguenail- O facto de proibirem os teus filmes, colocava-te automaticamente numa posição de resistência? Olha, para falar desse assunto, preciso de abrir mais um parêntese. LES MAÎTRES FOUS, que eu tinha realizado em 1954, provocara um grande escândalo. Apresentei-o no Museu do Homem, numa das primeiras reuniões do filme etnográfico por nós organizadas. Fiquei dentro da cabine de projecção e improvisei um comentário. Na sala subiam rumores... uma tempestade. Quando fui ter com o público, as pessoas estavam furiosas. O meu professor, o Marcel Griaule, aconselhou-me a destruir o filme imediatamente. Grande escândalo! Na sala estava o Paulin Wyera que viria a ser o criador do cinema senegalês, produtor do Sembene Ousmane, e que fora o primeiro estudante africano no IDEHC Também estava de acordo com o Griaule e achava que era preciso destruir o filme. O Luc de Heusch, realizador e professor em Bruxelas, foi o único a defender o meu trabalho. Encorajou-me a não me deixar influenciar e a conservar o meu filme: «Daqui a dez anos, vai ser um clássico!». Apanhado de surpresa, não sabia muito bem o que fazer. O meu filme era claramente rejeitado. Eu já tinha defendido a tese mas gostava muito do meu orientador, o Griaule. Reflecti maduramente sobre o caso e percebi por que é que toda a gente condenava aquelas imagens: os africanos rejeitavam-nas porque eu mostrava africanos a matar um cão coberto de baba e sangue (imagem «negativa» da África Negra) e o Griaule rejeitava-as porque continham o retrato dele, o retrato do branco. O filme incomodava ambas as partes. Por essa altura, o produtor Pierre Braunberger, que conhecia os meus filmes e me conhecia pessoalmente, pediu-me para visionar todos os trabalhos que eu tinha realizado. Estava acompanhado pelo Jules Dassin, que era amigo dele e regressava de Nova Iorque. O Braunberger tinha-o convidado a ver os rushes «dum tipo de quem ele gostava e que acabava de chegar de África». Mostrei-lhes duas horas do JAGUAR mudo, o MAMMY WATER e LES MAÎTRES FOUS. As projecções eram seguidas de discussões encantadoras. Visionávamos dentro dum armazém onde tínhamos improvisado uma sala de projecção e depois saíamos e discutíamos ao sol. O Dassin perguntou-me o que eu ia fazer com o JAGUAR na medida em que não havia diálogos; achava que não se podia resolver o problema introduzindo um comentário. .. Respondi-lhe que ia voltar a África, projectar os filmes para as pessoas e pedir-lhes para improvisarem um comentário... A opinião dele era que o MAMMY WATER era bom, que era preciso guardar o JAGUAR durante dez anos e principalmente que era imprescindível conseguir fazer de LES MAÎTRES FOUS um grande filme. Só que não conseguia imaginar muito bem como é que eu ia montar o material. O Braunberger propôs-me ampliar os imagens para 35 mm e arranjar uma boa montadora. Nenhum plano durava mais de 25 segundos e era preciso reconstituir uma continuidade. Regina Guimarães - O mais espantoso é que as imagens desfilam perante os nossos olhos e nunca temos a impressão duma acção lacunar. Temos mesmo a sensação de estar a assistir ao ritual. Trabalhei com a Suzanne Baron que tinha acabado de montar AS FÉRIAS DO SENHOR HULOT com o Tati. Todo o material foi ampliado para 35 mm e o som foi transcrito. Seguindo a ordem do som, tomando por referência o barulho da câmara e examinando atentamente a acção, reconstituímos o sucessão dos planos. Íamos buscar um bocadinho de som antes ou depois. Montámos respeitando o ordem cronológica da rodagem - visto que o filme foi rodado durante um dia - e acrescentámos uma apresentação e uma conclusão. A bem dizer, reconstruímos a sequência utilizando ruídos reais mas que não eram verdadeiramente síncronos. E chegámos a uma duração de 1 hora aproximadamente. Nessa altura, a Suzanne Baron fez-me notar que os pessoas falavam e expliquei-lhe que se exprimiam em língua Haouka. Eu tinha tentado traduzir o que as pessoas diziam mas o Haouka não é propriamente uma língua, é uma glossolalia. É uma língua de «Pentecostes», uma língua artificial. Monkayla-dusel, «o homem tranquilo», garantiu-me que era capaz de traduzir tudo o que era dito. De facto, interpretava. E interpretou-nos os frases das quais tomámos nota: toda o torrente de palavras, o telegrama-carta, a «round table conference». O comentário era uma interpretação do que as pessoas diziam. Com esses elementos montámos o filme seguindo o esquema da tradução. O milagre da Suzanne Baron foi ter conseguido reconstituir a continuidade. No fim, só faltava gravar o famoso comentário. Eu conhecia bem o filme porque tinha trabalhado nele plano o plano, palavra o palavra. Decidi gravar directamente à medida que visionava. Levei um texto escrito mas estava tão à vontade que podiam ter apagado os luzes. Gravei 50 minutos sem interrupções. Só parámos a projecção para voltar a carregar. Disse literalmente o filme em cima duma glossolalia. Com um medo terrível de me enganar nos nomes das pessoas e pormenores desse género. Tinha receio de dar erros de pronúncia e de cometer incorrecções linguísticas mas fui ajudado pela emoção. Só na parte final é que meti um bocado os pés pelas mãos. Fizemos uma transcrição para 35 mm e, a partir do comentário gravado, trabalhámos de novo o montagem até o filme chegar à sua duração definitiva. LES MAÎTRES FOUS acabou por sair e teve um prémio em Veneza. O Braunberger fez do filme o complemento de programa de A NOITE DO CIRCO do Bergman que estreou no cinema La Pagode. R. G. - Estiveste sempre em boa companhia. . . Mas, quando o filme estreou comercialmente, voltou a provocar escândalo. O filme foi sempre estranhamente recebido. A causa da rejeição permanecia: as pessoas não podiam aceitar aquela imagem de si próprias. Mantive-me sempre em contacto com a gente do cinema. Sempre tive boas relações com a família do cinema. A estreia de LES MAÎTRES FOUS foi particularmente marcante na medida em o filme mostra uma cultura vista por outra cultura. Em relação à cultura francesa adquiri o «olho negro». Foi por isso que o Edgar Morin me pediu para fazer a CHRONIQUE D'UN ÉTÉ. S. - No momento da convulsão em que os olhos começam a revirar, o que se vê é efectivamente a renda vermelha das veias: é como uma pele ensanguentada que alguém pousasse sobre os olhos. .. J. R. - É verdade... nunca tinha pensado nisso. .. Mas, para voltar à tua pergunta sobre o papel da câmara, devo