domingo, 31 de dezembro de 2023

O VELHO ANO


Este salto sem rede, no vazio incógnito de um novo ano.

Chamem-lhe futuro.

Sophia Mello Breyner Andresen sempre se admirou por as pessoas celebrarem a passagem do ano, dizia ela que o ano está sempre a passar.

Há quem nunca deseje bom ano a ninguém, dizem que dá azar. E há a velha sabedoria que nos diz que os anos só são novos enquanto os novos somos nós.


Se viram um amável filme da norte-americana Nora Ephron, com Meg Ryan e Billy Cristal, «When Harry Meet Sally», que, parvamente, em português se chamou, Um Amor Inevitável, o tal filme em que a Meg Ryan simula um orgasmo em pleno snack e, finda a performance, a cliente da mesa ao lado, que esperava para fazer o seu pedido, volta-se para o empregado e diz: «quero o mesmo que aquela senhora», e certamente lembrar-se-ão que quase no final do filme, quando, numa festa de fim de ano, Harry reencontra Sally, começam a ouvir-se os acordes de Auld Lang Syne, e Henry diz que nunca entendeu o significado da canção pois diz que os velhos conhecidos devem ser esquecidos ou que se os esquecemos devemos recordá-los mas como recordar se já os esquecemos? Sally não tem resposta mas, sorrindo, acaba por lhe dizer: “seja o que for é uma canção sobre velhas amizades”.


Chegamos a bom porto: velhas amizades, lembrar os que já não estão connosco, com os que estão, os que ainda fazem do Natal a festa dos amigos, celebrar a amizade, sempre, enquanto não chega a hora do adeus.

É isso!


Ao mesmo tempo lembrar a velha tia, que repetia sempre os mesmos votos de Ano Novo: «não se pede grande coisa: trabalho e saúde...» e sabendo que o meu cachimbo está apagado, o meu copo vazio, ouvir aquela canção celta:

 

«Que a estrada se abra à tua frente,
Que o vento sopre levemente nas tuas costas,
Que o sol brilhe morno e suave na tua face,
Que a chuva caia de mansinho nos teus campos.


Ou aqueles versos de um poema do Jorge de Sena:


 «Já tudo escureceu;

contudo ainda resta algum dia
suspenso de onde veio a noite que chegou primeiro.

É de sempre este resto de dia
e acompanha-a pelo céu em busca das estrelas frágeis.

A noite, uma vez,
compreenderá que ele vem do mesmo lado que ela.» 


ANO BOM

Na noite de Ano Bom

iam os rapazes solteiros

para a casa de Santa Susana

pequeno e vetusto pardieiro

junto à capela de São Gregório Magno

aí se guardavam alfaias religiosas

lanternas de procissões andores bandeiras círios

foguetes sobrados da última festa

levavam vinho e pão

iscas de bacalhau algum chouriço sacado à chaminé

fritavam filhós e velhozes

bebiam púcaros de café de cevada

eram pobres e crédulos às vezes brigões

tratavam-se por alcunhas

discutiam Azevedo Travaços Peyroteo

Félix Rogério Bem Davis ou Teixeira/gasogénio

à meia-noite lançavam os foguetes da passagem

 

Levi Coutinho em Natal… Natais

sábado, 30 de dezembro de 2023

OLHAR AS CAPAS


Para a História da Cultura em Portugal

Volume 2

António José Saraiva

Capa de António Domingues

Publicações Europa-América, Lisboa, Novembro 1961

Oh! Caro Amigo, para quê? E que sei eu disso? Estou a ver-te daqui, com o teu sólido arcaboiço de Vítor Hugo, como Rodin o fixou na pedra, em movimento. Marcha! Avança! No fundo, a tradição está no futuro, é o sentido que damos à nossa actividade, é aquilo que queremos. Avança na Tua velhice robusta. A tradição é o vento que a tua passagem levantar.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

OLHAR AS CAPAS


Cartas do Meu Moínho

Alphonse Daudet

Tradução: Hernâni Barbosa

Colrcção Lusitânia nº 64

Livraria Chardron, Porto s/d

É de lá que vos escrevo, com a porta escancarada ao bom sol.

Um lindo pinheiral, todo banhado de fulgor, desdobra-se diante de mim até ao sopé da encosta. Na linha do horizonte recortam-se as cristas finas dos Alpilles…

Nem o mais leve rumor… Apenas, de longe em longe, o som dum pífaro, o piar de um maçarico real por entre as alfazemas, um guizalhar de mulas que passam na estrada… Toda essa bela paisagem provençal só vive pela luz.

E como quereis agora que eu tenha saudades da vossa Paris, ruidosa e negra? Estou tão bem no meu moinho! É na verdade aquele cantinho que eu procurava – um cantinho perfumado e quente , a mil léguas dos jornais, das velhas séges, do nevoeiro… E quantas belas coisas à minha volta!

GLOSA PARA JOSÉ GOMES FERREIRA

O mundo, dizias tu,

não é só dos pássaros

e do vento, o mundo

é também nosso. Foi

por isso, poeta,

que encheste

uma gaveta de nuvens com a memória

das palavras e acendeste

no chão

dos dias

comuns

algumas estrelas

com tua mão.

