COIMBRA DE ANTÓNIO NOBREagasalhada entre Choupais."
A. Nobre
No dia 15 de Outubro, apeou-se do comboio do Porto um jovem poeta. Vinha das bandas de Leça:
"Era a distância, o 'além', que me impressionava
Tinha o mistério do sól-pôr, duma esperança.
Mas, mal cheguei (que espanto! eu era uma criança)
Tudo rolou no solol A 'Tasca das Camelas'
Para mirn era um sonho, o céu cheio de estrelas:
Nossa Senhora a dar de cear aos estudantes
Por 6 e 51 Mas ah! foi-se a Virgem dantes
Tia Camela... só ficou a camelice."(1)
E no Penedo da Saudade, lugar tão propício as divagações poéticas, cantado pela tradição, que António Nobre vai morar. Ai, numa casa com janelas rasgadas para Nascente, o poeta sentia-se no seu mundo. Só que os primeiros contactos com a Universidade serão os das primeiras decepções na medieva cidade de D. Dinis.
Em carta datada do dia 18 de Outubro de 1888, revela o Poeta a certa altura ao seu amigo Agostinho de Castro: - "Na terça-feira, abriu—se a Universidade: Na Sala dos Capelos eu vi e ouvi pessoas e coisas, que nem te conto para não maçar o teu espírito. O tom de Idade Média que existe em tudo isto é tal que eu por momentos chego a crer que o Dante escreveu o Inferno o mês passado." E ainda na mesma carta: - "Ontem, fui à abertura das aulas e, como sabes, é o dia grande dos estúpidos da Universidade: â Porta Férrea aglomera¬va-se uma multidão ansiosa por canelas de novato. Ligeiramente trému¬lo, talvez pálido, mas sorrindo, eu passei sob um pálio colorido de pastas, de todo incólume, ouvindo apenas uns zumbidos dessas 'abelhas-discípulas' e debaixo destas palavras altas: 'E poetai E poeta! E reformador!'" (2)
S evidente que o ambiente emocional que envolveu a abertura das aulas, não lhe agradou, antes pelo contrario, o achou ridículo. Ele mesmo se considerava no "vale de sebentas".
Na mesma carta diz que o Penedo da Saudade é "o único sítio onde podia viver".
Guilherme de Castilho, explica-nos correctamente o porquê do desencanto dos primeiros dias de Anto em Coimbra: - "O curso de Direito, que o poeta escolhe sem uma vocação decidida também concorre para lhe infundir na alma o desalento e confusão com o espectro de cinco anos de vida tormentosa, corn os seus lentes crassos, a aridez dos assuntos, o rigor das praxes académicas, a subserviência obrigatória, a delação dos esbirros, a deslealdade dos 'ursos' e tudo o mais que intimamente o magoava." (3)
Noutra carta a Augusto de Castro, datada de 5 de Outubro de 1888, lê-se a certa altura: - "A Universidade, - é aqui voz geral -resolveu tornar o Direito menos acessível às cavalgaduras nacionais, como até agora; de modo que levantou a bitola e, hoje, não é só o primeiro ano, - são todos contingentes, difíceis e trabalhosos." Ainda mais adiante fala-nos da impressão que ele causou no meio intelectual coimbrão: - "Cheguei e, sem fazer por isso, agitei as aguas doces em que eles iam boiando, iam boiando e, agora é que é vê-los: furiosos, verdadeiramente furiosos." (4)
Numa carta a um amigo, datada do mês de Novembro, segundo nos revela Guilherme de Castilho, António Nobre confessa-se desespe¬rado por ser esperado por troupes, e diz ser um triste sem esperanças nem alegria.
Em Coimbra sente-se longe de tudo, dos amigos, da família -Leça que recorda com profunda saudade.
Mas algo vai mudar. No princípio do ano de 1889, relaciona-se com alguns colegas, sendo de entre eles, Alberto de Oliveira
o eleito.
O mesmo Alberto de Oliveira confessou um dia: - "Nele me seduzia e fascinava o poeta, de que o seu aspecto físico era o espelho fidelíssimo. Já à volta do seu nome se formavam lendas e anedotas. As modificações engraçadas que introduzira na capa e na batina, o gorro clássico, desusado por arcaico, e que na sua cabeça anelada se reabilitara instantaneamente, parecendo atrevida carapuça de campino ou de poveiro, os seus livros de aula, encaderna¬dos a 'rouge et noire', como o título estranho de Stendhal - tudo me atraía para ele." (5)
Outros eram os amigos de Anto: - António Homem de Melo (Toy), atleta sempre pronto para o que desse e viesse. Agostinho de Campos, Mário Duarte - o Mário de Anadia, Francisco de Sousa, e António Fogaça, a quem o poeta chamou "o único espírito claro e guiador que poderia alumiar a (sua) estrada de bacharel", falecido no mês de Novembro de 1888.