acrescentar que foi com este filme que eu compreendi que a câmara me serve de defesa. Escrevi um artigo teórico sobre esta questão que causou grande agitação nas pessoas que participavam num seminário sobre a «noção de pessoa» em homenagem ao Marcel Mauss. Relatei uma experiência pessoal que não era uma experiência de crente mas sim dum crente na crença. Os africanos passaram a considerar-me um membro activo nos ritos de possessão. Sou um bom estimulante. Um bom «pastor» (aquele que acompanha). Mas nunca fui possuído. No inicio do meu trabalho de pesquisa dei-me logo conta de que não havia nenhuma substância alucinogénia, nenhum adjuvante para provocar o transe. Trata-se simplesmente duma «técnica do corpo» que permite mudar de personalidade à vista de todos. E compreendi que essa prática podia ser muito perigosa. Uma das razões pelas quais nunca entrei no jogo foi porque tinha simultaneamente a responsabilidade da câmara - é preciso focar, estar atento à luz, mudar os carregadores. A tecnologia e o meu instrumento exigiam de mim uma vigilância permanente. Quando rodei LES MAÎTRES FOUS, tinha esse dispositivo de protecção perante aquele espectáculo aterrorizador. No momento em que os participantes sacrificaram um cão, perguntei a mim próprio o que devia fazer se apanhassem uma criança e se dispusessem a matá-la; continuei a filmar, pensando para comigo que, se tal acontecesse, parava de filmar e ia-me embora... De facto era um receio absurdo, uma suposição sem fundamento; o papel essencial do Moukayla Kiri, o «homem tranquilo» era precisamente evitar qualquer «excesso» (sacrificou o cão para impedir justamente acidentes desse tipo. . .). S. - Mas então já nessa época atribuías um papel bem definido à câmara... A câmara constituía uma barreira tecnológica, racional, durkheimiana, que me permitia descobrir práticas surpreendentes sem nelas participar. . . O advento do som síncrono, com a possibilidade de rodar planos mais longos, veio de certa forma diminuir a protecção; o film maker, o realizador-cameraman é obrigado a desempenhar um papel mais activo, a ter uma câmara mais viva e mais móvel do que em LES MAÎTRES FOUS (em que a câmara era praticamente fixa). É obrigado a «estar em cimo do jogada» e a participar na coreografia. O que implica uma brusca metamorfose do seu instrumento de trabalho que passa a ser «câmara de contacto» e «câmara-catalizadora» da energia do ritual: a «barreira» transforma-se em «pastor». Regina Guimarães e Saguenail, A Grande Ilusão, nº 15/16
Há cinco ou seis anos, perdi os meus pais. Como primogénito ingrato que sou, usei a minha profissão como desculpa para justificar as longas ausências de casa. E sinto-me asfixiado por arrependimento, até hoje. “Se apenas tivesse sido mais...” “Porque disse isso então...”
Andando é um filme motivado pela experiência de arrependimento que todos partilhamos.
As personagens são pessoas normais e a acção desenlaça-se no decurso de um dia de Verão. Contrariamente aos dramas da televisão americana, nada de importante acontece durante o raro e prolongado encontro familiar. No entanto, ao longo daquele dia de uma maneira tão tranquilamente enganosa como a calma do mar, a maré flui, e na superfície avança a pequena ondulação em constantemente agitada.
Tomemos como exemplo, a ansiedade do protagonista face ao envelhecimento dos pais. Passa despercebido. Ou vejam as negociações sobre um futuro neto entre a noiva e a sua sogra. Aquele é o segredo delas.
Neste filme contemplei e retratei os minutos daquelas pequenas ondulações que se agitam ao longo das nossas longas vidas.
Não existem tufões neste filme. Apenas o “antes” e o “depois” da revelação de acontecimentos dramáticos. Por outras palavras, foquei-me nas premonições e reverberações da vida. Porque acredito que é precisamente aí que a essência da vida pode ser encontrada.
Porque Andando começa a partir de um espaço de arrependimento, decidi fazer dele um filme cheio de vida. Mais do que retratar a maneira como os meus pais viveram até aos seus últimos dias, a minha intenção foi captar o momento da vida propriamente dita. E preencher esse momento com todas as ambiguidades da memória familiar. Tal como as fotografias de um velho álbum de família...
Este filme é um trabalho de ficção, contudo confiei totalmente na actual personalidade e no vocabulário da minha mãe para moldar o carácter da mãe do protagonista. Quis fazer um filme onde pudesse reconhecer a minha mãe imediatamente. Não para chorar a sua morte, mas para voltar a rir com ela. E foi no que se tornou este filme.
Mais do que nos meus filmes anteriores, acredito que consegui retratar os homens e o seu comportamento de uma forma específica e subtilmente diferente.
Se o fiz com êxito, foi graças ao meu pai, e sobretudo, à minha mãe.
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Kore-Eda Hirokazu
Hirokazu Koreeda é um caso singular no cinema japonês contemporâneo. De facto, após sete longas-metragens (entre obras de ficção e documentários) que recorriam a dispositivos formais bastante distintos para encenar obsessões temáticas bastante análogas (pensemos, por exemplo, nas diferenças existentes entre os olhares quasi-romântico e quasi-documental que "Maborosi" e "Ninguém Sabe", respectivamente, lançavam sobre a morte da infância e a decomposição-recomposição da família), Koreeda afirma-se, à oitava tentativa, como um dos mais óbvios herdeiros do cinema clássico japonês - o de Mizoguchi e Kurosawa, mas também o de Ozu e Naruse que o novo filme do realizador ("Andando") parece encontrar as suas principais fontes de inspiração.
Com efeito, se, de um ponto de vista formal, a prevalência dos quadros fixos sobre os quadros móveis e a consequente rarefacção dos movimentos de câmara nos força a pensar em Ozu (e note-se que será preciso esperar cerca de meia hora para ver a câmara de Koreeda a mover-se pela primeira vez), de um ponto de vista narrativo a construção em baixo-relevo de uma história que funde as rupturas dramáticas no fluxo da vida quotidiana forçar-nos-á a pensar aqui tanto em Ozu como em Naruse. De ambos, o filme herda, aliás, uma certa forma de pudor estético, uma justa distância que o convida a adoptar uma estratégia de não-ingerência na dinâmica própria do seu objecto de estudo, a saber: a reunião da família Yokoyama (composta por pais, filhos e netos) após um longo período de afastamento.