 

Albano Martins


quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

OUTROS NATAIS


Esta manhã, ao passar pela loja de plantas e flores da minha rua, deparou-se-me de chofre, dependurado no vidro da porta, um cartaz salpicado de neve escandinava com esta legenda, escrita numa língua imprevista (que afinal era norueguês): INGEN JUL UDEN BLOMESTER. (Nenhum Natal sem flores.)

E então aconteceu esta coisa extraordinária: sem o mínimo sentimento de espanto, como se ainda vivesse numa cidade norueguesa e não se tivessem esfumado quarenta anos de paixões e de morte, dei um salto no tempo e li o letreiro com a naturalidade de quem continuava a passear com lentidão medidativa pelas velhas ruas da Noruega.
Durante alguns segundos esses quarenta anos sumiram-se num poço de sombras e cosi o presente ao passado – com a sensação estranha de me terem ficado para trás vários dias por viver que, de vez em quando, vêm aquecer-me (ou gelar-me) os passos.

José Gomes Ferreira em Dias Comuns

Legenda: pintura de Diego Rivera

OLHAR AS CAPAS


A Conquista da Felicidade

Bertrand Russell

Tradução: José António Machado

Guimarães Editores, Lisboa, Janeiro de 1957

Este livro não se destina aos eruditos nem às pessoas que encaram um problema prático simplesmente como motivo de conversação. Nas páginas que se seguem, não se encontra uma filosofia profunda nem uma vasta erudição. O meu único desejo foi reunir algumas observações inspiradas pelo julgo ser o bom-senso. Todod o mérito que reivindico para as fórmulas que ofereço ao leitor reside no facto de serem conformadas pela minha própria experiência e observação e de terem aumentado a minha felicidade sempre que agi de acordo com elas. Por isso ouso esperar que alguns dos muitos homens e mulheres que sofrem sem se conformar com o seu sofrimento, nelas encontrem o diagnóstico do seu mal e descubram os meios de lhe dar remédio. Foi na convicção de que muitas pessoas que são infelizes poderiam tornar-se felizes graças a um esforço bem dirigido, que escrevi este livro.

LONDRES REENCONTRADA

O passeio do outro lado da rua

Gente
Que não conhecerei nunca

Ninguém mais nesta mesa
De um café milenário –
Raras vezes
Terei estado menos só

A nave espacial chamada terra
Singra comigo tarde adiante

Tudo volve milenário
As pedras da rua
O cimento gasto do passeio
As recordações

Alberto de Lacerda de O Pagem Formidável dos Indícios em Resumo: a poesia em 2010.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

POSTAIS SEM SELO


 

Os filósofos afirmam que isto há-de ser sempre assim: o mais nobre de entre eles, Jesus, cujo nascimento estamos exactamente celebrando, ameaçou-nos, numa palavra imortal, que “teríamos sempre pobres entre nós”. Tem-se procurado com revoluções sucessivas fazer falhar esta sinistra profecia – mas as revoluções passam e os pobres ficam.

Eça de Queiroz em Cartas de Inglaterra

Legenda: fotografia Shorpy

OUTROS NATAIS


 Lembro-me do nosso primeiro Natal juntos. O nosso único Natal juntos. (E quando os presentes deixam de chegar e as luzes da árvore Natal se apagam, compreendemos que estamos velhos.)

Londres no Inverno. A primeira neve. Lizzie com um casaco azul-escuro de tecido forte e neve nos cabelos. A pista de gelo na Somerset-House. A árvore em Trafalgar Sqaure.
Jantámos fora na véspera de Natal, num “pub” modesto, mas onde a comida era boa. Bebemos vinho, a marca mais cara que eu podia pagar. Depois fomos a um concerto de Natal. Regressámos a casa perto da meia-noite e demos os presentes um ao outro: para ela uns brincos de prata compridos, para mim um cachecol azul.
No final do ano fomos dançar e depois bebemos champagne em Trafalgar Sqaure. O único ano que começámos juntos. Estava a nevar.

Ana Teresa Pereira em O Fim de Lizzie

OS DIAS VISTOS DO CAFÉ DO MONTE

«Abro o computador pela manhã – como acho que já informei o estimável leitor, vivo num concelho tão, mas tão deprimido, que quem quiser comprar um jornal ou uma revista (livros, igual, naturalmente) terá de percorrer por sua conta e risco cerca de 40 quilómetros seja qual for o ponto cardeal da sua preferência – e deparo-me logo com três notícias reconfortantes.

Uma delas, e nem a propósito, informava que a linha de apoio psicológico do SNS 24 recebe, por mês, cerca de 6500 telefonemas de pessoas a pedir ajuda. Acrescentava ainda lá pelo meio que, segundo a Ordem dos Psicólogos, Portugal contabiliza uma média de três suicídios diários (e contra isto não há imigração, bem ou mal paga, que nos valha).

Outra, esta de carácter internacional, dava-nos conhecimento de que só entre os passados domingo e segunda-feira tinham sido resgatados, junto à costa italiana, 1300 migrantes, trânsfugas do continente africano.

