Opinião
Os “lambe-cus”
Eles são a contraparte da vontade de bajulação de personagens “importantes” cujos enormes umbigos – e as lambidelas diárias – os fazem sentir-se muito mais importantes do que realidade.
No Portugal antigo, nos tempos da sociedade rural e do paroquialismo, era a “graxa” que dava “lustro” aos mais poderosos. Mais tarde surgiram os “lambe-botas”; e atualmente, é o tempo dos “lambe-cus”. A espécie não é obviamente um exclusivo do “habitat” lusitano. Mas não tenho dúvidas de que por cá ela germinou, floresceu e hoje multiplica-se a olhos vistos. Isto porque aqui encontra as condições ideais para a sua multiplicação. Os atuais lambe-cus são descendentes dos “lambe-botas”. Não deixa, no entanto, de ser curioso, e aparentemente paradoxal, que os lambe-botas (os pais dos lambe-cus) tenham sido tão combatidos, quase exterminados, com a restauração da democracia, e depois ressurgiram tão vigorosamente. À medida que o regime democrático se foi acomodando às suas rotinas burocráticas e, posteriormente, começou a ser corroído por dentro, eles brotaram das entranhas e estão agora por todo o lado. Digamos que a corrosão da democracia está em correspondência direta com o aumento dos lambe-cus. Porque será que isto ocorre e porque será que o país se tornou um “viveiro” tão fértil para esta espécie?
Na era da escravatura e ao longo do feudalismo a subserviência era uma obrigação. A resignação era intencionalmente fabricada para uso caseiro de soberanos e poderosos. O escravo servia com zelo e dedicação no interior de palácios, fazendas e casas senhoriais, em ambiente mais ou menos despóticos. Nos tempos do salazarismo e do Estado-Novo os “lambe-botas” foram cultivados e cresceram dentro das hostes do regime, nas corporações, no interior das forças repressivas e junto dos grupos dominantes. O aparelho de Estado e a doutrina oficial impunham a obediência geral, pelo que o “lambebotismo” era intrínseco aos bastidores do poder.
Por outro lado, com a chegada da democracia deu-se uma viragem. Houve uma espécie de “PREC” anti-lambebotas. Acresce que nessa fase os cus mais gordos e bem tratados saíram de cena, isto é, ou exilaram-se ou entraram numa espécie de clandestinidade. E isto também porque com a multiplicação do cidadão ativo e ciente dos seus direitos, estas duas subespécies tiveram grande dificuldade em prosperar. O cidadão pleno e emancipado, com a espinha dorsal no sítio, afirmava-se por si próprio e, durante algum tempo, os próprios lideres e dirigentes prescindiram dos lambe-cus e das suas manobras. Esse cenário foi, no entanto, passageiro. Rapidamente se começou a notar a grande resiliência desta camada de gente, que aliás, rapidamente renasceu das cinzas.
Com a entrada na era da tecnocracia (anos oitenta, por aí…), o novo-riquismo apoderou-se das estruturas dirigentes, donde resultou o vazio da política e, em vez dela, cresceu a burocratização e os cargos de decisão reverteram-se nos principais locus de incubação dos novos lambe-cus. Do ponto de vista genético o lambe-cus é despojado de coluna vertebral, ao contrário dos seus antecedentes (os lambe-botas) que ainda tinham algum resquício de coluna, embora torcida e vergada aos seus amos. Na sua versão mais pura, o lambe-cus possui qualidades que lhe permitem detetar à distância onde se encontra o cú mais proeminente e atrativo para ser lambido. Alguns desenvolveram até uma língua bífida, especialmente elástica e hipertrofiada, o que lhes permite lamber vários cús ao mesmo tempo sem que os respetivos donos se apercebam da concorrência. Já quanto ao “caráter” é um atributo que, pelo contrário, se encontra atrofiado ou não existe sequer. O “ego” do verdadeiro lambe-cus só se faz notar quando algum cu poderoso dá sinais de querer ser lambido. É dotado de instintos caninos. Ele projeta-se totalmente na satisfação plena do seu dono.
