Nesses vários sentidos, NE CHANGE RIEN – o filme de Jeanne – tem muito de retrato, indisfarçavelmente atraído pelo seu motivo, vem dela a luz do filme, muitas vezes mesmo no sentido literal do termo, nele nos devolvendo muito de auto-retrato – o filme de Jeanne por Costa. É Jeanne Balibar quem ouvimos dizer por duas vezes lembrando a um músico (ou a um técnico de som?), entre sorrisos, que as palavras de apreço incentivador a um ensaio de “Peine Perdue” evocam as que se ouvem dizer no plateau da rodagem de um filme: “Acreditamos em ti.” / “No cinema, diz-se ‘diverte-te’…” ou, num passo mais tardio, eco desta primeira troca de galhardetes, outra vez entre sorrisos, “’Diverte-te’, como se diz no cinema.” É Jeanne Balibar quem traz para dentro do filme o cinema clássico americano quando canta o tema do filme de Nicholas Ray JOHNNY GUITAR. Filmada por Costa, é ela quem guarda a fotogenia das grandes divas nos muito grande planos, sempre em recorte sobre o negro do fundo, sempre semi-iluminados, semi-obscuros (ou o da luz mais difusa em que a vemos cantar o tema do título, “Ne Change Rien”, muito próxima do microfone, a câmara muito próxima da cara dela, versão Marlene). Ou então, para além da cinefilia, onde também cabem sombras expressionistas e um vibrante pulsar americano e negro, é a ela quem Costa filma sentada num banco alto, de auscultadores nos ouvidos ao microfone, em frente a uma tela branca no estúdio de Rodolphe Burger, o segundo protagonista de NE CHANGE RIEN. O branco da tela (um ecrã de tripé portátil) destaca desta vez a silhueta escura de Balibar que grava “Peine Perdue” acompanhando-se com os gestos de fluida elegância descritos pelo seu braço e mão direitos. Vemo-la então enquadrada pelos traços geométricos da tela lisa, dela destacada em nítido recorte tridimensional. Mais tarde, noutro momento de ensaio, a mesma tela será cenário de projecção de sombras das personagens que circulam no espaço do estúdio antes de ocupar os seus lugares em frente a ela. O plano começa uma vez mais escuro, abrindo com um ponto de luz (um candeeiro que se acende à direita no fundo do quadro para o jogo das sombras). O pequeno ecrã quadrado branco no fundo da composição do plano, nesse passo, de conjunto e cena de vários movimentos, funciona como elemento do cenário favorável à visibilidade da acção e como superfície reflectora trazendo para o interior da imagem uma imagem evocadora da projecção: uma sala escura, uma tela branca. O som traz-nos a música que já se ouve desde o início do plano, mas nesse instante parecemos rememorar uma palavra de ordem do cinema, “Acção!” (por mais arredada que saibamos que ela esteja da prática do cinema de Pedro Costa desde, pelo menos, NO QUARTO DA VANDA, e que entendamos como o dispositivo de NE CHANGE RIEN ferozmente a dispense, seguindo os trâmites em que Costa filmou Straub e Huillet no seu estúdio de montagem em OÙ GÎT VOTRE SOURIRE ENFOUI?, o título que na sua obra mais imediatamente com este rima enquanto retrato nascido de um encontro cúmplice dirigido para a exigência do, e o respeito pelo, trabalho de criação).
Assim olhado, NE CHANGE RIEN persegue em dupla linha, no rasto do cinema – questão de cinefilia enraizadamente latente, que os filmes de Costa tanto convocam – e seguindo uma pulsão narrativa que vibra no interior de cada quadro e de cada sequência com os traços de uma história que entendemos familiar de uma outra, verbalizada por Balibar, “como no cinema”. Enquanto registo do trabalho de um cantor em estúdio, NE CHANGE RIEN filia-se no belo caso de Godard com os Rolling Stones, ONE PLUS ONE, tomando no seu sopro fantasmático a vulnerabilidade de Jeanne Balibar num embate lírico com o preto e branco que molda o filme. Tendo-o abandonado depois de O SANGUE, Costa voltou a ele aparentemente levado pela questão prática de ter que filmar os concertos de Balibar sem poder interferir na iluminação dos palcos e desgostando dela. O que está no filme é o negro iluminado a branco em afinações muito precisas, um chiaroescuro belíssimo, a fazer acreditar que à questão técnica sobreveio um apurado gosto pelo trabalho dessa imagem, tão preciso como os cruzamentos que ao longo do filme põem de acordo as bandas de imagem e som. É nele que desfilam, como vinhetas fundidas nos off da música ou dos diálogos, as sequências que compõem NE CHANGE RIEN.