Por fim, uma lapalissada ainda assim não menos inquietante: a de que a guerra na Ucrânia pode representar uma grande oportunidade para as empresas que se dedicam à tecnologia armamentista, como se não nos bastasse o exemplo das depressões de Oppenheimer (não vi o filme: aqui no concelho, para ir a uma sala de cinema teríamos de nos deslocar mais de 70 quilómetros para sudeste, não fosse o caso de não haver transportes).»

Ana Cristina Leonardo, de uma crónica no Público

OLHAR AS CAPAS


O Existencialismo e a Sabedoria das Nações

Simone de Beauvoir

Tradução: Manuel de Lima e Bruno da Ponte

Colecção: Clave nº 2

Editorial Estampa, Lisboa, Setembro de 1967

Mas, tanto como o ódio e como a vingança, o amor, a acção implicam sempre um revés; isso não nos deve impedir de amar, de agir, pois não temos somente que verificar a nossa condição, mas no próprio da nossa ambiguidade, escolhê-la. Sabemos presentemente que devemos renunciar a encarar a vingança como a reconquista serena de uma ordem razoável e justa. E, no entanto, devemos ainda querer o castigo dos autênticos criminosos. Pois castigar é reconhecer o homem livre tanto no mal como no bem, é distinguir o mal do bem do uso que o homem faz da sua liberdade, é querer o bem.

METAMORFOSES DA PALAVRA

A palavra nasceu:

nos lábios cintila.

 

Carícia ou aroma,

mal pousa nos dedos.

 

De ramo em ramo voa,

na luz se derrama.

 

A morte não existe:

tudo é canto ou chama.

Eugénio de Andrade de Até Amanhã em Poesia

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

POSTAIS SEM SELO


Quero cantar como a rola, como a rola ninguém canta.

De uma canção do folclore alentejano.

NOTÍCIAS DO CIRCO

Quem inventou o Natal não foi Jesus. Nem Constantino, o imperador que decidiu transformar os rituais pagãos do renascimento na Natividade cristã. Nem sequer Dickens, apesar do talento e génio do escritor ter contribuído para mudar uma festa de família numa festa de solidariedade, paz e amor. Só até ao dia seguinte, claro. Não, quem inventou o natal actual, o natal das comezainas e dos excessos, foram os donos dos supermercados, os vendedores de comida e os vendedores de sais de frutos.

José Júdice no Diário de Notícias de hoje.

OLHAR AS CAPAS


 A Noite de Natal

Raul Brandão

Introdução e Notas: José Carlos Seabra Pereira

Capa: Armando Alves

Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, Dezembro de 1981

Damião: Obrigado… Só me atrai a escultura dos santos. Escolho os que… tenham tido uma vida… uma vida… angustiada. Na vida só é… só é grande, só é bela a história dos que sofrem…

João: Na vida todos sofrem, creio eu.

Soromenho: Conforme. Há os que passam uma vida regalada. Gozam-lhe.

Damião: Não, não! Nada disso é a verdadeira vida… De tudo isso nada… nada fica. Destes, sim! (apontando um santo) Vejo este, que foi imperador. Um guerreiro! Tudo deixou, não apara ir viver num… como se diz? Num ermo… um egoísta… Foi viver com os pobres, com os desgraçados, a… a salvá-los.

OUTROS NATAIS


«Entre aquilo que Portugal deixou neste país africano, podemos destacar o costume de se comer bacalhau na noite de Natal. E não se pense que é hábito de reduzida elite urbana, nostálgica de tempos coloniais, que alguns estudiosos gostam de impropriamente chamar “crioula”. Para já, a população urbana é metade da de Angola e vai servindo de matriz cada vez mais avassaladora da cultura angolana. E o costume está absolutamente espalhado, pelo menos por todas as cidades.»

- Pepetela, escritor angolano.

OS CARTAZES DO ADELINO


  AINDA ANTES DOS «REFUGIADOS»

 É apenas pitoresco ver alguém, algum sítio, qualquer coisa, virar as costas à vida e andar a puxá-la pata trás. Num Café de Coimbra, o Luís Severo, deu com esta senhora do chapéu armado. E, claro, fixou-a no tempo, dando à fotografia a sugestão de um cartaz.

Mais do que pitoresco, é castiço. Vem de um tempo em que já coisa nenhuma o lembra. A mais antiga imagem que temos é a do governo AD, que espelha o chamado «marcelismo». Ora este chapéu da senhora velha ainda é de anos mais passados – é de antes da guerra e da aragem que, a este país, por menos que se queira, trouxeram os «refigiados».

                                                                             A.T. da S.

LENDA

Tristes

águas paradas

dos lagos calmos,

eu trouxe o vento comigo!

Vento contrário,

muda o teu rumo !

(Pela primeira vez

aviso um inimigo ... )

Aves em voo,

voai mais alto,

onde eu não possa chegar!

Despedaço o que não tenho.

Hei-de passar

de caminho

por entre alguns violinos.

- Não sei o tom das rajadas.

Barcos fantasmas,

meus irmãos sem porto:

além do vento

quem vos comanda? ...

 

Marta Cristina Araújo

(Fevereiro 1952)

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

DESERTO DE AFECTOS


 O Natal será sempre o encanto e a ternura da impossibilidade. O sem sentido de alguns presentes, como naquele conto de O’ Henry: ela vendeu o lindo e comprido cabelo para lhe comprar uma corrente para o relógio, de que ele tanto gostava; ele empenhara o relógio para lhe comprar as travessas para o cabelo, de que ela tanto gostava.