Ora, para encenar esta reunião - motivada pelo aniversário da morte do filho mais velho da família, cuja memória persegue todas as personagens como uma sombra -, Koreeda condensa o espaço e o tempo (a acção decorre maioritariamente na casa dos velhos pais, ao longo das 24 horas que medeiam entre a chegada e a partida dos filhos e dos netos) para se concentrar menos nas relações das personagens do que nas difusas tensões afectivas que, posicionando-se entre elas como um obstáculo, as impedem de se relacionarem. Trata-se aqui de um labirinto e meios-olhares apenas entrevistos, de meias-palavras apenas sussurradas e de meias-memórias apenas sugeridas, onde a intangível espessura do silêncio e a invisível presença do passado (não há um único flashback no decurso de todo o filme) comandam a duração e o ritmo da mise en scène, espalhando rio espaço pólos de conflito de tensão variável. Haverá, então, um velho pai que permanecerá quase sempre confinado ao seu escritório, numa demonstração de indiferença pelo regresso a casa do seu filho mais novo (que, por seu turno, se sabe condenado a lutar pelo reconhecimento de um pai que nele parece encentrar somente um vago sucedâneo do primogénito morto); uma velha mãe que recriminará em surdina o casamento do seu filho mais novo com uma mulher divorciada e já com um filho de 5 anos na bagagem, e assim sucessivamente. Neste contexto de recíprocas censuras subentendidas, onde as palavras da reconciliação - a chegarem - chegarão por certo tarde de mais, compreende-se que a mise en scène de Koreeda reserve geralmente os grandes planos para os objectos que estão preenchendo os espaços vazios existentes entre as personagens: uma fotografia do filho defunto, um braço de gira-discos pousando sobre uma canção popular japonesa imortalizada em 45 rotações, um par de maçarocas de milho, etc. E compreende-se, dizíamos, porque são eles as alavancas utilitárias que promovem a comunicação, o trânsito das palavras e dos afectos, no âmago de uma célula familiar minada pela desilusão, pela morte e, sobretudo, pela incomunicabilidade. A essa incomunicabilidade generalizada, transversal, que vai consumindo os membros da família Yokoyama como um cancro de acção lenta, apenas a inocência das crianças - imune aos conflitos dissimulados que contaminam o mundo dos adultos - parece poder escapar. Não é por acaso que é para elas, para a sua fuga do espaço familiar, o primeiro - movimento esboçado pela câmara de Koreeda do fim e ao cabo de 35 minutos de filme.
NOTA DE INTENÇÕES Nesta Lisboa do século XXI em que ser moderno é sinónimo de dependência a novas tecnologias, quero um filme sobre relações virtuais e infidelidades electrónicas, de acordo com o ar do tempo. Através de boleros que escoltam toda a narrativa do filme conto uma história de intensos amores e profundos desamores que, como diria a Dolores Duan, “é como se fosse uma canção de dor de corno”. Fernando Lopes
CRÍTICAS
Irónico e actual. ‘Os Sorrisos do Destino’, novo filme de Fernando Lopes, é um retrato fiel das relações dos dias de hoje e da ‘interferência’ das novas tecnologias. Com olhos postos nas mensagens escritas e indiscrições dos telemóveis – que até podem denunciar relações extraconjugais –, a análise mordaz de Lopes faz-se em jeito autobiográfico, com Ana Padrão e Rui Morisson a lembrarem a ligação desfeita do realizador com Maria João Seixas. No início do filme, ficara o aviso: 'Qualquer semelhança com a realidade é pura ficção.' Mas, logo de seguida: 'O real ultrapassa a ficção.'
. Sofia Canelas de Castro, vidas.correiodamanha.pt
Os feitiços da lua - Uma divertida variação sobre o casal e a impotência
Fernando Lopes permanece como um dos nomes de referência do Cinema Novo, apesar de as suas duas últimas longas-metragens, "98 Octanas" (2006) e "Lá Fora" (2004), terem evidenciado algum esgotamento de soluções narrativas, de certo modo encerradas numa excessiva rarefacção, em que apenas o gosto de filmar e a capacidade de referenciar a memória cinematográfica davam a medida certa do seu talento para efabular a partir de indícios mínimos, da noção profunda de uma portugalidade ferida de morte - como acontecia nas adaptações de "O Delfim" (2002) ou de "Uma Abelha na Chuva" (1972), até hoje a sua obra maior.
"Os Sorrisos do Destino", a partir de um argumento bem arquitectado de Paulo Filipe Monteiro, embora em registo de comédia de costumes, curiosamente reminiscente de "Sorrisos de uma Noite de Verão" de Ingmar Bergman (o título está longe de ser inocente), vem repegar, sob a forma de jogo autoreferencial, nas suas obsessões anteriores e nomeadamente nos acentos trágicos de "O Delfim". Se não vejamos: o narrador do filme de 2002 (o excelente Rui Morrison, ainda e sempre com a sua máscara algo neutra de radialista de voz sedutora) passa a protagonista de um triângulo amoroso, gerado a partir de uma críptica mensagem de telemóvel, assinada por um misterioso Manuel B., diplomata e escritor africano, interpretado por Milton Lopes, o criado Domingos, ligado aos cães de caça, de "O Delfim", cujo par protagonista (Alexandra Lencastre e Rogério Samora) aparece num quase "cameo" autocitacional, no jantar que confronta os dois casais em estranha celebração; a oposição musical entre boleros e ópera (a baixa cultura e a alta cultura) recupera a sequência em que Samora canta "Sabor a Mi" no cabaret de "O Delfim"; a primeira ária de ópera apresentada, no programa de rádio, por Ana Padrão (também ela reminiscente da arrogância de classe da Maria dos Prazeres de "Uma Abelha na Chuva") vem de "A Força do Destino" de Giuseppe Verdi, cuja abertura dava o mote ao filme de 1972; até "Os Sorrisos do Destino" do título recompõem a componente fílmica bergmaniana e a musical de origem verdiana.
Depois, assistimos às múltiplas variações e desenvolvimentos sobre o tema (musical e fílmico) dado: o cão chamado Wotan (o deus de "O Anel do Nibelungo" de Richard Wagner) que, quando perdido parece responder ao apelo do dono por meio da "Morte de Isolda", do "Tristão e Isolda" do mesmo Wagner, mas acaba por reaparecer por um simples assobio; a centralidade de jantares e banquetes, brindes com vinho tinto e whisky; as cumplicidades masculinas entre Manuel B. e Manuel C., com a divertidíssima sequência do bolero, dançado em separado pelos dois homens, porque nenhum deles se consegue deixar conduzir pelo outro; o anel (uma aliança, marca de um casamento fracassado) lançado à água (omnipresente em "O Delfim" e em "Uma Abelha") a parodiar o final da tetralogia de Wagner, para apaziguar a ira dos deuses de uma tragicomédia comédia lusitana.
