Em
tempo de Natal volto à Biografia de Manuel António Pina escrita
por Álvaro Magalhães: Para Quê Tudo Isto?
Manuel
António Pina nasceu a 18 de Novembro de 1943.
Tempos
difíceis. Como escreve Álvaro Maglhães:
«Estávamos
então em plena Segunda Guerra Mundial e o governo acabar de instituir o
racionamento de produtos essenciais e de lançar um despacho que obrigava à
diminuição de salários. As condições de vida dos mais pobres, que já eram
deploráveis, degradaram-se bastante, o que geraria marchas de fome e greves de
trabalhadores. As próprias filas do racionamento eram focos latentes de
revolta.»
Por
isto ou por o que tenha sido, o Natal sempre entristeceu Manuel António Pina.
Apenas a construção do presépio o animava. Mas com alguns problemas porque os
pais não lhe compravam outros bonecos: «O Menino jazia deitado num
ninho de pintarroxo; a vaca e o burro eram desproporcionados em relação ao
tamanho do menino e o Rei Mago preto tinha-se partido noutro Natal e, no seu
lugar, estava agora um jogador do Sporting, com bola e tudo!»
Numa
crónica datada de 2005 escreveu:
Como
a infância o Natal é algo que só podemos ter quando o perdemos. Quando somos
crianças, o Natal próximo de mais, e real de mais, para ser verdadeiro. Só a
memória (e a memória construímo-la como construímos um presépio: com pedaços) o
torna verdade. E só a memória nos permite saber, enfim, algo essencial, que o
Menino na manjedoura éramos nós.»
Mas
numa crónica, publicada na Visão de 26 de Novembro de 2002, o Pina
deixa escorrer a tal solidão natalícia que lhe acompanhou a vida. Intitula-se a
crónica «Provavelmente Natal»:
«Há algo de cerimonioso no Natal que irrita e
seduz: a iconografia kitsch, a simbologia (no entanto vasta: um deus
nascendo, menino, entre os homens e, ao mesmo tempo, um homem nascendo
humanamente entre os deuses, um vértice vertiginoso em que, por um momento,
divindade e humanidade se tocam) reduzida à extrema literal idade por séculos
de púlpito, o comércio dos presentes.
E o melancólico ritual das crónicas natalícias. Em
mais de trinta anos de jornais, devo ter escrito, pelo menos, duas dúzias
delas. E de todas as vezes me sentei diante da máquina de escrever (agora
diante do insondável écran do computador) com a inquieta sensação de ter sido,
também eu, apanhado (e como poderia não o ser?) numa amável armadilha.
Rubem Braga repetiu uma vez
no Cruzeiro uma crónica que já publicara antes, justificando-se com a
desconcertada circunstância de Van Gogh não ter pintado os Girassóis (cito
de cor, os exemplos podem ter sido outros) para serem olhados apenas uma vez,
nem Beethoven composto a Pastoral para uma única audição.
Fosse eu Rubem Braga e, provavelmente, escreveria hoje, de novo, uma crónica já
longínqua intitulada «Os dois natais». Assim resta-me a memória.
Porque tudo é memória. Alguém – talvez eu, mas quem? –
lembrando-se de mim. A mãe, na cozinha, fazia os fritos e eu punha a mesa. Do
candeeiro da sala pendiam fitas douradas e estrelas de papel de lustro e
tínhamos colocado raminhos de azevinho nos espelhos do louceiro. No presépio,
minuciosamente construído com musgo, serradura, algodão em rama, palhinhas,
faltava o rei mago preto, que caíra e se quebrara no ano anterior, e, no seu
lugar, avultava insolentemente, por birra do meu irmão mais novo, um jogador do
Sporting, com bola e tudo!
Em que lugar o passado permanece imovelmente passado,
passando para sempre? Quem, como num sonho, se lembra agora de tudo isto?
O Natal era então tempo de solidão. Uma brevíssima
eternidade parava, sem eu saber, a meu lado, muito perto de mim, tão perto que
quase podia tocá-la. E, contudo, ocultamente e culpadamente, como se pecasse,
eu sentia-me infeliz sem motivo. Às vezes fechava-me no quarto a chorar em
silêncio, até que a mãe vinha bater à porta chamando para o jantar. Depois, à
meia-noite, abria um a um os coloridos embrulhos dos presentes, pressentindo
confusamente que, ao recebê-los, os perdia para sempre. Da mesma forma
inconcreta como o Natal e eu próprio nos perdíamos também.
Por alguma grande razão me recordo destas coisas. Ou
se recordam elas de mim: a mãe, a sala, a toalha bordada sobre a mesa, o cão
ladrando lá fora no quintal. Talvez, quem sabe?, seja preciso arrancar as
raízes, «cortar a árvore, fazer uma cruz e levá-la às costas». Talvez seja
preciso criar raízes na ausência de tudo. Mas para que?, para que?
Hoje sinto-me como um intruso nesse secreto Natal
infantil passado. As minhas palavras perturbam o seu silêncio, o meu olhar
cega-o, a minha memória afasta-o irremediavelmente de mim. Dele apenas imagens
dispersas ficaram: fitas, estrelas, figurinhas de barro. O resto já não me
pertence. Ou (como posso sabê-le?) pertence-me num sítio que já não me
pertence. E onde não me é dado, nem às minhas palavras, alcançar.»