quarta-feira, 8 de abril de 2020

Quarta-feira, 01 de abril de 2020, 02:43 da madrugada.

857.487 pessoas infectadas pelo coronavírus hoje, com 39 mil mortes em todo o mundo. A China estabilizou em cerca de 81 mil contaminados e os EUA assumiram o topo da pirâmide com 190 mil, ultrapassando a Itália, que continua em curva ascendente, somando 1,6 mil vítimas fatais nas últimas 24 horas.  No Brasil são 5.717 infectadas e 201 óbitos. Em Minas Gerais, província onde nasci, 275 contraíram o vírus e 02 vieram a falecer até o momento. Vivemos uma roleta russa. Há projeções especulando 2 milhões de mortos, 500 mil somente no Brasil.

Já entrei para as estatísticas, apesar de ainda não saber em qual categoria serei classificada. Estarei entre os 20% ilesos? Dentre os 80% contaminados? Ou tombarei nos 2% de corpos que já são carregados em caminhões para serem incinerados longe dos cemitérios das grandes cidades? A pandemia se alastra rápido pelos mais ínfimos cantos da Terra e faz trepidar todos os pulmões.

Acordei com falta de ar. Não há como saber se estou infectada, não há testes disponíveis no Brasil para pessoas com sintomas leves. Poderia procurar o centro de atendimento da minha cidade, mas tenho receio de vir a ser contaminada lá, caso ainda não esteja. Também me assusta a possibilidade de ser internada e morrer intubada em uma sala fria entre desconhecidos, como vi acontecer com a minha mãe há 5 anos atrás, depois de um avc. Prefiro morrer em casa, quentinha, solitária, debaixo do meu cobertor. Mas esta sutil falta de ar, não sei de onde vem... se já é o vírus, a somatização por senti-lo pairando por perto ou mera alergia pela convivência intensa nesses dias com Leminsk e Bukovski, meus gatos.

Retornei de Brasília há oito dias, de avião. Posso ter sido infectada nos aeroportos. Antes, posso ter sido infectada nas ruas, supermercados, padarias ou restaurantes da capital federal. Ou ainda, posso ter sido infectada no meu local de trabalho, no Conselho Nacional de Justiça, em Brasília. Na última quarta feira o ministro Dias Toffoli, presidente do Conselho, se pôs em quarentena. Um dia antes disso, na terça-feira, a equipe de trabalho que integro teve tratativas com ele, quando obtivemos uma importante vitória, a aprovação da Recomendação 62, sobre a situação dos presidiários no contexto da covid-19 - nome técnico dado ao vírus. Contribuí na elaboração do texto, que foi escrito a muitas mãos, com orientação para a libertação de parte significativa das pessoas em situação de encarceramento, visando a redução da catástrofe que certamente irá se abater nas prisões quando o vírus ali se alastrar.  Bastou a quarentena do ministro ter sido anunciada na quarta-feira, para que se decretase o home office de todo o Conselho. No mesmo instante comprei uma passagem para Belo Horizonte. Se tivesse aguardado mais um dia não teria conseguido embarcar, pois o Distrito Federal fechou suas fronteiras na última sexta-feira.

Em Belo Horizonte Charles me aguardava com os gatos, jantar e vinho na mesa. O calor de casa e do meu companheiro me fizeram dormir como há duas semanas já não conseguia. A insônia havia tomado o meu corpo como sintoma frente a trágica realidade que se aproxima.

Desde a minha chegada a Belo Horizonte eu e Charles estamos reclusos em nosso apartamento, com os gatos. Saímos a cada 02 dias por alguns  minutos pela manhã, para uma breve caminhada e banho de sol nas redondezas, quando aproveitamos para irmos a supermercados, farmácias, agência bancaria. O ideal seria permanecermos em casa. Fizemos uma compra de supermercado robusta, com itens não perecíveis que nos permite sobreviver por alguns meses, mas a ausência de frutas e legumes frescos me deixa atordoada. Banana, maracujá,  manga, ovos, cenoura, abóbora, coentro. Alguns amigos já não saem de casa há 10 dias. Eu ainda não consegui. A ausência de sol me causa uma angústia profunda e a falta de caminhada detona dores nos joelhos e lombar. Cada saída à rua nos impõe um ritual que imprimimos há uma semana em nossas vidas. Visto calça e blusa que cubram todo o corpo. Uso um lenço ao redor do pescoço que servirá para proteger meus cabelos e rosto. Levamos um vidro de álcool gel para higienizar as mão ao tocar em qualquer objeto. Mantemos distância de todas as pessoas pelas ruas. Rapidamente se instaurou nos nossos corpos uma tensão ou atenção para manutenção de distância mínima de outros seres, como polos iguais de um ímã a se repelirem. Ao retornar para casa entramos pela porta dos fundos, nos despimos e jogamos as roupas na máquina de lavar, colocamos os  solados dos sapatos numa vasilha com água sanitária e corremos para um banho dos cabelos aos pés, incluindo a lavagem dos óculos. Desinfetamos a casa duas vezes por semana e lavamos as mãos umas trinta vezes por dia. Todos os produtos que entram em casa são desinfetados com água e sabão. Em uma semana tenho sido mais asseada do que em todos os meus 40 anos de vida.

