
- Bom dia, Seu Rafael.
- Tá queeente hoje.
Você pode puxar qualquer assunto com o Seu Rafael, qualquer um, e ele sempre vai falar do tempo, carregando nas vogais da palavra que deseja enfatizar.
- Tem horas, Seu Rafael?
- Hoje de manhã tava muito friiio.
Do seu posto de trabalho, Seu Rafael sabe tudo o que acontece na rua. Mas as pessoas não sabem nada sobre ele.
- O nome dele é Rafael de quê, hein?
- Não sei, mas parece que ele não sabe também. Ouvi dizer que perdeu a memória e veio parar aqui.
- Coitado.
- Pobrezinho mesmo.
No dia em que fui morar na França, já no carro a caminho do aeroporto, eu o vi com seu então inseparável chapéu de vaqueiro, acessório que sempre contribuiu para aumentar as lendas em torno dele.
- De onde ele é?
- A vizinha do fim da rua outro dia falou que ele era um pistoleiro em Goiás. Por isso usa o chapéu até hoje.
- Deus me guarde!
A verdade é que o Seu Rafael tornou-se um ponto de referência não apenas na minha vida, mas na de todo mundo que mora naquela rua. Um ponto de referência na vida de alguém é algo com uma carga sentimental única. Pode ser um amigo de longa data, um fato inesquecível, um lugar singelo ou uma cueca furada da infância guardada no fundo de uma gaveta. Bom, talvez nem todo mundo guarde uma cueca da infância no fundo da gaveta. E o Seu Rafael, com sua rotina e conversa monotemática, tornou-se uma certeza de que as coisas não mudam em Brasília. Pelo menos não mudam na rua dos meus pais. E isso sempre nos tranqüilizou.
Durante sete anos, habituei-me a vê-lo quase diariamente, sentado, chapéu na cabeça, comentando sobre o tempo. Por isso o susto quando cheguei de férias no Brasil.
- Quem é aquele ali sentado?
- Não reconhece o Seu Rafael?
- De boné?
- Modernizou o visual.
Fiquei preocupado. Ele era a prova viva de que o Dia da Marmota existe. De que alguém pode viver a mesma rotina indefinidamente. Se ele, o último bastião da imutabilidade, havia mudado, o mundo estava perdido. A partir dali, tudo começaria a se transformar. O judiciário brasileiro tornaria-se sério. O dinheiro dos impostos passaria a ser revertido em nosso benefício. E até o Botafogo perigaria ser campeão. Uma situação completamente fora do controle.
Olhei ressabiado. Ele me viu. Acenei de longe, timido. Ele correspondeu, como sempre. Fui chegando perto, devagarzinho. Ele sentado, quase estático. “O boné não combina, está totalmente deslocado”, pensei. Parei a alguns metros dele e ensaiei uma meia-volta, interrompida por uma palavra vinda de sua direção.
- Bão?
- Tudo bem, Seu Rafael?
- Hoje tá queeente, hein?
Voltei pra casa tranqüilo. Liguei a TV, que noticiava mais uma derrota do Botafogo. Tudo, enfim, continuava como antes. Graças ao Seu Rafael.