E constituirá delírio crítico ver a capicua do nome da protagonista, Ada, como uma cifrada caricatura do terrífico "Non" do Padre António Vieira e do filme homónimo de Manoel de Oliveira, sobre a guerra, latente no passado dos dois homens? E a mão de Manuel B. decepada por uma mina, não remeterá também de forma transversa para "A Caça" de Oliveira, num universo como o de Lopes povoado por lagos e pântanos e por personagens que se afundam na sua própria impotência? E a lua de George Méliès, aparentemente deslocada no contexto do final do filme, como divindade cinéfila que preside aos feitiços de uma guerra dos sexos herdada da comédia "screwball", em sonho de uma noite fictícia, não lembrará a sua muita diversa (e semelhante pelo excesso das paixões) utilização em "Le Soulier de Satin"?
Tudo o resto converge para esta noção de divertimento, desde a figura do filho que sobe as escadas em patins e se desloca em casa como se a vida passasse por imenso desporto radical. O tratamento do trio também decorre desta componente ligeira e paródica, nunca ocultando, porém, uma dimensão agridoce que impossibilita as relações e a comunicação.
Particularmente curiosa é a participação de Julião Sarmento, no papel de coadjuvante e de desencadeador da tecnologia que invade o filme como uma personagem subterrânea, a propiciar um grafismo moderno a uma velha fábula, a da traição controlada (e civilizada). Todas as contas feitas, "Os Sorrisos do Destino" não acrescentará muito à longa e importante obra de Fernando Lopes, mas constitui uma divertida e inteligente variação sobre os seus temas maiores.
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Mário Jorge Torres, Público
Ada é uma mulher cosmopolita, entre lançamentos de livros, programas de rádio, viagens a Itália e Wagner como música de fundo. Borboleta cultural, é natural que, aqui e ali, ceda às seduções que os artífices do gosto tão hábeis são hábeis a manusear. Do amor não saberemos o que pensa, mas o sabor da infidelidade está no rosto de Ana Padrão e cai-lhe bem. Carlos, o marido, pelo contrário, é um jornalista muito mais terra-a-terra, ao espavento sinfónica prefere os boleros de Los Panchos (espantosa banda sonora a desta fita - onde se compra?) e acerca do amor só sabemos que nunca há-de conseguir viver sem Ada. Rui Morisson é esse homem, seguro de si e, todavia frágil que, um dia, lê uma mensagem no telemóvel da mulher, por acaso, por artes do destino ele que nem é capaz de manusear tais aparelhos. Descobre que há um tal Manuel B. que anseia por voltar a estar com ela. E resolve conhecer esse outro parceiro que andava pela sua vida e ele nem sonhava. Escritor angolano, em casa isolada, de excelente gosto e melhor vinho, Manuel é Milton Lopes (que já em "O Delfim" era o homem que a senhora ia buscar). O que Carlos encontra e como resolve aquilo que encontra não cumpre dizer aqui, vão ver o filme. Convém saber, contudo, que ele leva no bolso uma navalha de ponta e mola, mas que esta não é uma fita de faca e alguidar.
"Os Sorrisos do Destino''' é uma situação triangular tão antiga. quanto a humanidade, contada com um sorriso nos lábios e um injúria no peito. Sagaz, o filme começa por uma alusão em subtexto (uma sessão fotográfica com uma top model em lingerie) onde o sexo se afixa com exuberante evidência, para depois o apagar quase por inteiro, como se esse fosse um assunto para o domínio do não-dito. Corajoso, enfrenta o pânico da solidão sem medo do ridículo naquela outra cena em que Carlos se levanta pela noite fora, sem norte nem rumo, e acaba acalentado pelo amigo que o mete na cama e lhe ajeita os lençóis, paternalmente - cena de uma verdade sem manejos, exemplar. Sofisticado, resolve-se numa espécie de encenação de alma grande, como se os comparsas masculinos fossem homens do mundo e soubessem sorrir perante os adejos das mulheres, os seus enlevos e enganos. Mas não sabem. No fundo há qualquer coisa de marialva por ali. Até no abandono a que Ada está votada.
Existe, no mais recente filme de Fernando Lopes, uma vontade de olhar as agruras dos sentimentos - o adultério, os cansaços, os jogos de sedução - com a leveza nobre dos cínicos amargos do cinema (Lubitsch, Wilder, evidentemente). Constatemos, no entanto, o ponto de vista excessivamente masculino para que se verifique a equanimidade que esses mestres sempre se esforçavam por praticar. E, à falta da arte da esgrima com que desembrulhar diálogos e situações, notemos que sobra uma ibérica consternação: boleros em que se pode marinar a dor de corno, temperada a álcool- whisky ou tinto (do Douro) - e tristeza. Quase quase já à beira das lágrimas. (Eu acho que a câmara desviou o olhar um segundo antes de acontecer. Questões de pudor, não temos nada com isso). Os filmes de verdade também têm direito a zonas reservadas.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso
Título original: Os Sorrisos do Destino Realização: Fernando Lopes Argumento: Fernando Lopes e Paulo Filipe Monteiro Interpretação: Ana Padrão, Rui Morisson, Milton Lopes, Teresa Tavares, Cristovão Campos Direcção de Fotografia: Edmundo Diaz Montagem: Jacques Witta e Carlos Madaleno Origem: Portugal Ano de estreia: 2009 Duração: 98’
Escolha de Daniel Barroca. Auditório do Instituto D. Afonso III (Convento Espírito Santo). Entrada livre.
“Os antigos a chamavam de ‘a hora do lobo’. É a hora em que a maioria das pessoas morre… e a maioria nasce. Nesta hora, os pesadelos nos invadem”.
Exatamente na metade do filme, quando o insone pintor Johan Borg (Max Von Sydow) fala sobre a hora lupina à sua esposa Alma (Liv Ullmann), sob a luz fremente de um único palito de fósforo, Bergman finalmente nos engole para o outro lado do redemoinho sobre o qual apenas circundávamos até então. E o filme todo é como um singrar entorpecido em direção aos núcleos subterrâneos da mente, diluída, aqui, na solvente atmosfera da madrugada.
Começo dizendo que A Hora do Lobo é um dos meus filmes favoritos de sempre, e o melhor do sueco doido em questão. Não apenas pelo salto incontido sobre o surrealismo, mas por manipular como nenhum outro os demônios e pesadelos de um personagem, transformando-o num mergulho inédito (ao menos nunca visto tão intensamente) adentro dos traumas, dos conflitos, dos medos e, essencialmente, da solidão.
Porque mais que pela paz ou pelo bem do seu trabalho, o isolamento naquela ilha traz Johan para um isolamento em si próprio. Daí que é irrelevante a existência ou dos “canibais”, ou da sua mulher ou até dele mesmo quando tudo se afunila (ou se “expande”, que pode ser o termo correto) num verdadeiro universo mental, que embora chamado de “irreal”, talvez seja o nível mais puro e nuclear de todos.