Em Belo Horizonte somente os serviços essenciais continuam abertos mas ainda não se estabeleceu um toque de recolher absoluto. O fluxo de pessoas nas ruas diminuiu consideravelmente, porém há ainda os que, na onda da estupidez do Bolsonaro, insistem em negar e minimizar o tamanho do problema e a necessidade de recolhimento.

Ontem tivemos aprovado pelo Senado a renda mínima para os trabalhadores informais, para que possam se por em quarentena, porém desde então aguardamos o sancionamento pelo presidente. No último sábado eu e três amigas, Dani, Letícia e Mirela, fizemos um encontro virtual regado a vinho, nos embebedamos e trocamos sentimentos e presságios sobre este pesadelo que já impõe dramas de saúde e econômicos em nossas vidas e famílias.

Enquanto escrevo, alguém toca piano no apartamento vizinho, outro insone na madrugada. Já são 04:13h. Através da escrita distensiono um pouco os sentidos e minha falta de ar cessa. Mas se volto a pensar na respiração de novo me falta oxigênio. É preciso respirar sem pensar. É preciso meditar. Tenho feito yoga todos os dias. Talvez a falta de ar cesse. Talvez eu não esteja infectada.





Sábado, 04 de abril de 2020, 15:39 da tarde.

Auto-retratos desta manhã de sábado.












Sábado, 04 de abril de 2020 , 13:23 da tarde.
Aquietar.


Em 03 dias o Brasil dobrou o número de infectados, chegando a mais de 10 mil. Mas há os que digam já passarmos dos 30 mil, considerando a subnotificação.

Há cinco dias não saio de casa. Aos poucos o corpo se acomoda com o confinamento e o sentimento se inverte. Se na primeira semana buscava desculpas para sair, agora adio a necessidade de fazê-lo. A rua se tornou um campo minado e todo o ritual de cuidados para atravessar a linha divisória pode ser em vão. Nenhum movimento além da porta é seguro. É preciso serenidade para permanecer aqui. É preciso parar.

Foi uma semana de superação. Venci os primeiros 14 dias desde a vinda de Brasília. 14 dias. Tempo da manifestação do vírus. Me convenci que a falta de ar não era o vírus. Comecei a tomar antialérgico e adquiri novos hábitos contra a ansiedade. Atividades aeróbicas, florais, chá de camomila. Arrastei o sofá para baixo da janela da sala, por onde o sol invade o apartamento. Esta nova configuração permite a mim e Charles um banho de sol com Buk e Leminsk depois do café da manhã enquanto ouvimos músicas e folheamos algo.

Acabo de escrever este parágrafo e paro para cozinhar, tomar um vinho e ver um pouco de televisão. No jornal se noticia a distribuição de cestas básicas em Salvador e uma multidão se aglomera para tentar salvar alguma. Me situo entre a classe média branca privilegiada, a quem foi concedido o direito de trabalhar em casa e se resguardar do contagio, enquanto uma grande parcela da população, povo preto deste país, em um contexto de ainda mais miséria e escassez, luta para por o básico em sua mesa.

A rotina de home office é cansativa, mas nunca o trabalho fez tanto sentido. Sensação de naufrágio. Enquanto alguns tentam esvaziar o barco com seus pequenos frascos, outros, com poder de estado para distribuir coletes salva-vidas à população, vestem apenas os seus e pensam poder fugir em suas lanchas privativas. Trilhões já foram direcionados aos bancos, enquanto a renda básica aos trabalhadores informais e desempregados ainda depende de regularização. Lutamos para libertar pessoas das masmorras brasileiras enquanto Moro entoa a voz dos que se posicionam contrários a esta concessão. Esta semana foram divulgados os primeiros casos de contágio nas prisões brasileiras e a morte de um agente carcerário. Chegam denúncias de dezenas de presos com os sintomas, sendo amontoados em celas sem as notificações e cuidados médicos necessários. Nesta semana o Ministério da Saúde, juntamente com o Ministério da Justiça instituíram a possibilidade da incineração no contexto da pandemia. Abre-se a possibilidade da queima de corpos nas prisões. Em poucos dias esta bomba irá estourar. O colonialismo pós-moderno atualizado. A necropolítica de braços dados com a pandemia. Ou a pandemia como justificativa para a necropolítica.