Detendo-nos, em traços muito gerais, no esqueleto do filme seguimos basicamente quatro tipos de situações: quatro momentos de concertos; seis de ensaios, de canções em estúdio e de canto lírico; três de representações no palco parisiense da cena de La Périchole; dois momentos de camarim ou sala de ensaios, o espaço mais claro e os planos mais brancos de NE CHANGE RIEN, uma sala fechada de espaço ampliado por um espelho na parede do fundo onde, da primeira vez, vemos um solitário compasso de espera de Jeanne Balibar e da segunda, sequência final, assistimos a um ensaio da banda e de Balibar, “Rose”, penúltima canção do filme. A esta “tipologia” parece escapar um único plano, o “plano Ozu” de NE CHANGE RIEN (perspectiva ao nível do chão num enquadramento onde cabe o tecto da sala em causa, um plano de conjunto de duas velhas senhoras a fumar), um plano de ligação que é uma plácida imagem de pausa, japonesa: um dos concertos de Balibar filmados por Costa teve lugar em Tóquio e este é o plano que o assinala, levando-nos, aliás, a supor, pela posição aproximada da câmara, que as cenas “no camarim branco” são igualmente japonesas.
“Filme de câmara”, como o filme de Straub, Huillet, como o filme de Vanda, NE CHANGE RIEN é um filme de espaços interiores. São muito raros os momentos em que o exterior é perceptível: uma janela envidraçada filmada com uma luz muito branca, que dá para fora do estúdio onde Balibar canta emoldurada por ela, à esquerda, e pela tela à frente da qual está sentada ao microfone; ou os reflexos da circulação do trânsito na cidade no vidro da moldura do quadro pregado numa das paredes da sala de espera japonesa. São intromissões subtis do exterior nos espaços interiores onde tudo decorre. De resto, NE CHANGE RIEN é um filme de subtilezas, também no que diz respeito à representação, entendendo por ela o que se passa no interior de cada plano, recorrentemente fixos – as mudanças de escala nos planos de conjunto, as alterações introduzidas pela iluminação, nestes e nos grandes planos, na mise en scène implicada na própria posição de câmara, no jogo de luz e sombras ou na duração de algumas imagens, por exemplo. Muitos dos seus planos gerais são filmados “como no teatro”, do ponto de vista frontal da quarta parede ausente, no caso dos de ensaios e concertos. Curiosamente, quando filma “no teatro” – as sequências de La Périchole de NE CHANGE RIEN, tomadas da mesma perspectiva nos seus vários momentos –, a câmara escolhe desviar-se da boca de cena para assentar numa posição lateral, dirigida à porta de entrada em cena. Nesses planos (algumas vezes vazios, espaço para os diálogos e canções fora de campo), as personagens nunca se dirigem à câmara, nem nunca a câmara se dirige a elas. No teatro, os planos de Costa são verdadeiramente planos de discretos bastidores.
O excesso encontra-se na proximidade da câmara dos muito grandes planos do rosto de Jeanne Balibar, vários, em interpelações de vária ordem. Dois dos mais brutais estão nas duas sequências contíguas que mais atentam no esforço do trabalho dela. Uma passa-se no estúdio de Rodolphe, contracampo de alguns campos de Jeanne, começa trauteada (por Rodolphe) no plano que ela ocupa já em andamento, tem uma duração que acompanha a concentração dela e acaba justamente nesse grande plano recortado no escuro cuja última imagem de distensão fixa os músculos do seu pescoço. A segunda, sem corte, toda ela um muito grande plano, acompanha a contida exasperação de Jeanne numa lição de canto de La Périchole em que está a ser dirigida fora de campo pelo professor, cujas indicações nitidamente a desesperam. Nitidamente, porque, tão próximo, o grande plano “trai” a sua contenção, devassando o que vai crescendo de cansaço em nervosismo e irritação.
Momentos de trabalho não são momentos descontraídos, mas muitos (quase todos?) os planos de NE CHANGE RIEN fecham em descontracção, introduzindo no filme essa nota, que também é dele, do directo na banalidade quotidiana das pequenas coisas. Os apontamentos em decrescendo das conversas sobre frigoríficos, garrafas de vinho e copos de branco pelos quais algumas cenas terminam traduzem a experiência do grupo de amigos concentrados naquilo que estão a fazer, de que o flutuante segmento dedicado a “Ton Diable” é por excelência imagem. Ou seja, a irrepreensibilidade da forma guarda o espaço do impulso da vida. NE CHANGE RIEN não é uma via nova no cinema de Pedro Costa, mas um novo passo de uma via de princípios firmados, aos quais esta faceta de árdua persistência e cumplicidades partilhadas nada tem de alheio. Questões de acordo, diria Godard, que usou antes de Costa a expressão aqui em parte chamada ao título, “Pour que Tout Soit Différent”. É todo um programa.
Maria João Madeira, Catálogo Festival Temps d’Images
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