É verdade que alguns lambe-cus entram por vezes em desgraça, sobretudo quando, dominados por uma pulsão exibicionista denunciam em público os cus que andaram a lamber. Mas o seu habitat natural são as zonas subterrâneas do poder: as grandes corporações e grupos empresariais, os bastidores da política, dos municípios, das universidades, etc. Em todo o lado onde a cultura burocrática cresceu, os séquitos de lambe-cus proliferam e fazem fila. Muitos tiram benefício material e pessoal da sua atividade, podendo até enriquecer, sobretudo depois de terem ajudado os seus patronos a um enriquecimento milhões de vezes superior ao seu. Mas a sua verdadeira recompensa está no próprio ato de lamber. Sem essa prática, constante e repetida, a sua existência não tem qualquer sentido. Eles são a contraparte da vontade de bajulação de personagens “importantes” cujos enormes umbigos – e as lambidelas diárias – os fazem sentir-se muito mais importantes do que realmente são.
Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Na era da escravatura e ao longo do feudalismo a subserviência era uma obrigação. A resignação era intencionalmente fabricada para uso caseiro de soberanos e poderosos. O escravo servia com zelo e dedicação no interior de palácios, fazendas e casas senhoriais, em ambiente mais ou menos despóticos. Nos tempos do salazarismo e do Estado-Novo os “lambe-botas” foram cultivados e cresceram dentro das hostes do regime, nas corporações, no interior das forças repressivas e junto dos grupos dominantes. O aparelho de Estado e a doutrina oficial impunham a obediência geral, pelo que o “lambebotismo” era intrínseco aos bastidores do poder.
Por outro lado, com a chegada da democracia deu-se uma viragem. Houve uma espécie de “PREC” anti-lambebotas. Acresce que nessa fase os cus mais gordos e bem tratados saíram de cena, isto é, ou exilaram-se ou entraram numa espécie de clandestinidade. E isto também porque com a multiplicação do cidadão ativo e ciente dos seus direitos, estas duas subespécies tiveram grande dificuldade em prosperar. O cidadão pleno e emancipado, com a espinha dorsal no sítio, afirmava-se por si próprio e, durante algum tempo, os próprios lideres e dirigentes prescindiram dos lambe-cus e das suas manobras. Esse cenário foi, no entanto, passageiro. Rapidamente se começou a notar a grande resiliência desta camada de gente, que aliás, rapidamente renasceu das cinzas.
Com a entrada na era da tecnocracia (anos oitenta, por aí…), o novo-riquismo apoderou-se das estruturas dirigentes, donde resultou o vazio da política e, em vez dela, cresceu a burocratização e os cargos de decisão reverteram-se nos principais locus de incubação dos novos lambe-cus. Do ponto de vista genético o lambe-cus é despojado de coluna vertebral, ao contrário dos seus antecedentes (os lambe-botas) que ainda tinham algum resquício de coluna, embora torcida e vergada aos seus amos. Na sua versão mais pura, o lambe-cus possui qualidades que lhe permitem detetar à distância onde se encontra o cú mais proeminente e atrativo para ser lambido. Alguns desenvolveram até uma língua bífida, especialmente elástica e hipertrofiada, o que lhes permite lamber vários cús ao mesmo tempo sem que os respetivos donos se apercebam da concorrência. Já quanto ao “caráter” é um atributo que, pelo contrário, se encontra atrofiado ou não existe sequer. O “ego” do verdadeiro lambe-cus só se faz notar quando algum cu poderoso dá sinais de querer ser lambido. É dotado de instintos caninos. Ele projeta-se totalmente na satisfação plena do seu dono.
É verdade que alguns lambe-cus entram por vezes em desgraça, sobretudo quando, dominados por uma pulsão exibicionista denunciam em público os cus que andaram a lamber. Mas o seu habitat natural são as zonas subterrâneas do poder: as grandes corporações e grupos empresariais, os bastidores da política, dos municípios, das universidades, etc. Em todo o lado onde a cultura burocrática cresceu, os séquitos de lambe-cus proliferam e fazem fila. Muitos tiram benefício material e pessoal da sua atividade, podendo até enriquecer, sobretudo depois de terem ajudado os seus patronos a um enriquecimento milhões de vezes superior ao seu. Mas a sua verdadeira recompensa está no próprio ato de lamber. Sem essa prática, constante e repetida, a sua existência não tem qualquer sentido. Eles são a contraparte da vontade de bajulação de personagens “importantes” cujos enormes umbigos – e as lambidelas diárias – os fazem sentir-se muito mais importantes do que realmente são.
Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra