Este espaço,
intitulado Jornal Poético: Diversos Versos, Inversos e Reversos, foi criado, porque as poesias, os poemas, as rimas,
os cordéis, prosa e verso não podem ficar restritos a um sarau ou a uma sala;
devem estar ao nosso alcance sempre.
Com a leitura podemos, encontrar e descobrir mundos que
existem dentro de nós mesmos.
É por isso que
convidamos você, nesse comecinho de
setembro, mês das flores, das cores e dos aromas, mês em que temos início a
Primavera, a embarcar com a gente nesse
que é um dos nossos poemas preferidos de Cecília
Meireles, lindo poema, que encanta e emociona, que escolhemos para desejar uma Primavera repleta de
flores e amores!
Primavera
Cecília
Meireles
A Primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome,
nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do Sol
vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais
que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a
primavera que chega.
Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo
confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a
alegria de nascer, no espírito das flores.
Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os
palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias
tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se
pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.
Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as
amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo
céu o primeiro raio de sol.
Esta é uma Primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas,
— e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma deusa chega, coroada de
flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e
vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.
Mas é certo que a Primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra
maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão
a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo,
desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros
cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada
mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.
Enquanto há esta Primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos
passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que
andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus
sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos;
e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra.
Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do
perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.
Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por
fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade.
Saudemos a Primavera, dona da vida — e efêmera.
Texto extraído do livro "Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1”.
Editora Nova
Fronteira - Rio de Janeiro, 1998, pág. 366.
Beijos poéticos, enormes e abraços literários.