Karl Valentim preferia que cortássemos do calendário o Dia De Natal, se com isso conseguíssemos que os restantes 364 dias do ano fossem todos de Natal.Gostaria que o Natal não tivesse o carácter de que se tem revestido nos últimos tempos: um consumismo desenfreado que dele fazem o dia mundial da hipocrisia.

As noites de Natal, aquelas que não mais posso repetir, passava-as em casa do meu pai, a família mais chegada, a comer bacalhau cosido com couves, a beber vinho tinto alentejano, a conversar pela noite fora, rematando-se a festa com carne de porco frita envolta em ovos mexidos, a que se seguiam umas fatias douradas, filhós e uns cálices de licor de ginja que, por Junho, se tinha colocado a marinar numa grande garrafa de vidro, juntamente com açúcar, aguardente branca, um pau de canela. A manhã começava a nascer, saía para regressar onde vivia e gostava do cheiro de Natal que sentia pelas ruas.


Tentamos fazer o mesmo com os filhos, com os netos, tentar a reinvenção dessas noites felizes, mas é mais que certo: nunca se volta aos sítios onde fomos felizes. Falta, essencialmente, esse passe de mágica, que eram as conversas do meu pai, um brilhante contador de histórias.

Há coisa melhor que o Natal?

O Natal é um cantinho bom do ano, um aconchego.
 

domingo, 24 de dezembro de 2023

VELHOS RECORTES


 

O Natal não tem apenas o seu lado brilhante. 

Há um pedaço de rua onde reinam as sombras e a solidão. 

Há uma frase de Maria Judite de Carvalho no seu livro de contos «Tanta Gente, Mariana»: «Todos estamos sozinhos, Mariana. Sozinhos e muita gente à nossa volta, tanta gente Mariana, e ninguém vai fazer nada por nós.»

Está sempre a ouvir que as pessoas se habituam a tudo, só não se habituam à solidão. Uma canção de Brel, deixa-me ser a sombra da tua sombra, a sombra da tua mão, a sombra do teu cão, mas não me deixes.

Um amigo dizia-lhe que antigamente chorava, agora chora pouco e, por isso, a solidão tornava-se mais incompleta. Arrastava-se tentando administrar a sua solidão. São muitos e não imaginamos. A solidão não pára de crescer.

Notícias de desesperos, notícias de suicídios. 

O recorte é do  Diário de Lisboa” de 27 de Dezembro de 1976 e a notícia é proveniente do Porto:

“António Manuel, de 14 anos, no dia de Natal, lançou-se de uma janela do Coliseu do Porto, tendo sido conduzido ao Hospital de Santo António sem fala e com várias fracturas.
O jovem, que é natural do lugar de Idanha, encontra-se numa fase de recuperação, tendo começado já a articular algumas palavras”
O jornalista fechava assim a notícia:
“De acordo com estatísticas mundiais, a quadra do Natal regista sempre uma subida de tentativas de suicídio, que alguns psicólogos identificam com uma maior acuidade em relação à solidão em dias que a maioria das pessoas se reúne para confraternizar.”.

Legenda: fotografia do Museu do Neo-Realismo.

LADAÍNHA DOS PRÓXIMOS NATAIS


 Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira de Cancioneiro de Natal em Obra Poética

OUTROS NATAIS

 


Ava Lavinia Gardner nasceu, em Grabtown, Carolina,  do Norte, na véspera de Natal do ano de 1922.

Um oportuno capricho de Mr. Santa Claus, uma bela prenda de Natal oferecida aos homens, tanto os de boa vontade, como os outros.

Um alguém, não era um qualquer, mas o nome está esquecido, foi-lhe perguntado se tinha animais em casa.

Resposta pronta:

«Um poster de Ava Gardner, o mais belo animal do mundo.»

A fotografia mostra o mais belo animal do mundo, a ser recebido pelo então seu marido Frank Sinatra, em 12 de Setembro de 1952, na chegada a Idlewild vinda de Hollywood a bordo do “Constellation Embaixador” da TWA - Trans World Airlines. Ava Gardner chegava a Nova York para a estreia de As Neves de Kalimanjaro.

 

Legenda: fotografia da Shorpy

sábado, 23 de dezembro de 2023

POSTAIS SEM SELO


Nunca houve Natal sem que, numa qualquer parte do mundo, não houvesse uma guerra. 

Mas a da Ucrânia, e agora a que decorre na Faixa de Gaza, marcam terrivelmente o intuito de desejar aos amigos, a quem quer que seja, um Bom Natal, um Bom Ano Novo.

Mas é este o mundo que enfrentamos e, percorrendo os dias amargos, haverá alguma volta a dar?

Legenda: o quotidiano na Faixa de Gaza.

O NATAL COMO TEMPO DE SOLIDÃO



Em tempo  de Natal volto à Biografia de Manuel António Pina escrita por Álvaro Magalhães: Para Quê Tudo Isto?

 Manuel António Pina nasceu a 18 de Novembro de 1943.

