quarta-feira, 24 de novembro de 2010
passagem, com 5 letras
o avião arremete pela primeira vez. enquanto você preenche palavras cruzadas de dentro da nuvem, um executivo tosco imprime vantagens a partir de gazes que deixa vazar por entre os dentes. a noite anterior à viagem a brindou com insônia longa, então desta última poltrona que não reclina e dispersa pelo barulho das bandejas ao fundo, há um imenso cansaço de se despedaçar: deixem-na viver para repousar. turbulência no peito. é você quem sacode as asas desse pequeno avião? as pessoas se apavoram. desculpem-na: promete ser menos intensa no próximo trecho. uma mensagem chega enquanto ainda o piloto tenta fixar-se no chão pela segunda vez. arremeter número 2. o seu amigo tem mania de a descobrir no céu. talvez seja o seu celular o causador de tudo ou o ato de pensar em ti, do seu amigo. - você nunca acreditou nisso. Atenção: desliguem os celulares! você será presa e torturada e há de penar no purgatório por isso. responde à msg e desliga o aparelho - a desconexão com os que estão colados à superfície pode melhorar as coisas para aqueles que navegam paralelos à circunferência. responde com a palavra harmonia, 8 letras. deste não lugar. um barulho. você aperta o cinto e olha p'ros lados. há um branco terrível que te devora com suas linguas do lado de fora. você atravessa um espaço descontínuo, se dilui no vazio, diz sim ao despreendimento - um dia irá mais longe ainda. quando pousar, estará em outra dimensão, envolta em seres que não conhece e sem resquício de memória ou compreensão de um si. mas a mensagem do celular te faz sentir em casa. você chega a sentir o amargo do café nos lábios, e um calor acolhedor atravessar todo o seu corpo. como você pensa sobreviver à sua própria ausência? firmeza com 13 letras. longanimidade. a tentativa do terceiro pouso parece adiada. o piloto erra a pista, ela agora está distante - vão pousar numa montanha, ou numa sub-estação lunar até as tempestades abandorarem as minas. você pensa em patentear um aspirador de nuvens. tenta dormir. cochila. "minha filha, como consegue dormir com tudo isso à sua volta?", pergunta uma senhora apavorada - do seu olho é possível subtrair o pavor estrondoso da morte, quoeficiente de divisão de seres. você ouve liga sigur ros, com ele a passagem parece calma. o seio metálico que a acolhe luta bravamente com as águas que como rajadas tentam furar a minúscula janela que detém seu olhar. se as máscaras caírem não saberá usá-las, nunca se concentrou nas explicações dos seres de júpiter à frente, sempre soube que numa queda as máscaras só serviriam para a tornar mais deplorável. concentra-se nas imensas massas de ar, elas são mais acolhedoras, de qualquer jeito, do que aqueles que contigo concluem a uniformidade dessa mosca voadora. você tenta se concentrar na inconsciência, fecha os olhos, aumenta o volume do fone. alergia nasal com 6 letras. reles, ordinários, com 3. afinal o pouso foi consentido. solo não eleito. o território é outro, mas você confirma: continua no planeta marte. há tempo de um dedo de prosa com Arthur Dent e Ford Prefect? uma reunião a aguarda há 100 kilômetros de ano-luz dali. avante!
viver é muito muito perigoso.