E a “Boémia Nova - revista de literatura e ciência”, fundada por um grupo de amigos que se .reunia com mesa certa no Lusita¬no que vira a dar algum alento ao poeta , servindo ainda mais para espalhar a lenda ã sua volta e de que Alberto de Oliveira era o tecedor .
Surge então o primeiro número da Boémia Nova que vai ter como redactores, para além do poeta de 'Só, Alberto de Oliveira, Emídio Garcia, Pinto da Rocha, Xavier de Carvalho, Abel Botelho, Osório de Castro, António de Melo, Agostinho de Campos, Francisco Bastos e Sanches da Gama.
Dizia a Boémia Nova ser "um jornal de ideias modernas, de orientação moderna, de moderníssima escola".
Acerca desta Revista diz-nos Guilherme de Castilho: -"O grupo extravagante da 'Boémia' há muito se tinha feito, notar na Academia pelas atitudes de indiferença ou hostilidade para com a restante massa dos estudantes, pelo espírito de círculo fechado aos não “iniciados”, -pelas bizarrias "mais ou menos notórias dos seus componentes." (6)
Publicado o primeiro número, surge uma nova folha literária - "Insub-missos" - onde Eugénio de Castro, ainda muito moço, se estreia "de lança em riste" contra os da Boémia.
Os insultos de um lado e de outro vão multiplicar-se ao ponto de, em plena Rua Larga, se assistir a cenas de pugilato, onde o Toy (António de Melo) e Francisco Bastos, dos “Insubmissos”, se esmurrarem por insultos vindos nas respectivas revistas.
Mas, em breve, a polémica termina com a publicação do "último número da “Boémia Nova”, a 12 de Abril do mesmo ano. (7)
Chega também ao fim o ano lectivo e António Nobre tem que prestar contas perante os lentes de um ano de Universidade, o primeiro; e o castigo não se fez esperar. “Chumbado”.
No segundo ano, António Nobre vai morar para o Beco da Carqueja, número 8, fazendo esquina com a Rua do Correio, deixando, por isso, o Penedo da Saudade de ser "o único sítio onde, em Coimbra, poderia viver”.
Mas, este segundo ano de Coimbra, vai vivê-lo de outra _forma; sentindo-se penetrar pela cidade, na sua alma ficará para sempre.
Excerto de uma carta a Alberto de Oliveira:
Segunda—feira 8, Beco da Carqueja
30-6-1890 Coimbra
Grato, muito grato às raparigas de Coimbra: à “fogueira” que houve na minha rua, ao “Ai olé” emocionante delas, ecoando sob a noite, devo eu ter cismado os meus melhores versos. Trabalhava a ouvi-las, enlevado â janela, aberta sobre a Rua de S, Pedro, para mais facilmente os ais delas me chegarem ao coração." (...) (8)
Esta noite de fogueiras de S. João deve ter de tal forma impressionado Anto, que este, em '1890, escreve essas belíssimas quadras ao gosto- popular a que deu o título - "Para as raparigas de Coimbra" e que termina desta forma bem sugestiva:
Ó fogueiras, Ó cantigas Saudades! Recordações! Bailai, bailai, raparigas! Batei, batei, corações!
Mais um “acto” a porta e Anto vai ter que, novamente, prestar provas. Ninguém o desconhecia, aqueles que o haviam de julgar também não e a Coimbra "claustral, bacharelática, funesta/(N)uma cidade assim, cheirando essa indecente,/ por toda a parte, desde a Alta a Baixa, a lente" despediu-o do quadro dos seus eleitos.
O Pedro “Penedo da Rocha Calhau”, mais uma vez, reprovara o poeta e este não lhe perdoou, imortalizando—o em alguns versos da sua "Carta a Manuel":
(...)
Não quero, no entanto, meu Manuel, que te vás embora Sem ver aquele amor que a minha alma adora:
Olha, acolá. Gigante, altivo como um cedro, Olhando para mim com ternura: E o meu Pedro Penedo!
O Pedro da minh'alma meu Amigo!
Que feliz sou, bom velho, em estudar contigo!
Mal diria eu em pequenito, quando a ama Para eu -me calar, vinha fazer-me susto à cama, Por ti chamava: Pedro! e eu sossegava logo, Que eras tu o “Papão”! A ama, de olhos em fogo, Imitava-te o andar, que não era bem de homem... Eu tinha birras? - Aí vem o Lobisomem! Dizia ela. - Bate à porta! Truz! Truz! Truz! E tu entravas, Pedro , eu via! Horror! Jesus! Meu velho Pedro! Meu fantasma de criança! Quero-te bem, tanto que tenho na lembrança, Quando morreres, Pedro! (o Pedro nunca morre) Hei-de pegar em ti, encher de álcool a Torre
Com todo o meu esmero e... zás! meter-te dentro! Pedro! assim ficas enfrascado, ao alto e ao centro, E eternamente , para espanto dos vindoiros : No rótulo porei: 'Ali-Bed, Rei dos Moiros'. (9)
E a Torre d`Anto?