Tempos difíceis. Como escreve Álvaro Maglhães:

«Estávamos então em plena Segunda Guerra Mundial e o governo acabar de instituir o racionamento de produtos essenciais e de lançar um despacho que obrigava à diminuição de salários. As condições de vida dos mais pobres, que já eram deploráveis, degradaram-se bastante, o que geraria marchas de fome e greves de trabalhadores. As próprias filas do racionamento eram focos latentes de revolta.»

 Por isto ou por o que tenha sido, o Natal sempre entristeceu Manuel António Pina. Apenas a construção do presépio o animava. Mas com alguns problemas porque os pais não lhe compravam outros bonecos:  «O Menino jazia deitado num ninho de pintarroxo; a vaca e o burro eram desproporcionados em relação ao tamanho do menino e o Rei Mago preto tinha-se partido noutro Natal e, no seu lugar, estava agora um jogador do Sporting, com bola e tudo!»

Numa crónica datada de 2005 escreveu:

Como a infância o Natal é algo que só podemos ter quando o perdemos. Quando somos crianças, o Natal próximo de mais, e real de mais, para ser verdadeiro. Só a memória (e a memória construímo-la como construímos um presépio: com pedaços) o torna verdade. E só a memória nos permite saber, enfim, algo essencial, que o Menino na manjedoura éramos nós.»

 Mas numa crónica, publicada na Visão de 26 de Novembro de 2002, o Pina deixa escorrer a tal solidão natalícia que lhe acompanhou a vida. Intitula-se a crónica «Provavelmente Natal»: 

  «Há algo de cerimonioso no Natal que irrita e seduz: a iconografia kitsch, a simbologia (no entanto vasta: um deus nascendo, menino, entre os homens e, ao mesmo tempo, um homem nascendo humanamente entre os deuses, um vértice vertiginoso em que, por um momento, divindade e humanidade se tocam) reduzida à extrema literal idade por séculos de púlpito, o comércio dos presentes.

E o melancólico ritual das crónicas natalícias. Em mais de trinta anos de jornais, devo ter escrito, pelo menos, duas dúzias delas. E de todas as vezes me sentei diante da máquina de escrever (agora diante do insondável écran do computador) com a inquieta sensação de ter sido, também eu, apanhado (e como poderia não o ser?) numa amável armadilha.

Rubem Braga repetiu uma vez no Cruzeiro uma crónica que já publicara antes, justificando-se com a desconcertada circunstância de Van Gogh não ter pintado os Girassóis (cito de cor, os exemplos podem ter sido outros) para serem olhados apenas uma vez, nem Beethoven composto a Pastoral para uma única audição. Fosse eu Rubem Braga e, provavelmente, escreveria hoje, de novo, uma crónica já longínqua intitulada «Os dois natais». Assim resta-me a memória.

Porque tudo é memória. Alguém – talvez eu, mas quem? – lembrando-se de mim. A mãe, na cozinha, fazia os fritos e eu punha a mesa. Do candeeiro da sala pendiam fitas douradas e estrelas de papel de lustro e tínhamos colocado raminhos de azevinho nos espelhos do louceiro. No presépio, minuciosamente construído com musgo, serradura, algodão em rama, palhinhas, faltava o rei mago preto, que caíra e se quebrara no ano anterior, e, no seu lugar, avultava insolentemente, por birra do meu irmão mais novo, um jogador do Sporting, com bola e tudo!

Em que lugar o passado permanece imovelmente passado, passando para sempre? Quem, como num sonho, se lembra agora de tudo isto?

O Natal era então tempo de solidão. Uma brevíssima eternidade parava, sem eu saber, a meu lado, muito perto de mim, tão perto que quase podia tocá-la. E, contudo, ocultamente e culpadamente, como se pecasse, eu sentia-me infeliz sem motivo. Às vezes fechava-me no quarto a chorar em silêncio, até que a mãe vinha bater à porta chamando para o jantar. Depois, à meia-noite, abria um a um os coloridos embrulhos dos presentes, pressentindo confusamente que, ao recebê-los, os perdia para sempre. Da mesma forma inconcreta como o Natal e eu próprio nos perdíamos também.

Por alguma grande razão me recordo destas coisas. Ou se recordam elas de mim: a mãe, a sala, a toalha bordada sobre a mesa, o cão ladrando lá fora no quintal. Talvez, quem sabe?, seja preciso arrancar as raízes, «cortar a árvore, fazer uma cruz e levá-la às costas». Talvez seja preciso criar raízes na ausência de tudo. Mas para que?, para que?

Hoje sinto-me como um intruso nesse secreto Natal infantil passado. As minhas palavras perturbam o seu silêncio, o meu olhar cega-o, a minha memória afasta-o irremediavelmente de mim. Dele apenas imagens dispersas ficaram: fitas, estrelas, figurinhas de barro. O resto já não me pertence. Ou (como posso sabê-le?) pertence-me num sítio que já não me pertence. E onde não me é dado, nem às minhas palavras, alcançar.»

MÚSICA PELA MANHÃ


Fechamos as canções de (não) Natal com Love Been Good To Me por Frank Sinatra.

Socorro-me de José Duarte:

José Duarte gostava de Frank Sinatra.

Com a menina, nas noites de baile da Antena 1, só dançava canções do Sinatra, aquele swing, dito único.

Entendia-o como a sua «alienação favorita», chamava-lhe São Sinatra.

Chegou a escrever:

«São raros se é que existem os ouvintes que sabem ouvir e que não gostam de ouvir Sinatra quer homens até mulheres como se justificarão os escassos contras? Que ele era da Mafia – por ser italo-americano não comento eu nasci no Bairro Alto.»

A propósito de Love Been Good to Me, ainda o José Duarte que numa carta que possivelmente Sinatra nunca leu, considerou ser esta canção «uma definitiva, perfeita obra-prima.»

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

OLHAR AS CAPAS


O Enigma da Árvore Enamorada

José Gomes Ferreira

Capa: Vitorino Martins

Moraes Editores, Lisboa, Maio de 1980

Hesitei, com as unhas a ferir a pele das mãos suadas:

- Foi presa, mas interrogada pela P.I.D.E. não contou nada do que sabia. Ou que há muito adivinhava. Nem uma palavra. Continuou agarrada à sua verdade de que a polícia riu, convencida de que se tratava de uma louca.

- Não disse uma palavra? A sério? Na aldeia culpam-na de tudo.

Voz peremptória:

É falso.

Senti que o Urso, por momentos com os olhos turvos, respirou com alegria de sol feliz.

E eu também.

Que bom! Não disse a verdade.

A verdade que às vezes tem um defeito terrível: ser feia.

MÚSICA PELA MANHÃ


 A quarta canção de (não) Natal é Smile, música de Charlie Chplin e letra de John Turner e Geoffrey Parsons, compost,a em 1936, para o filme Tempos Modernos.

O cantor brasileiro Djavan, no seu álbum Malasia, incluiu uma versão de Smile.

Sorri
Quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos, vazios
Sorri
Quando tudo terminar
Quando nada mais restar
Do teu sonho encantador
Sorri
Quando o
sol perder a luz
E sentires uma cruz
Nos teus ombros cansados, doridos
Sorri
Vai mentindo a tua dor
E ao notar que tu sorris
Todo mundo
irá supor
Que és feliz.

Da canção há duas versões de que gosto: a de Tony Bennett e a de Nat King Cole. 

Escolhi a de Nat King Cole, foi a primeira que ouvi e  porque A voz de Nat King Cole é um veludo eterno. É tão macia que apetece embrulharmo-nos nela. Ninguém soube cantar como ele – como se respirasses, sem esforço, sem exibição, como se ciciasse aos nossos ouvidos, disse alguém de que não lembro o nome.

Mas lembro que foi João Gilberto quem disse: ele não é preto, não. É azul.

Um cancro nos pulmões levou-nos, prematuramente, essa voz, esse sussurro.

Tinha 46 anos.

DE CONSOADA A UMA SUA PRIMA

Que vos hei de mandar de Caparica,

de que vós, prima, não façais esgares?

Porque de graças e benções aos pares,

disso, graças a Deus, sois vós bem rica...

 

Mel e açúcar? São cousas de botica.

Coscorões? São piores que folares.

Perus? Não, que são pássaros vulgares.

Porco? Só de o dizer nojo me fica,

 

Mandara-vos o sol, se desta cova

m'o deixaram tomar; mas é fechada

e inda o é mais para mi a rua nova.

 

Pois, se há de ser de nada a consoada,

mandar-vos hei sequer, prima, esta trova,

que o mesmo vem a ser que não ser nada.

 

D, Francisco Manuel de Melo em Natais… Natais

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

OUTROS NATAIS


 Mais sonhos de infância com comboios.

Legenda: imagem Shorpy

OLHAR AS CAPAS


Os Pobres

Raul Brandão

Capa: António D. Abreu

Colecção Clássicos Anagrama nº 13

Publicações Anagrama, Porto s/d

Em todo o caso, se a imortalidade existe, deve ser bem diferente de tuo o que se tem sonhado.

Ser despedaçado, oprimido, calcado, torna quase sempre o homem grande, porque abala e acorda vozes adormecidas.

MÚSICA PELA MANHÃ


 A terceira canção de (não) Natal:  Like Na Angel Passing Through My Room.

 The Abba: há quem os imortalize, há quem os abomine.

Tive a minha fase abbaana, rapidamente desfeita.

Restaram meia dúzia de canções para recordar.

Um dia a mezzo soprano sueca Anne Sofie Von Hotter, surpreendeu gravando, em Agosto de 2006, um disco em que recriou canções dos Abba. Chamou-lhe I Left The Music Speak.

 Em 2001, a meias com Elvis Costello,em For the Stars já batera à porta das canções dos Abba com Like Na Angel Passing Through My Room e logo se notou a diferença.

 Ainda em 2006 iniciou uma série de concertos com I Left The Music Speak.

 Pelos começos de Outubro de 2006 apresentou-se na Gulbenkian e mostrou-nos como é bonito que se deixe a música falar.

ROSAS DE INVERNO


Corolas, que floristes
Ao sol do inverno, avaro,
Tão glácido e tão claro
Por estas manhãs tristes.

Gloriosa floração,
Surdida, por engano,
No agonizar do ano,
Tão fora da estação!

Sorrindo-vos amigas,
Nos ásperos caminhos,
Aos olhos dos velhinhos,
Às almas das mendigas!

Desse Natal de inválidos
Transmito-vos a bênção,
Com que vos recompensam
Os seus sorrisos pálidos.

Camilo Pessanha em Natal…Natais

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

QUANDO SE SABE QUE NÃO HÁ ALÍVIO POSSÍVEL...


 «A cantora e compositora francesa Françoise Hardy escreveu uma carta aberta a Emmanuel Macron, na qual lança um apelo para que a eutanásia seja legalizada em França. Submetida a dezenas de tratamentos de radioterapia nas últimas duas décadas, a artista de 79 anos tem um cancro no sistema linfático e um cancro na faringe. Não é a primeira vez que Hardy se pronuncia sobre a morte medicamente assistida.

“A maioria das pessoas deseja que a eutanásia seja legalizada”, escreve na carta publicada no jornal La Tribune Dimanche, reabrindo a discussão sobre a legalização da morte medicamente assistida naquele país. “Esperamos que permita que os franceses muitos doentes possam pôr fim ao seu sofrimento quando sabem que não há alívio possível”, apela. A voz de “Tous les Garçons et les Filles” dá o exemplo da sua mãe, que sofria da doença de Charcot-Marie-Tooth, uma patologia rara que afecta os nervos motores e os sensitivos, e que não tem cura. “Graças a dois médicos corajosos e compreensivos, ela não teve que testemunhar o fim de uma doença incurável”, escreve.»

Vicente Ribeiro no Público de hoje.

Legenda: Françoise Hardy

OUTROS NATAIS


Uma infância recheada de desejos de um comboio daqueles que aparecem nas salas e garagens dos filmes americanos.   

Legenda: imagem Shorpy

OLHAR AS CAPAS


Contos Outra Vez

Luísa Costa Gomes

Colecção Prestígio nº 1

Associação Portuguesa de Escritores, Lisboa 2001

A primeira coisa que nos impressiona ao escutar os Islandeses é que são verdadeiros mestres do eufemismo e da linguagem fraca. Não dizem «isto hoje está horrorosos!», mas sim «já vi dias com mais sol». Do encontro de dosi homens que estão prestes a entre-esganar-se, afirmam que as «saudações estiveram longe de ser cordiais» e quando se zangam a sério com alguém, o mais que ousam é dizer «não consigo pensar nada de bom sobre ti». Não se pode deixar de admirar um povo que mantem a língua tal como ela era falada no século treze, uma língua ainda por cima complicada e intransigente, repleta de dificuldades gramaticais, grande profusão de acentos, declinações e outras coisas que têm, em outras partes do mundo os dias contados.

FANTASMAS NATALÍCIOS


Passei os dias seguintes completamente desesperado, guerreando com os fantasmas de Dickens, O. Henry e outros mestres do espírito natalício. A própria expressão «contos de Natal» tinha conotações desagradáveis para mim, evocando horrorosas efusões de pieguice e melaço. Mesmo no seu melhor, os contos de Natal não passavam de sonhos de desejos realizados, de contos de fadas para adultos, e diabos me levassem se alguma vez me iria rebaixar a escrever uma coisa dessas. No entanto, como é que alguém podia propor-se escrever um conto de Natal que não fosse sentimental? Era uma contradição nos termos, uma impossibilidade, um quebra-cabeças sem saída. Era a mesma coisa que tentar imaginar um cavalo de corrida sem pernas, ou um pássaro sem asas.

Paul Auster, do Conto de Natal de Auggie Wren, em Smoke.

Legenda: imagem Shorpy

RELACIONADOS

Por uma questão de curiosidade, socorremo-nos da Wikipédia para lembrar os resultados das Eleições Autárquicas de  12 Dezembro de 1982:

«As eleições autárquicas portuguesas de 1982 foram realizadas a 12 de Dezembro de 1982 e foram as terceiras eleições realizadas para o poder local, após a Revolução dos Cravos.

Estas eleições serviram para eleger os membros do poder local de Portugal, que eram compostos por 305 presidentes de Câmaras Municipais, 1913 vereadores, 9897 mandatos para as Assembleias Municipais e cerca de 42000 mandatos para as assembleias de juntas de freguesias.

Quanto aos resultados, o PS foi o partido mais votado, obtendo cerca de 31 % dos votos, um aumento de 4% em relação ás autárquicas de 1979, e conquistando 83 presidentes de Câmaras Municipais, um aumento de 23 comparando com as anteriores eleições.

Importa referir que apesar do PS ter sido a força mais votada, os partidos de centro-direita obtiveram, somando os resultados obtidos pela AD, PSD, CDS e PPM, cerca de 42% dos votos. Este resultado, apesar de tudo, implica uma queda de 7% dos votos e uma perda de 30 presidências de Câmaras Municipais em comparação com as anteriores autárquicas de 1979.

Por fim, de realçar o forte resultado obtido pela APU, liderada pelo PCP, que foi a segunda força mais votada, ultrapassando a barreira de 1 milhão de votos e conquistando cerca de 21% dos votos e 55 presidências de Câmaras.»

PAPÉIS DATADOS


Lá fora aquela chuva miudinha, chata, chuva-de-molhar-tolos.

Pelo país vão acontecendo as eleições para as eleições locais.

Depois de voltas e mais voltas à casa, não encontrei o cartão de eleitor.