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
romance telúrico primordial ou apocalíptico alegórico
(narrativa já por vezes percorrida)
um quarto de hotel. a leitora toma banho pra batizar o espaço, caminha do banheiro à janela, espia e fecha as cortinas, abre e fecha a porta do guarda roupa vazio, futuca as bebidas do frigobar, tira livros e netbook da mochila, desarruma a cama e se joga dentro, pronta para o vazio que a espera, há um tempo para se desterritorializar infinitamente menor que a menor das unidades de medida do tempo. percorreu a distância da terra à lua cinco bilhões de vezes para fazer de casa este ponto: cançasso da vasta existência infinita de todas as galáxias. fechada ao corredor do mundo, dentro de si, não sabe o que a aguarda - terror como se toda a verdade sobre o universo houvesse reservado esta ínfima gota de segundo para revelar-se. isso pode significar certa fobia a quartos de hotéis ou o medo da morte, mas nunca teve aptidão para análises técnico-subjetivas de si - consegue expulsar os seus desvarios antes de sucumbir de todo à loucura. (consegue?). alguns quartos de hotéis são banais, como para provar que sua tese primeira, do território neutro e transcendente é falsa. alguns guardam delírios filosóficos. os que parecem insanos lhe reserva horas de leitura e lucidez. outros, moradia compartilhada de dionísio. os mais ousados acordam pessoas mortas. os nostálgicos retumbam amores antigos. templo frio de uma agnóstica viajante. silêncio. mantra. o hotel é o chaveiro de memórias e sensações. você está dentro dele, agora. e o que vê diante de si?
I. é possível substituir hotel por qualquer lugar, o hotel como significado ou materialização da idéia-espaço.
II. aqui se estuda território-e-corpo.
espaço-vácuo
corpo-pensamento
romance da experiência densa
Quando dobra a rua, um odor ocre paira, de onde é possível extrair um certo adocicado típico das madeiras. O homem inspira mais demoradamente o ar, tentando reconhecer a essência antes de abrir os olhos, e confirma a presença de um baú todo talhado à mão, exposto às primeiras gotas de uma tempestade anunciada. O cheiro, ele o reconhece sempre quando da evaporação das primeiras gotas do suor de uma árvore seca queimada de sol. Ele detém a caminhada e mais uma vez se permite o sentido, prolongando o êxtase. Segue adiante, mas recua o passo, procurando o dono do objeto esquecido. É uma rua residencial, deserta. Ele se posiciona perto do móvel, esperando que alguém venha cobrar propriedade. O céu ameaça com uma rajada de trovão, o personagem abre o guarda chuva preto e tenta proteger, mais ao bem encontrado do que ao próprio corpo. Ninguém aparece. Ele se senta no baú, já defendendo a descoberta. Se permanecer por um tempo razoável poderá requerer o direito à posse, segundo as leis canônicas. Um cachorro vira lata o encara de dentro de uma casa, com o focinho espremido no portão de ferro. Seu ódio aos cachorros tornou-se compaixão desde que ouvira as sábias ponderações de Deleuse sobre tais bichos domáveis. Talvez tenha permanecido assim uns vinte minutos, recebendo as poças de chuva dos raros carros que por ali fizeram percurso em velocidade, depois se convence dos seus direitos e tenta levantar a caixa para conduzi-la consigo, porém o peso acusa existir algo dentro, trancado por um cadeado. Tenta levantá-lo mais uma vez, com alguma dificuldade suspende o retângulo e o dispõe sobre os ombros com a testemunha latindo do outro lado. A chuva já molhou todo o corpo e ele tenta avançar mais apressadamente, a pensão não está longe, basta caminhar até o fim da rua, seguir a primeira à direita por dois quarteirões e atravessar a praça. Com alguma dificuldade ele consegue conduzir o objeto pelo fino corredor repleto de portas aonde uma mulher desconhecida, certamente hóspede nova, fuma encostada no caixonete do único acesso aberto, encarando-o quando a transpõe. O homem a cumprimenta com um silencioso aceno de pescoço, ela responde com um sussurro, ele abaixa a cabeça e continua, causando um barulho estrondoso ao deixar o conteúdo das mãos cair. Ele acaba de conduzir o baú ao quardo arrastando-o e imediatamente após deixá-lo num canto, sai à procura de algo para abrir o cadeado, de maneira a não ferir o bem mais precioso - o sândalo bordado. A moça desconhecida o detém, pede uma informação, é nova na cidade. Ele não resiste e a conduz ao Hospital Geral. A pensão sempre guarda familiares de doentes devido à proximidade com a região hospitalar e ele sempre se rende às histórias que ouve, talvez por ser sozinho nesse mundo. Ela precisa visitar o noivo que sofreu uma cirurgia complicada nessa mesma tarde. Ambos tentam se respeitar debaixo do guarda-chuva estreito, porque ela não possui um, mas é possivel sentir um do outro a pele eriçada do frio. O baú pode esperar.
