"Estou a ouvir o disco Té Já, de 1977, o segundo da carreira de um Jorge Palma no ardor da juventude e em plena ebulição artística, política e pessoal.
O aniversário de 30 anos dessa sua segunda incursão no vinil é meio emblemático para mim, que só vim a conhecer a obra do Mestre em meados de 2006. E o meu primeiro sentimento, o mais forte e inconformado, foi não ter suas canções comigo há 30 anos! Faz-me falta, de certo modo, o tempo que vivi sem suas letras e músicas por absoluta ignorância da sua existência.
Em 1977 eu era uma universitária que estudava Comunicação, exacerbada e ardorosa defensora dos direitos políticos dos quais nós, brasileiros, tínhamos sido privados duas vezes em pouco tempo: primeiro em 1964, com o golpe militar que nos destituiu do Estado de direito, e depois em 1968, quando os ventos de liberdade foram definitivamente sufocados com o Ato Institucional nº 5, que instaurou entre nós os longos anos de chumbo. Passei, portanto, por todas as fases dessa sofrida derrota da cidadania brasileira, com idades entre 8 e 21 anos. O processo estender-se-ia até 1985, quando finalmente o povo conseguiu eleger um Presidente pelo voto: Tancredo Neves, que infelizmente não conseguiu tomar posse porque faleceu antes disso, vítima de uma traiçoeira diverticulite.
Lembro-me agora disto porque “Té Já” é um disco que ferve com as questões políticas da sua época, lado a lado com os altos e baixos do coração. No Brasil, Chico Buarque lançava no mesmo período canções como “Vai passar” e “Pelas tabelas”, que davam bem o tom do momento brasileiro. O mesmo Chico que acompanhara com alegria o processo de redemocratização de Portugal, e dedicara à Revolução dos Cravos, poucos anos antes, a antológica “Tanto mar”.
Em “Podem falar”, “Eu sei lá”, “Eles já estão fartos” e “A bem da civilização”, Jorge Palma retrata as desilusões da sua geração, entre o sonho da liberdade mal realizado e a angústia do que viria a seguir. Traça um painel pungente do abandono em que se encontravam as pessoas, da desintegração das famílias de fachada, da embriaguez da ambição desmedida e da vontade de reencontrar uma causa pela qual lutar.
Nas duas versões de “Ainda há estrelas no teu olhar”, observa-se um fenômeno recorrente na obra do cantautor: plantar a esperança, a fé no ser humano, a garra para seguir em frente. Há quem discorde, afinal há momentos ácidos e aparentemente descrentes em sua trajetória, mas a tendência mais forte que vejo é mesmo a esperança, o acreditar.
“O amigo das plumas coloridas” é o toque jazzístico que muito bem traduz o virtuosismo e as experimentações de Jorge Palma ao piano, ele que trocou a chance de estar nas salas eruditas pela liberdade de improvisar e fazer a alma variar à vontade pelas notas, pelos sons que ouvia dentro da alma.
E depois – ou antes, ou durante, conforme a ordem em que se ouve ou a prioridade do espírito – vem o amor. O amor com todas as suas faces contundentes, como só Jorge Palma sabe mostrar. Amores sofridos, falidos, malfadados, felizes e bem resolvidos, amor de amigo, de irmão saudoso, amor por um certo bairro da capital... enfim, maneiras de conjugar o verbo amar em música, letra e paixão, sem nunca deixar de ser pessoal, parte envolvida, corpo e sangue de tudo o que canta e diz.
Em “Meio-dia”, Jorge Palma fala do tempo parado e dos desencontros. Nessa canção que sintetiza o disco, escolhida por ele para conter a expressão-título “Té Já”, fala sutilmente da saudade dos irmãos de sangue, que partiram pequenos para o Brasil, do sentido de família e da certeza do reencontro (de novo a esperança!).
É em “Té Já” que “Bairro do Amor”, um dos mais belos hinos que a sua obra já produziu, aparece pela primeira vez em cena com seu ritmo dolente, sua delicadeza poética e musical. A ode ao Bairro Alto sonha com um ideal de felicidade que Jorge adivinha entre as pessoas que circulam naquela noite democrática e partilhada, num espaço sem tempo onde todos se dão naturalmente, sem premeditar o futuro, e são solidários com a dor e a alegria dos outros. Nada mais comovente, simples e sincero do que o célebre refrão:
“Eh pá, deixa-me abrir contigo/desabafar contigo/falar-te da minha solidão...
Ah, é bom sorrir um pouco/descontrair um pouco/eu sei que tu compreendes bem!...”
Em “Há sempre alguém”, Jorge Palma sintetiza o desencontro-com-esperança, o resgate das coisas boas ao final das chuvas e trovoadas comuns aos relacionamentos amorosos. “Obrigação”, a bem-humorada crítica aos casamentos “perfeitos”, e “Meu amor (agora não fiques para aí a dormir)” aparecem em seqüência no alinhamento do disco. Estavam mesmo fadadas a ser tocadas juntas! Também esta dobradinha é um contraponto entre derrota e esperança, a doçura com que Jorge Palma sempre reveste os rompimentos amorosos, as separações, com base no que ficou de bom.
Finalmente, em “Quando a gente lá chegar”, a esperança se traveste num encontro alegre, forte, profundo e nem por isso fadado a durar para sempre. É a sua forma de celebrar a liberdade de amarmos como crianças, sem peso, culpa ou medida.
Musicalmente, “Té Já” é um disco esfuziante, com vozes variadas, profusão de ritmos e uma bem equilibrada alternância entre doçura e arrebatamento. Um disco que eu gostava de ter ouvido quando foi feito, pois os temas que Jorge Palma aí evoca teriam uma ressonância bem maior. O meu olhar é retrospectivo, mas mesmo assim posso sentir em toda a trilha aquela necessidade absoluta de levantar bandeiras, de envolver-se e marcar sua posição no mundo."
“Té Já” mostra que em 1977 já tínhamos um Jorge Palma com as linhas mestras do trabalho definidas, estruturado no formal e no essencial, e com imensa paixão e criatividade a transpirar de tudo. Nesses 30 anos que só pude ver em retrospecto, o artista teve enorme crescimento, mas a velha chama já estava lá, no “Té Já”, a brilhar forte no escuro, como as estrelas que Jorge Palma ainda guarda no olhar, em plena apoteose do seu talento extraordinário."
Artigo de Maurette Brandt