E uma das coisas mais notáveis em A Hora do Lobo é a indefinição de quando, precisamente, começa o alucínio, o vazamento da matéria-prima flutuante dos sonhos para a densa materialização na tela. Isso se de fato começa, ou ainda se está ali desde o início… assim como Bergman não deixa nenhum detalhe que decida derradeiramente que Alma viva apenas na imaginação de Johan, ou que Johan só exista na inconsciência de Alma (cujo nome, aliás – também utilizado na obra-prima Persona – já pressupõe a subdivisão de uma única pessoa em duas, ou se considerarmos os moradores do castelo, várias).
Basicamente tudo se esclareceria se soubéssemos quem, afinal, escreveu aquele diário. Mas acontece que por natureza A Hora do Lobo é um filme de sombras, e Bergman está sempre interessado em perguntas, não em respostas, de modo que a resume grosseiramente a mera pretensão de ‘decifrar’ a obra (e na verdade qualquer outro filme, porque cinema é feito pra se sentir, não para se decompor como a uma equação). Respostas, neste caso, são a mais sólida e impermeável imposição de limites; cercanias num terreno onde a imaginação deve ser livre para se alastrar a galopes.
De todo modo (e se já levemente percorrida até aqui por varizes de trincos), a identidade deste protagonista secreto se estilhaça no momento em que Alma põe os olhos no caderno de Johan (com a ajuda da velha do chapéu, originalmente um dos demônios do seu marido), e é precisamente quando a manipulação do tempo (este deus absoluto) é disparada numa potência até hoje desconhecida e talvez irrepetível na história do cinema (apesar de David Lynch ter feito um trabalho inexplicável em Império dos Sonhos, mas isso é outra coisa). Porque A Hora do Lobo é todo sobre o tempo projetado na lâmina da mente e refratado em uma nuvem de pedaços. Taxá-lo simplesmente de “não-linear”, aliás, é quase um insulto, como pedir para que o próprio Bergman desça e lhe assombre à noite, e quem conhece sabe que o diretor sueco é um fantasma eterno e onipresente sobre quem o assiste (alguns momentos do próprio A Hora do Lobo são especialmente traumáticos).
Mesmo que não esteja saliente como mais tarde, uma delicada névoa de pesadelo já pesa sobre o filme desde o início, mostrando-se mais forte durante a cena do jantar. De cara Bergman entorpece o espectador numa ciranda ao redor da mesa, deformando e diluindo os rostos como se uma pintura ainda fresca de Johan (o que, por um lado, não deixa de ser literalmente verdade) fosse girada sobre o próprio eixo. A partir daí, a imagem quase sempre se solvendo é uma prevenção de que os sentidos e os valores baseados num mundo concreto começam a se desmanchar.
É assim pela cadência célere dos diálogos, dos movimentos de câmera abruptos e dos closes opressivos, resultando num efeito de quase vertigem como que a noite vista detrás dos olhos de Johan (embora a câmera não seja propriamente subjetiva). O que se segue é uma madrugada envolta num manto surrealista todo baseado no comportamento bizarro dos moradores do castelo. O teatro de marionetes inclusive brinca com as noções do espectador de até quando as projeções da mente invadem o terreno do concreto, e neste caso é o próprio Bergman que compõe esta cena assumidamente ficcional, na luz que se apaga sozinha como por ordem do ‘diretor’, na marionete viva, na música de uma banda ou aparelho inexistente (de novo, o próprio Lynch faria algo semelhante – mas bem mais evidente – no clube do silêncio de Cidade dos Sonhos). É ele quem convida a nos soltarmos de quaisquer amarras ao sobrepor o nível ‘cinema’ ao nível do sonho e da imaginação, forjando-os indissociáveis a partir daqui. Ou se crê no cinema como extensão do imaginário, ou se abandona A Hora do Lobo.
E o filme é intensamente perpetrado de um feitiço, como que cercado de bruxos, círios e pentagramas. Porque, sob a luz encantada da hora lupina, as coisas mudam de cor, de forma, a densidade das massas toma outros valores, as ligações com o mundo real são corrompidas. Quando “Vargtimmen” se acende na tela, um último resto de sanidade se apaga.
Perdidos na escuridão dessa hora, Alma e Johan conversam e conflitam traumas como se memórias perigosas fossem todas trazidas de volta pondo a mente à beira de uma eclosão. A cena catalítica de A Hora do Lobo envolve exatamente o pior dos fantasmas de Johan: a infância, também angular em toda produção artística do próprio Ingmar Bergman (sabe-se que Bergman sofreu demais nas mãos do pai, um pastor luterano fanático). A confissão do episódio do armário é uma confissão do diretor, e a morte do garoto, uma tentativa de exorcismo (o que já é praticamente um resumo do que guiaria sua filmografia).
A cena em questão é das coisas mais perturbadoras e insuportavelmente tensas já filmadas. E é lindo. Pescando num golfo, Johan se vê extremamente incomodado pela presença de uma criança. O garoto se aproxima, observa o quadro e o cavalete com certa curiosidade, conta os peixes fisgados, mexe nas botas, troca olhares indecifráveis com o pintor. Quando ele simplesmente pára nas costas de Johan, o crescente de um zumbido laminal estoura na trilha. O contraste entre a imobilidade dos dois e a aceleração sonora já quase navalhando os ouvidos apenas torna tudo ainda mais incômodo, angustiante, nocivo. E a seqüência da luta é especialmente tóxica para os sentidos. Há toda uma harmonia perfeitamente sincronizada entre a ação e a trilha, que golpeia os ouvidos conforme Bergman agride nossas retinas. Mas o teor realmente assombroso de toda a cena é a visão inexplicável do garoto afundando e emergindo na água igualmente morta e com um aspecto grotesco de óleo diesel (a fotografia do lendário Sven Nykvist joga a maior parte dos tons de cinza no lixo). E o sueco decreta: os porões da memória são sempre os piores cadafalsos.
A partir de então Johan submerge-se totalmente, embebe-se no visgo dos próprios traumatismos e afoga-se na saliva dos seus demônios, reencontrados, aliás, um a um pelo seu percurso doentio através do castelo. E é impressionante a precisão de como a lógica torpe de um pesadelo tenha sido representada. As peculiaridades dos seres, a régia toda deformada dos diálogos e o sopro mediúnico do lugar são pilares de uma construção atmosférica sem nenhum paralelo, transformando o terço final de A Hora do Lobo numa das experiências cinematográficas mais intensas e absurdas às quais alguém pode ser submetido.
E a imagem, a partir daqui, toma uma proporção imperativa, mostrando-se inesquecível durante várias situações criadas pelo diretor. A sucessão de ações no limiar do tétrico e do divertido, do repulsivo e do sedutor, do melancólico ao colérico (e Bergman realmente patrola as fronteiras das sensações; aproxima, mistura e dissolve os extremos numa massa homogênea) termina por compor uma tatuagem na pele da memória, e o sentimento evocado ao se olhar para este painel é qualquer coisa à qual ninguém pôde, ainda, nomear.