domingo, 7 de novembro de 2010
stonehenge (ou em volta de pedras e prosas)
(Stonehenge, do inglês arcaico "stan", pedra, e "hencg", eixo,
monumento megalítico da Idade do Bronze)
foto capturada na net
(churrasqueira de fundo-de-quintal,
ao redor da qual uma prosa se consolida e desfaz
em ritual eterno de um baco já cansado)
foto produzida há anos-luz por um tcheus inspirado
hilorojo é o pseudônimo de uma artista que conheci vendendo suas pequenas criações inscritas em cartões de metrô em buenos aires. de toda a multiplicidade de objetos na fera de la antiguedad, aquela menina pequenina, com sua gravuras de tinta guache me atraiu, me reconheci nela, apesar de sentir que ela estava já numa forma de vivência e expressão
iluminada - talvez eu ainda percorra algumas galaxias para alcançar seus traços silenciosos e cheios de expressividade, verdades que me custam centenas de letras pra traduzir. escolhi um.
ela moveu um pouco os lábios, quase pensei que iria sorrir, mas a linha apenas esboçou uma meia lua minguante. abaixou os olhos e confessou: es un autorretrato. es por eso que elegí, respondi. fiquei ali um pouco com ela, sabia que jamais a teria ao meu lado de novo nessa nossa travessia, queria trazê-la comigo e desde sua vinda para essas bandas de cá, ela compõe minha estante de livro, misturada com um pouco de mim. ela abaixo de fantasmas que a rodeiam, como me sinto com os meus. sua obra é linda. visite-a, clique aqui
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pra fotografar a menina-que-habita-minha-estante, fui até a minha fotográfica e acabei por descobrir algumas imagens feitas por tcheus, ali esquecidas. remete a uns pés de encontros, despedidas, nostalgias.
coincidência também porque geo passou por aqui, descortinando horizontes. compartilhamos a exposição de ronaldo fraga, no palácio das artes, sobre o são francisco, clique aqui.
"só navega em suas verdadeiras águas
quem tiver no sonho
um barco de plenitudes
e na proa o céu do imaginário"
bethânia declamando as águas, inscrições diversas que me levaram de novo em pão de açucar, penedo... memória, saudade, quase dor.
no mais, dias de água. o metrô agora tem, dia-sim dia-não, meu corpo dentro. corto meia cidade, desço na estação central e o chafariz está ligado, água nascida do chão molha água despencada do céu. o que é meta-linguagem? a praça sete, sábado à noite, quase-deserta. o antigo prédio, vigésimo primeiro andar, me encara do alto, eu o saúdo com um aceno de cabeça, ele me acusa abandono, envergonho-me de tê-lo esquecido e sigo a afonso pena, debaixo da sombrinha que guarda a chuva de mim. vermelho, só uso guarda-chuvas vermelhos - stendhal, promessa pra deuses líquidos. e botas marrons: meus pés restam secos enquanto minhas mãos úmidas brincam com gotas que escorrem do tafetá de nylon. mês de aniversário. 33 em 22. idade de cristo [espero viver mais um pouco] mas e se eu for feita pra não? leio um livro presenteado. se um viajante numa noite de inverno, de calvino. invejinha de (não) escrever (bem) assim. não resisti: compulsividade - entrei num sebo e comprei dois volumes de simone de beauvoir. mas tudo bem, já li (quase) tudo de literatura que ainda resta na minha minúscula biblioteca. estou em ciclo de leituras. como livros mais vezes ao dia do que pães e grãos. o cheiro de livro velho exala um aroma que reconheço, moradia das menores partículas que soma(tiza)m um antes. sigur rós frui no frio de um quase verão sudeste. o ano já se cansa de existir...
(fotos do são francisco feitas por mim, em viagem com c.)
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