Tive que ir à junta de Freguesia pedir um certificado com o número de eleitor.

A meio caminho fez-se luz no espírito.

O cartão de eleitor só pode estar dentro de umas caixas que, neste momento, estão fazer de montanhas e colinas no presépio armado no quarto dos miúdos.

«Glória a Deus nas Alturas e Paz na Terra aos Homens de Boa vontade».

No meio destas insólitas peripécias, dá menos trabalhar ir chatear o funcionário da Junta do que desmanchar o presépio à cata do cartão de eleitor, também não sabendo sequer, em que colina preseperial está a caixa com o cartão de eleito…


Texto datado de 12 de Dezembro de 1982.

MÚSICA PELA MANHÃ

A segunda canção de (não) Natal pertence a Tom Waits.

 Tom Waits é um respeitável rapaz, a long time ago, muito cá de casa.

Uma das vantagens de gostar de Tom Waits é que não o podemos catalogar com facilidade. Há quem o ame, há quem o odeie, alarvando que o homem está sempre bêbado, não diz coisa que se entenda. Tom já há muito esclareceu que ele nunca está bêbado, o piano é que sim.

Com simplicidade, David Shoulberg, disse que ouvi-lo é «como caminhar por uma cidade fantasma, onde tudo é rangedor e arrepiado de que nasce uma estranha sensação de paz».

Esta canção não será verdadeiramente de (não) Natal dado que aparece no filme Smoke de Wayne Wang, a propósito de «Conto de Natal de Augie Wren» escrito por Paul Auster.

Legenda: fotografia de Tom Waits da autori ade Edward Coilver

NOTÍCIAS DO CIRCO

«António Costa foi um mau primeiro-ministro, mas Passos esteve, no mínimo, ao mesmo nível.

PS e PSD, que controlam este país há quase 50 anos, antes de atirarem pedras aos telhados um do outro deviam lembrar-se dos seus próprios telhados de vidro.»

Pedro Tadeu no Diário de Notícias de hoje.

HOSSANA

Junquem de flores o chão do velho mundo;
Vem  o futuro aí!
Desejado por todos os poetas
E profetas
Da vida,
Deixou a sua ermida
E meteu-se a caminho,
Ninguém o viu ainda, mas é belo.
É o futuro...



Ponham pois rosmaninho
Em cada rua,
Em cada porta,
Em cada muro,
E tenham confiança nos milagres 
Desse Messias que renova o tempo.
O passado passou.
O presente agoniza.
Cubram de flores a única verdade
Que se  eterniza!

Miguel Torga em Natal… Natais

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

A MORTE SAIU À RUA NUM DIA ASSIM


 O escultor José Dias Coelho foi assassinado pela PIDE no dia 19 de Dezembro de 1961, na Rua da Creche, junto ao Largo do Calvário. rua que hoje tem o seu nome.

O assassinato está assinalado na canção de José Afonso “A Morte Saiu à Rua”do álbum “Eu Vou Ser Como a Toupeira", gravado em 1972 letra de António Quadros (pintor), música de José Afonso.

Antes de ser assassinado, José Dias Coelho estivera em casa de Mário Castrim que, na altura, morava na Rua Luís de Camões, perto da estação dos carros eléctricos de Santo Amaro. 

No livro Viagens,  o poema Viagem Através de Uma Fatia de Bolo-Rei, Mário Castrim pormenoriza as últimas palavras, os últimos momentos de vida de José Dias Coelho:

Corria o ano de 1961.
Estávamos à porta do Natal.
Eram quase duas horas da manhã

e eu perguntei-lhe

se queria comer alguma coisa.

Disse que sim. Mas que

estava com muita pressa.

 

Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lhe

uma sanduíche de fiambre

um copo de vinho

uma fatia de bolo-rei.

Estava de pé

comia como se fosse a primeira vez

desde a infância.

 

- Há quantos anos

deixa cá ver

há quantos anos é que eu não comia

bolo-rei?

Este é bom, sabe a erva-doce

e a ovos.

(Caíam-lhe migalhas

aparava-as com a outra mão

em concha)

 

- Comes outra fatia, camarada?

 

- Isso não.

Estou atrasado já.

Mas se ma embrulhasses...

 

Através da janela

do quarto às escuras

fico a vê-lo atravessar a Rua da Creche

seguir pela Rua dos Lusíadas.

 

Nenhum de nós sabia

que estava já erguida a pirâmide do silêncio

à espera dele

num breve prazo.

 

Quando talvez o gosto do bolo-rei

mais forte do que nunca

tivesse ainda na boca.

Funcionário clandestino do Partido Comunista, José Dias Coelho seguia pela Rua dos Lusíadas, quando cinco agentes da PIDE, saltaram de um automóvel e alvejaram-no, à queima-toupa, com um tiro no peito, e dispararam outro tiro quando já se encontrava por terra.

Legenda:  A imagem de topo é uma gravura de José Dias Coelho, representando o operário Cândido Martins, assassinado na frente da manifestação do Barreiro contra a burla eleitoral e publicada no “Avante” nº 130 de Novembro de 1961. Para a que seria a sua última gravura, José Dias Coelho escreveu: “De todas as sementes deitadas à terra, é o sangue derramado pelos mártires que faz levantar as mais copiosas searas.»