Georges Leroux*
Os antigos reflectiram muito sobre as profundas alianças entre a poesia e a música; admiraram nelas uma cumplicidade tão natural que lhes parecia brotarem ambas da mesma fonte.
Todas as culturas possuem o seu instrumento e também todas querem dar a esse instrumento a palavra do poema. Ninguém sabe como é que esta história começou e pode contar-se muita coisa acerca da preponderância dos tambores e das flautas no aparecimento das primeiras músicas, no acompanhamento das primeiras narrativas.
À roda de fogueiras, os contadores de histórias dão lugar ao canto e, como acontece na Ilíada, a música invade o poema. Antiga é a arte que alia a voz e o instrumento, mas nenhuma parece ter tido maior proximidade com o poema como a guitarra, quiçá devido à sua simplicidade. A cítara indiana e grega, o alaúde árabe partilham essa espécie de parentesco campestre com a rapsódia dos contadores de histórias. Vemo-los nas pinturas dos vasos, a cantar os feitos dos heróis e há sempre um instrumento por perto.
Todas as cidades do Mediterrâneo conhecem a guitarra e todas lhe seguiram a caminhada, atravessando o lamento dos trovadores e o flamenco cigano. Àquele que observa esta história é imperativo dizer que a guitarra não gosta nada de estar só, porque ela, então, fecha-se, chama o poeta e gosta de se lhe confiar. Desde os primeiros alaúdes aos belos instrumentos modernos, ela solicitou sempre o canto e sempre consigo o levou.
Em todas as tradições onde este canto se desenvolveu como canto de um povo, a guitarra se imiscuiu como a voz solitária daquele que traz consigo o canto. Ele é, como o diz o poema de Carlos Carranca, o próprio sentimento que faz existir este canto popular, e é ao procurar ouvi-lo nas vielas de todas as cidades da Itália, da Espanha e de Portugal que melhor podemos palpar aquilo que faz brotar tal sentimento. Este canto não teria em si mesmo nenhuma directriz particular, se não encontrasse na guitarra uma aliada tão próxima que acabou por se tornar a companheira indispensável de tudo o que exprime a alma popular. Quando, em contrapartida, a melodia surgiu, fica a saber-se que a tradição que a traz é tão antiga como o instrumento e tem a mesma voz. É por essa razão, sem dúvida, que o poema do fado está tão intimamente ligado à guitarra, porque o canto que o constitui não conheceu, e não conhece ainda, uma existência em que ela não lhe esteja associada. O lamento, o apelo, a invocação e, inclusive, até a reivindicação política – uma vez que o fado, sabemo-lo sobejamente desde José Afonso, pode ser isso também – fundiram-se no instrumento, a ponto de se tornarem indissociáveis – e é esta alma popular que Carlos Carranca retoma nos seus poemas.
Não somente nas palavras e nas músicas dos grandes guitarristas que ele evoca – como Carlos Paredes, o maior de todos – mas também e profundamente na língua de todos aqueles para quem o fado é emoção da vida, expressão da existência. Quando escreve que o fado é o sentimento, ele quer, sem dúvida, dizer que o fado exprime a emoção, mas diz algo mais: o fado, nesta fusão da palavra e do instrumento, é a própria experiência desse sentimento, dessa vida exposta, posta a nu na mais estreita viela de Portugal. Exprime o fado a própria vivência num mundo que apela ao amor. Com efeito, há no âmago da experiência da música popular, um pedido, um apelo, que toda a tradição do fado manteve, tanto a de Coimbra como a de Lisboa. Nos seus poemas, Carlos Carranca exprime esse apelo, confia-o àquilo que na guitarra é reivindicação do indivíduo a quem este sentimento arrasta e faz existir.