Para alguns existe a crença de que seremos melhores depois desta tempestade. Às vezes quero poder acreditar que sim. Mas me situo entre as pessimistas desde o primeiro sinal de que esta pandemia iria se alastrar pelo mundo e cair no nosso colo. Intuo uma jornada longa, de muitas perdas e muita dor, uma sociedade de mais controle e mais exclusão, o vírus como justificativa para o estado total. Não tenho muitas esperanças na humanidade e as vezes enxergo a nós como um tipo similar de vírus, comprometendo a existência de todo o planeta. É preciso repensar o antropocentrismo, repactuar nosso lugar no planeta.

Minhas noites tem sido inconstantes. Passei a dormir melhor, mas as lembranças do inconsciente revelam tensões. Sonhei com minha mãe. Em uma primeira aparição ela me veio apenas pela voz, muito grave.  “Reze uma novena, Fabiana”. Já acordada, não segui a sua orientação. Rompi com sua religião na adolescência e ela inda hoje insiste. Tantas vezes me pregou o apocalipse e a miséria de uma vida sem deus... Tenho guardado o seu terço, mãe. Peguei ele nesses dias como um talismã para estar ao lado da cama, mas minha oração seguirá sendo o silêncio, a meditação. Em um segundo sonho ela me fazia companhia numa casa muito precária e parecia também angustiada.  “Permanecerei com você”, disse.

Recordo-me ainda deste. Eu e Charles morávamos em um arranha-céu e de repente um raio acertou o prédio vizinho, inundando-o de fogo. O calor se alastrava pelo ar e chegava até nós. Charles me tomou pelas mãos e começamos a correr, enquanto eu pensava o que levar, o que salvar.

Última noite. Eu estava no alto de um penhasco amarrada com uma corda nos pés e me lancei enquanto ouvia minha voz, “deixa o dia e se lança na noite”.

Colapso dos corpos.



domingo, 5 de abril de 2020
São 11:20 da manhã, Charles está na rede, os gatos dormem no tapete e eu estou no sofá tomando sol. Ouvimos JJ Cale enquanto me ponho a escrever.

Acabo de receber uma mensagem de Ariane, uma grande amiga, perguntando se não quero adotar mais dois felinos, que pertenciam a Danielle Vassalo. Eu a conhecia de vista, dos movimentos sociais. A Dani suicidou no último final de semana, uma jovem feminista, ativista pelos direitos da população de rua e ocupações urbanas. Este momento será de qualquer maneira fatal para grande parte de nós, se não pela infecção com o vírus, pela perda de pessoas que amamos ou pelas desigualdades que  se acirrarão. Dani não deu conta e é mesmo difícil sustentar a linha tênue de sentido que nos faça querer atravessar tudo como já é e além, o que virá. Aos poucos vão chegando notícias do sofrimento, crises de depressão e surtos de alguns amigos.


Sábado, 8 de abril de 2020

Chegamos a cerca de 80 mil mortos no mundo, 2 mil nas últimas 24 horas somente nos EUA.

Esta última semana indicaram alguns avanços no trabalho, com cerca de 30 mil libertos do sistema prisional, apesar das vozes dissonantes. Mas por outro lado, ontem recebi a notícia que o governo de Minas Gerais irá interromper a política de prevenção social à criminalidade, onde trabalhei por 09 anos, coordenando os programas de alternativas penais, reintegração de egressos do sistema prisional, mediação de conflitos e fica vivo, para jovens em áreas com altos indicadores de criminalidade e violência. Esta política ainda hoje é referencia nacional no campo da segurança pública pela perspectiva de segurança cidadã a partir do acesso a direitos pelas comunidades mais vulneráveis. No contexto da pandemia e crise fiscal, o atual governador, Zema, apresentou um corte no orçamento de 96% desta política, o que significará o seu fim, o desemprego de centenas de trabalhadores e falta de acesso de milhares de pessoas a políticas públicas, principalmente para jovens negros de periferias. Desde ontem estou mobilizada com outros colegas para fazermos alguma pressão política, através de manifestos, abaixo-assinados, interlocução com a mídia, enfim... mas tudo parece irreversível.


Depois de 8 dias sem sair de casa, hoje tivemos que ir ao supermercado. Foi a primeira vez que usei máscara. A orientação mudou. Se antes recomendava-se o uso apenas para pessoas com sintomas ou convívio direto por infectados, agora admite-se que o mais seguro é o uso irrestrito. Me senti desconfortável, sem ar, óculos embaçando, coceiras, difícil permanecer com ela.

Pelas ruas ainda há um movimento alto de gente sem qualquer proteção no rosto. Para reduzir o fluxo de pessoas, o prefeito mandou cercar algumas praças, dentre elas a da Liberdade, que resta inacessível para aqueles que insistiam em manter suas rotinas pequeno-burguesas alienadas.



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