O que se segue é uma queda livre e irreversível no abismo interior. E no fio do vértice, aparentemente morta sobre uma mesa, nua e linda, iluminada apenas por uma lâmpada incandescente, está uma mulher. O olho do vórtex, o ponto de união do verso e antiverso desta mente que se encontra em pleno desmoronamento. Verônica Vogler é um portal, uma passagem só de ida para outro mundo. E partindo da esquizofrenia do próprio filme, não se sabe ao certo se é a opção definitiva de Johan pelo pesadelo ou finalmente sua fuga dele.
E é lindo, apesar de todo o horror, da violência, de toda tristeza implícita na contemplação quase sádica deste mórbido espetáculo do colapso de uma constelação mental; é lindo pensar que um filme que comece e termine num tom documental tenha sido inteiro concebido no interior de um sonho.
Moon, o filme de estreia de Duncan Jones – filho de David Bowie -, é um exercício cinematográfico de ficção científica pouco comum nos dias que correm. O orçamento é pequeno, os actores são poucos, os efeitos especiais aparecem apenas ocasionalmente. Civilizações longínquas, conflitos rocambolescos e viagens interplanetárias são coisas que aqui não existem. Aliás, Moon é um bom exemplo de como não é preciso ir aos confins do Universo para criar um argumento perspicaz e cativante.
Num futuro não muito longínquo, grande parte da energia consumida na Terra provém da Lua, sob a forma de hélio-3. É lá que encontramos Sam Bell (Sam Rockwell), funcionário da Lunar Corporation e único responsável pela manutenção da estação lunar e demais infraestruturas, encarregues da extracção de tão precioso mineral. Sam encontra-se no fim da sua missão de 3 anos, longe da sua família mas com a companhia de um robot, GERTY (voz de Kevin Spacey), que expressa os seus sentimentos através de smileys num ecrã. Enquanto se prepara para regressar à Terra, a saúde física e mental de Sam começa a deteriorar-se, levando a um grave acidente que iniciará uma série de eventos extraordinários.
Sam Rockwell oferece uma magnífica interpretação de Sam Bell, num ambiente isolado e longínquo, onde a solidão e o tédio são uma realidade inescapável. Moon revela-se, quase na sua totalidade, um verdadeiro one man show, abordando um conjunto de temas muito na voga, seja a manipulação genética, a ética corporativa, ou os efeitos da solidão na definição da condição humana. Rockwell acaba por surgir na tela mais vezes do que seria de esperar, numa grande demonstração de versatilidade, com um personagem obrigado a constantes mudanças de emoções e estados mentais. Duncan Jones revela um impressionante brio técnico na realização de Moon, injectando na narrativa e nos espaços fechados da estação uma enorme densidade emocional. De facto, Moon aparece como uma reflexão acerca do futuro da humanidade, confrontando a sua ambição com os problemas que advirão do progresso tecnológico. Como, porquê, à custa de quê?
Este progresso tecnológico é aplicado no paradigma de Moon de uma forma muito verosímil. Sarang, a base lunar onde decorre a maior parte da acção, parece um espaço realmente habitado por um ser humano. A desarrumação, as plantas e as embalagens de comida contribuem em boa parte na criação de um ambiente que, não deixando de ser futurista, parece assustadoramente real. Não só isso, como a falta de gadgets espalhafatosos, ecrãs holográficos e demais clichés dos habituais filmes de ficção científica fazem com que a realidade de Moon pareça muito próxima no tempo, bem ao alcance do artifício humano.
A cinematografia de Gary Shaw é excelente, criando uma atmosfera visual peculiar, quase antiséptica. Eventuais comparações com 2001 – Odisseia no Espaço, ou mesmo Alien, são naturais. Moon parece inspirar-se, estética e qualitativamente, nestes filmes, com um ambiente retro reminiscente do clássico de Ridley Scott – ambas as películas foram filmadas, curiosamente, nos estúdios de Shepperton, em Inglaterra. Duncan Jones conduz estas particularidades com grande sensibilidade e inteligência, não se obcecando com efeitos especiais muito vistosos e concentrando-se na personagem atormentada de Sam. E também em GERTY, já agora, cujas simples expressões faciais no monitor transmitem uma forte consciência e afectividade, apesar de o seu parentesco com HAL 9000 (2001- Odisseia no Espaço) o tornar ligeiramente sinistro, também por culpa da voz sardónica e sem expressão de Kevin Spacey.
A acompanhar toda esta conjuntura surge a banda sonora de Clint Mansell, que vai ditando o tom da acção, complementando o cenário visual com uma experiência auditiva coesa e altamente recomendável.
Não sendo perfeito, Moon é mais um excelente exemplo de um filme de baixo orçamento, sustentado na visão ambiciosa de um jovem realizador e na interpretação de um actor talentoso. O espectador atento não ficará indiferente às questões éticas e morais levantadas pelo filme que, partindo de uma premissa simples, caminha com mestria para algo inesperado e único. Mas, mesmo que se procure uma experiência sem grandes intenções de reflexão sobre o conteúdo, Moon emerge como um space movie bem interessante.
Vasco Ferreira, hotvnews.com.pt
Título original: Moon Realização: Duncan Jones Argumento: Duncan Jones e Nathan Parker Interpretação: Sam Rockwell, Kevin Spacey, Dominique McElligott, Rosie Shaw, Adrienne Shaw, Kaya Scodelario Direcção de Fotografia: Gary Shaw Música: Clint Mansell Montagem: Nicolas Gaster Origem: Reino Unido Ano de estreia: 2009 Duração: 97’
Biblioteca Municipal, 21h30. Filme na presença do realizador.
Trás-os-Montes, região esquecida e despovoada, vítima de promessas políticas incumpridas. O anúncio da construção de uma barragem ameaça a centenária linha ferroviária do tua. A identidade do povo transmontano está em risco de submergir.
Crítica António Mexia, presidente da EDP, aparece a certa altura ao lado de José Sócrates em Pare, Escute, Olhe, de Jorge Pelicano, a estranhar que no Vale do Tua, onde o Governo se prepara para construir uma barragem, esteja "tudo despovoado". Se António Mexia conseguisse libertar-se das suas importantes e muito bem remuneradas funções e tirasse meia hora para ver este documentário, descobriria o porquê desse despovoamento - tem tudo a ver com a irresponsabilidade, a indiferença, a incompetência e o desconhecimento que políticos e decisores têm do "país profundo". O autor de Ainda Há Pastores? assina, com Pare, Escute, Olhe (o título, além de remeter aos clássicos sinais das passagens de caminho de ferro, é uma sugestão ao espectador e também aos que mandam nisto), um verdadeiro documentário de serviço nacional, sobre a morte anunciada da Linha do Tua, que deverá ficar submersa por uma barragem. Como diz alguém a certa altura, o desaparecimento do comboio e o estrangulamento do rio significam o fim "de uma identidade" local que ajuda a fazer a identidade nacional maior, de um património único, insubstituível. E a barragem em muito pouco vai beneficiar quer a população, envelhecida, desiludida e passiva, para quem a "sua" automotora é muito mais necessária e útil, quer o desenvolvimento local .
Cheio de cinema, humor, melancolia, emoção, ritmo, música (composta à medida das imagens), indignação legítima, informação útil, rádios locais com discos pedidos que unem quem ficou na terra aos que trabalham no estrangeiro e gente pitoresca e genuína que se manifesta sem papas na língua ("A barragem, que atirem com ela ao rio, que se f...", diz um velhote a certa altura), Pare, Escute, Olhe é um filme político mas apartidário, de intervenção mas não propagandístico, cuja causa é o bem maior de todos nós. Senhor Mexia, tire lá meia hora e vá vê-lo.
Eurico de Barros, Diário de Notícias
O documentário que agitou o Doc
Um filme - "Pare, Escute e Olhe", de Jorge Pelicano - e os três prémios que ganhou no DocLisboa 2009 abriram a polémica: está o festival de cinema documental contaminado pela televisão e a premiar um produto de TV? Não, dizem os defensores: o filme não só é cinema como tem uma capacidade de comunicar com o público, coisa que muitos não têm. Está sim, contrapõem os críticos, quando o que devia fazer era valorizar quem experimenta fora dos formatos. Que festival deve ser o Doc?
Ainda a sessão para mostrar o filme premiado na competição nacional do festival de documentários DocLisboa ia a meio, no domingo a seguir à entrega de prémios, e já a polémica tinha rebentado. "Pare, Escute e Olhe" é um "programa de televisão?". Cabe neste festival? Devia sequer ter sido seleccionado? E, mesmo sendo aceite na competição, merecia os três prémios que conquistou? Está o DocLisboa a "ficar contaminado pela linguagem televisiva"?
Documentaristas, produtores, críticos, espectadores dividiam-se, uns em defesa do filme de Jorge Pelicano - sobre a desertificação do interior e em defesa da linha de comboio do Tua que corre o risco de ficar submersa debaixo de uma barragem - outros classificando-o como "reportagem de televisão". Houve até quem saísse da sala ao fim de pouco tempo. Enquanto muito do público aplaudia o filme na sessão e discutia com o realizador o futuro da linha do Tua, no Facebook abria-se um debate sobre o que deve ser o programa editorial de um festival de documentário: serve para ver cinema ou para ver televisão?
"O DocLisboa é um festival de documentário. E o documentário ou é cinema ou não é documentário. [O filme vencedor] não é um documentário, é um produto de televisão", afirma o produtor Pedro Borges, da Midas Filmes. "É grave as pessoas acharem que já não há diferença entre um documentário e um programa de televisão". "O filme do Jorge Pelicano não é um produto televisivo típico", diz, por seu lado, Sérgio Tréfaut, director do Doc. "Recusamos imensos programas de televisão, feitos para um canal de televisão. Este é um filme, é um trabalho que demorou três anos a ser feito". Não há dúvidas, para Tréfaut, de que "‘Pare, Escute e Olhe' não tem uma duração televisiva, nem formato clássico de televisão - tão característico das últimas décadas de retratos de artistas. É um documentário político, engajado, com linguagem provocadora, directa e informativa, herdada da televisão mas pouco habitual em Portugal".
Catarina Alves Costa é documentarista. E o que a surpreendeu não foi a presença do filme no festival, que considera legítima; foi o facto de ter ganho três prémios. "Não acho que seja um programa de televisão e não acho que o facto de estar no festival seja um problema. O que acho estranho é ter ganho logo os três prémios. Porque é um filme que vem de uma linha de reportagem, sem uma relação de proximidade com as pessoas, sem uma atitude cinematográfica clara. É um acumular de provas. É a lógica da reportagem, que mostra que há um problema e aponta uma solução".
E então?, pergunta Tréfaut. Não acontece o mesmo com muitos filmes estrangeiros mostrados no Doc? Catarina Alves Costa concorda que sobretudo na secção Investigações houve muitos filmes com esse perfil. "E se estão lá os internacionais porque não hão-de estar os nacionais? Não vou criticar essa opção". Mas lamenta que "no panorama actual do documentário em Portugal, que é dramático em termos de circulação dos filmes, em que não existem salas e poucos saem em DVD, e em que há um esforço enorme de uma nova geração para tentar fazer coisas diferentes, o festival não opte por premiar o que se faz de mais experimental, de mais arriscado".
O Doc mostra de tudo, contesta Tréfaut, embora "exclua regularmente documentários feitos apenas para televisão". Mas, na opinião do director, "o pior é quando se nota que alguém quer apenas ‘ser artista' ou ‘ter estilo' sem entrar em diálogo com ninguém". Acha "deprimente ver que alguém se preocupa mais com a sua aparência, com o estilo da sua assinatura, com ‘o que está na moda', do que com o sentido, o valor e o interesse da obra que está a tentar produzir".
O festival que organiza está "vivo, não está mumificado ou preso a categorias estéreis". E dá como exemplo quatro filmes da competição nacional, com características muito diferentes - uns mais experimentais, outros menos - mas que, acredita, têm todos potencial para estrear em salas e "juntos fazerem dezenas de milhares de espectadores": "Pare, Escute e Olhe", "Com Que Voz", de Nicholas Oulman, "Lisboa Domiciliária", de Marta Pessoa, e "48", de Susana Sousa Dias. Este último, acrescenta, "provavelmente o mais ousado e vanguardista que recebemos, foi ovacionado pelo público e até reconhecido como uma obra prima pela imprensa brasileira, como é o caso de Amir Labaki na ‘Folha de São Paulo'".
Falta de produtores?
E, no entanto, foi o filme de Pelicano que o júri entendeu premiar. Porquê? Guy Knafo, francês e ligado à distribuição televisiva a nível mundial através da sua empresa 10 Francs, era um dos três membros do júri e explica ao Ípsilon, por telefone a partir de França, as razões da sua opção. Quando ouve falar de dúvidas sobre o prémio lança: "Alguém se deu ao trabalho de ver até que ponto o filme tem ritmo, fala de histórias humanas e universais, até que ponto a montagem é boa, poderosa, ao serviço de uma causa verdadeira, universal?" Desabafa: "Que felicidade quando uma história nos é bem contada!".
O entusiasmo é partilhado por outro membro do júri, o holandês Raymond Walravens, director e programador do Rialto, sala de Amsterdão especializada em cinema independente. Reconhece várias qualidades aos diferentes filmes apresentados na competição nacional. Mas considera que muitos tinham fragilidades. "Nem todos tinham o ritmo, o tema, ou a forma de contar a história suficientemente forte para manter a audiência do cinema atenta durante 90 minutos".