Gosto desta ideia de, conduzindo-o ao seu limite social e político, o sentimento do fado ser arte redentora e fraternal, como voz do povo que encontra a sua plena soberania neste momento da História de Portugal, trazido pelos fadistas de todos os tempos. Redentora, esta arte foi-o da maneira mais profunda, porque salvou do desespero um povo desamparado e submetido à tirania: a mais simples guitarra, o mais despojado dos poemas podiam manter no “sentimento” da vida todos aqueles que então duvidavam da sua alma e da sua capacidade de continuar. Existir no fado, como Luiz Goes nos dá o testemunho cada vez mais vivo, o mais inquietante, quer isto dizer aceitar de confiar à música esse apelo, esse pedido. Mas esse poder de salvação, é preciso notar, num país tão católico como Portugal, nunca foi buscar a religião patrimonial, nunca a incluiu no repertório dos seus símbolos: o fado desenvolveu o seu espaço poético: o de uma solidão com que cada um se pode identificar. A guitarra é a pessoa que canta, e ela canta nessa solidão melancólica que a reconduz não a uma esperança religiosa, mas a uma fraternidade sempre inscrita já no mais profundo tecido da sociedade. Ninguém pode ouvir Amália Rodrigues sem sentir esse laço fundamental com uma esperança que é a de todos. Essa a razão que me faz apreciar, na poética de Carranca, esse apelo à música, na sua força de fraternidade, nessa reclamação do laço fraternal. Os fadistas compartilham com os buzuquistas gregos esta solidariedade no apelo, mesmo se não experimentam nunca essa alegria desenvolta. Poder-se-ia compará-los politicamente, em particular o rebetiko, que é, como o fado, um canto rebelde e, por vezes, desesperado, mas isso seria para nos apercebermos de que o fado, no seu quase exclusivo recurso à guitarra, consagrou a solidão do instrumento como solidão do apelo: neste músico sozinho, sentado na sua cadeira ou no seu banco expõe-se, de facto, aquele que não somente acompanha o canto, mas com ele se identifica como músico solitário. Por comparação, o tampo do buzuque representa a sociedade, enquanto que, no fado, esse efeito de conjunto não existe: há, de preferência, o apelo à fraternidade e, na melancolia à qual se costuma associar o fado, é primeiro preciso compreender essa solidão de que a guitarra é o exemplo. Isso Carranca o diz melhor que ninguém, e quiçá de modo especial nessa relação da guitarra com o corpo da mulher amada.
Como é que esta solidão pode ser, simultaneamente, uma arte poética do sentimento de existir e uma ânsia política de fraternidade, expõe-o Carlos Carranca numa poética paradoxal. «O povo é português, escreve, e a guitarra teima em tocar-lhe o coração.» É esse o elo de um coração de partilha que todas as sociedades evocam como coração fraternal: todos estão convidados a reconhecerem-se nesse instrumento solitário que os representa; todos podem encontrar aí o seu próprio apelo; mas, fazendo-o, todos sabem também que, nesse gesto, deixam a sua solidão e encontram toda a história e toda a tradição que conduziu o povo até ele. Este é o paradoxo de uma identidade melancólica, mantida na solidão do instrumento. Em todos os seus poemas, o povo surge como sujeito do fado, como sujeito do poema, como portador desse tema popular que junta e reúne no canto todos aqueles que a angústia do tempo isola. Em toda a cidade, em todas as suas praças, esse elo é esperado, esse sentimento está exposto como o próprio sentimento de uma história que se prolonga e vem do fundo dos tempos. Todas as músicas populares têm em comum essa força da origem, essa densidade do acolhimento num canto que é levado pelo tempo, mas são, sem dúvida, o fado e a sua guitarra a arte que mais profundamente lhe ilustra essa riqueza.
O mistério da guitarra está aí; ela dirige-se àquele que sofre no tempo, mas ela apresenta-lhe o exemplo da salvação possível. É política a poesia de Carranca? Não hesitaria a afirmá-lo, na condição de manter tudo aquilo que nela associe o povo à história desse sentimento profundo da existência, a esse apelo que nem sempre é reivindicação de soberania. Todavia, a liberdade volta sempre, e sempre exige e reclama, e sempre a salvação evocada pelo poeta ultrapassa essa cura dos males da alma no sentido do destino do povo, da sua felicidade.
Uma simples guitarra pode tudo isso e Carranca mostra que o poema pode carregar todo o registo desse sentimento, pode exprimir toda a reivindicação humana de ternura e de justiça, todo o pedido de amor e de paz. Era necessário que ele fosse o grande poeta que é para que a voz do fado surgisse com tal verdade, para que nós o ouvíssemos no cerne da emoção do seu lugar fraternal.
* Professor de Filosofia da Universidade de Montreal, especializado em Filosofia Antiga, é considerado um dos maiores helenistas do Quebeque.
Tradução de José d’ Encarnação – Professor Catedrático da Universidade de Coimbra.