António Nobre não viveu naquela Torre das medievas muralhas
de Coimbra?
Antes de deixar o País, com destino a França, à cidade de Paris, onde conseguirá o que Coimbra lhe proibiu - o curso superi¬or - António Nobre viveu uma breve semana de sonho, no início do mês de Outubro, instalando-se na Torre.
Excerto da Carta a Alberto de Oliveira escrita na Torre de ANTO :
Sábado,4-X-1890 Torre de Anto, a Sub-Ripas
(...)
"A meia-noite recolhi â Torre de Anto, onde dormi sozinho, 'helas', sem medo à sombra de Maria Teles, julgando ouvir pela noite adiante as suas pancadinhas de mão-morta, na porta do meu quarto, quando era a velha Joaquina, no andar de cima, -a tossir. Adormeci, entretanto, e acordei no dia seguinte. Mas que surpresa ao despertar: imaginaras o que é a gente abrir o olho, repleto de tanta imagem deste século XIX e deparar encantado com a Idade Média em frente, pelos lados, sobre e sob? Oh, a Torre! Levantei-me entusias¬mado e fui abrir as ogivas talhadas nestas pedras milenares e, ao ver toda Coimbra outonal, essa paisagem religiosa, milagrosa, o Mondego sem agua, os choupos, meus queridos corcundas, sem folhas e vergados pelos anos, pareceu-me que estava num mundo extinto, todo espiritual, onde só um homem vivia, que era o Anto encantado, na sua Torre." (10)
E em carta incompleta, sem destinatário nem data:
(...) "Certamente morro com uma torrite. Tem sido tal a minha adoração por ela, nestes dias, que chego a ter uma verdadeira obsessão, andando a escrever, a lápis por todas as ogivas, por todas as portas, por todos os cantos: “Anto”! “Anto”! “Torre de Anto”1 Roço-me pelas paredes, como para lhes transmitir um pouco de mim; assento-me no chão, lanço-me ao comprido para que todo o meu corpo se infle de Torre, - tal é o meu amor por ela. Nem a Torre de David se lhe pode comparar, nem o torreão, de que eu fui um engenheiro ideal e que, um dia, sonhei edificar na Boa Nova.. Só Lhe conheço um defeito: a vizinhança. Aqui ao lado mora o Príncipe Cambaio. Ali defronte engorda o "Lombo...'" (11)
Pela cidade, a verdadeira, se apaixonara, ainda que o
sas, citadinas.
Anto, poeta da saudade...
(…)
"Contudo, em meio .desta fútil coimbrice,
Que lindas coisas a lendária Coimbra encerra!
Que paisagem lunar que é a mais doce da Terra!
Que extraordinárias e medievas raparigas!
E o rio? e as fontes?" e as fogueiras? e as cantigas?
As cantigas! que encanto! Uma diz-te respeito,
Manuel, é um sonho, é um bei]o, é um amor-perfeito
Onde o luar gelou: “Manuel! tão lindas moças!
Manuel! tão lindas são...”
Que pena que não ouças!
O que, ainda mais, nesta Coimbra de salgueiros
Me vale, são os meus alegres companheiros
De casa. Ao pé deles é sempre meio-dia:
Para isso basta entrar o Mário da Anadia.
.Ate a Morte é branca e a Tristeza vermelha
E riem-se os rasgões desta batina velha!
Conheces o Fernando? a Graça que ele tem!
Dá ainda uns ares de Fr. Gil de Santarém,,,
Pálido e loiro, em si toda uma Holanda canta
Com algum Portugal... E o doce" Misco? Santa
Teresa de Jesus vestida de rapaz...
Porque não vens, Manuel, ungir-te desta Paz?" (12)
Carta a Manuel
NOTAS
(1) António Nobre, Só, Carta a Manuel, 14ã ed., Livraria Tavares Martins, Porto, 1968, pp.61-62.
(2) - António Nobre - Correspondência, Org. int. e notas de Gui¬lherme de Castilho, 2ã ed., I.N.C.M., Lisboa, p. 57.
(3) - Guilherme de Castilho, António Nobre, 2ã ed. rev. e amp., Portugal ia Editora, Lisboa, L968, p. 55.
(4) - Guilherme de Castilho, op. cit., pp. 55-56,
(5) - Ibid., p. 62.
(6) - Guilherme de Castilho, António Nobre, 2â ed. ré v. e ampl
(7) - Mais duas folhas surgiram no mesmo período para contrariar os "valores" da 'Boémia Nova'. Foram elas a 'Boémia Velha' e 'Nem cã nem lá'.
(8) - António Nobre, Correspondência, p. 97.
(9) - António Nobre, Só, 163 ed-, Livraria Tavares Martins, Porto, 1968, pp. 62-54.
(10) - António Nobre, Correspondência, p. 104.
(11) - António Nobre, op. cit., pp. 508-509.
(12) - António Nobre, Só, p. 62,
Carlos Carranca
Redigido no ano de 1987