E isso leva a outro problema que Walravens identifica no documentário português: "Os realizadores têm material muito interessante mas percebe-se que não há um produtor ou um editor que lute com eles para tentarem fazer o melhor filme para a audiência". Este trabalho de um produtor que participa, discute e orienta o realizador "está menos desenvolvido em Portugal do que na Holanda e isso tem um efeito negativo na qualidade dos filmes".
Não entende isso como forma de limitar a criatividade do autor. "Se alguém quer escrever um livro ou pintar um quadro, óptimo, não está a gastar o dinheiro dos contribuintes. Mas se quer fazer um filme deve pensar que o que está a fazer custa dinheiro". Um festival como o Doc tem uma estratégia para tentar chegar ao maior número de pessoas. "Porque é que há-de tanta gente estar a esforçar-se para que um filme seja visto por mais pessoas e o único que não se preocupa com isso há-de ser o realizador?".
Vê, por outro lado, como positivo que no caso do filme de Jorge Pelicano haja o financiamento de uma televisão (a SIC) mas que "deu ao realizador a liberdade de fazer o que queria". Este filme, acrescenta, "provou que não interessa quem paga, interessa que o realizador tenha o tempo que precisa para fazer o melhor filme possível".
Mas há quem considere que esse tipo de intervenção dos produtores, defendida por Walravens, está muitas vezes condicionada pelas exigências do formato televisivo, normalizando os produtos. "Se calhar", diz Catarina Alves Costa, "há uma especificidade do documentarismo português e se calhar não queremos fazer igual ao que se faz em todo o lado. O cinema português sempre teve uma identidade muito forte e o documentário também está dentro disso".
Nos festivais europeus "há muita coisa igual, e isso tem a ver com o poder das televisões", é também a opinião de Daniel Blaufuks, fotógrafo e autor do documentário "Um Pouco Mais Pequeno do que o Indiana". "Isso pode ser feito em Portugal, mas é isso que querem? Uma linguagem uniforme e televisiva?".
Uma visão do mundo
Para alguns dos críticos, a questão mais importante não é a de saber como é que o filme de Pelicano ganhou três prémios. É, antes, saber como foi seleccionado para o Doc. Maria João Madeira fez parte do comité de selecção (como em anos anteriores) e assume a escolha colectiva que inclui o "Pare, Escute e Olhe". No entanto, nota que "grande parte dos filmes que surgem são nitidamente contaminados por um discurso televisivo, o que em parte tem a ver com o apoio das televisões, a esperança [dos realizadores] de que os filmes venham a passar na televisão".
Um documentário "tem um olhar, propõe uma visão do mundo. É diferente de estar a escalpelizar um assunto de uma forma mais próxima da prática jornalística". O ter ou não uma tese a defender não é a questão. "Há toda uma escola de documentário militante". A verdadeira diferença é que um documentário "transporta um olhar e tem uma pulsão cinematográfica", há nele "uma relação que se estabelece com o tempo e com o espaço".
É disso que, como espectador do Doc, vai à procura Daniel Blaufuks. "O que se pede é que as coisas tenham qualidade". Dito isto, considera o Doc um festival "mais virado para a política do que para a poesia, mais para o real, para as coisas a quente, do que para a introspecção". Ressalva aquilo que faz a diferença em relação a esta opção: a secção Riscos, programada por Augusto M. Seabra, que "vai escolhendo produtos mais artísticos, mais próximos do cinema".
Em 2006 o Doc rejeitou o anterior filme de Pelicano "Ainda Há Pastores". Ana Isabel Strindberg fazia parte da direcção do festival nessa altura e revela que o filme não foi aceite precisamente por "ter uma linguagem audiovisual e não cinematográfica", algo que não se integrava "no Doc, que é um festival de cinema". A diferença? "A linguagem audiovisual quer dar muita informação de forma muito rápida. E por vezes não há um ponto de vista".
A contribuição do crítico e realizador Lauro António para este debate é a prova de que se pode olhar para o mesmo objecto de uma perspectiva oposta. Programou o "Ainda Há Pastores" para o Cine-Eco, em Seia, no mesmo ano em que foi recusado no Doc e assistiu ao primeiro grande sucesso público de Pelicano. "Seleccionei-o porque achei que era um excelente documentário sobre uma realidade portuguesa [os pastores], com grande solidez de construção". Na altura, sem conhecer o realizador e sem qualquer ideia preconcebida, considerou que o filme tinha "uma certa honestidade de olhar e procurava sair da snobeira nacional, não ostentando uma atitude de superioridade sobre nada", sem "os tiques formais de alguns documentários portugueses que querem ser muito intelectuais e profundos e às vezes não chegam a nada". Acompanhou depois o realizador ao Brasil, onde o filme passou no FICA, em Goiás, e confessa que nunca tinha visto "uma reacção tão entusiasta em relação a qualquer filme português".
O documentário "é um género aberto, de fronteiras largas", afirma Sérgio Tréfaut. Documentário é cinema, insiste Pedro Borges. E a diferença, avança, entre cinema e televisão é clarissíma. "É a mesma que há entre livros e literatura e que 2500 anos de História ajudam a explicar. O cinema tem uma História, o documentário tem uma História, e quem nunca viu nada não pode falar disso". Estar a falar de documentário televisivo não faz, para este produtor, qualquer sentido. E "é uma ideia que durante anos matou o documentário". O futebol que passa na televisão "não é jogado ‘à maneira da televisão', é futebol e a televisão é apenas o difusor".
O Doc "não é um cineclube de arte para os amigos", remata Sérgio. Tem a ambição de "falar sobre o que se passa no mundo, interferir sobre a sociedade, alterar costumes, enriquecer o debate público." Sim, mas Catarina Alves Costa lamenta que quando "se quer ser [um festival] para o grande público acabe por se standartizar o que se mostra". E se há fragilidades nos filmes portugueses, se faltam produtores criativos, "isso resolvia-se com mais exibição, mais discussão." O problema é que "neste momento há falta de discussão no meio do documentário."
Alexandra Lucas Coelho, Ípsilon
Direcção Fotografia, Edição e Realização: Jorge Pelicano
Assistente Realização: Rosa Teixeira Da Silva
Pesquisa e Desenvolvimento: Jorge Pelicano e Rosa Teixeira Da Silva
Música Original: Manuel Faria, Frankie Chavez, Francisco Faria
Produção: Costa do Castelo Filmes
Produtor: Paulo Trancoso
Captação de Ambientes: Filipe Tavares, Joaquim Pinto Mistura
Edição de Som: João Ganho
Arquivo Ferroviário: Joaquim Mendes, Bob Docherty, Fernando Nunes, Marco Prata Co-Produção Sic Televisão Apoio Financeiro Fica