segunda-feira, 26 de julho de 2010

NO CALOR

Estreia em breve a nova seção de U-Carbureto. Intitulada NO CALOR, traz resenhas de textos produzidas no calor da leitura.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Curto-circuito, por Helder Herik


          Foi assim: um dia, ele assistiu a um desenho animado. Nem lembra as falas. Lembra as imagens, que é sempre o que lhe ficou – quando ele pensa alguma coisa, começa a rodar um filme na cabeça. Um filme mudo, cheio de riscos, igual aos de Chaplin. No desenho, uma baleia engolia um barco – era um batel, mas naquele tempo tudo era barco. A tela da TV ficou escura. Sem fala. Ele pensou ter faltado energia. Bobo. Ia se levantar e desligar a TV, porque disseram, a cara feia de zanga, se faltar energia você tire a tomada da geladeira e da TV. Se chegar energia, e elas estiverem ligadas, é capaz de acontecer um curto-circuito, entendeu? Ele balançava a cabeça, mas nunca entendia. Só entenderia as coisas mais tarde. Mais velho. Maior. Curto-circuito. Curto-circuito. Repetia.
         Quando a TV ficou escura, ele teve um estalo: é capaz de acontecer um curto-circuito. Nem sabia o que era um curto-circuito, mas se o disseram pegando nos ombros, então devia ser uma coisa importante. Ficou preocupado – as sobrancelhas arqueadas. Tão rápido chegou a preocupação na cabeça, que ele se achou esperto. Porque era assim: ele nem se preocupava com nada. Se tinha almoçado, tomado banho, feito a lição. Ele sempre não estava nem aí. Tanto fazia o que fosse. A prima já havia constatado isso. Ela pegava dois copos descartáveis e fazia um telefone esticando de um copo ao outro um cordão. Ele, num extremo, colocava o copo no ouvido e ela um copo na boca. O que ela falava ia tremendo pelo cordão e chegava ao outro copo. Mas ele nem ouvia. Mudava de ouvido e era a mesma coisa. Então eles trocavam. Ele dizia, está me ouvindo? Ela, claro que estou, não sou burra. Trocavam de novo. Na vez dele, o som descarrilava da linha, se perdia no caminho. Você é muito desligado pro meu gosto. Levantou no intuito de desligar a TV. Não havia faltado energia? Não era o curto-circuito? Pois então.

         Queria que alguém o visse assim: tomando uma decisão importante. Mas o povo da casa tinha outras ocupações. Lamentou.
         O pobre era tão bobo que nem esperavam dele – aquele juízo de lesma – uma tomada de decisão. Assim: rápida, de quem está no trânsito. Assim: uma jogada improvisada. Sócrates metia o calcanhar na bola e dava o gol a Careca. Improvisava. Zico era melhor. Girava o corpo num drible e lançava a bola. A bola fazendo uma curva, entrando na gaveta. Zico era Zico. Bem que ele podia chamar alguém para que o vissem agindo. Diria, viu que faltou energia, viu o que eu fiz? Mas quando ele pensou isso alguém acendeu um fósforo. O fósforo acendeu uma vela. O interior da baleia iluminava. As costelas a mostra, a língua, as contrações no abdômen. Ele ficou sem entender. Depois foi entendendo devagar – o entendimento na corda bamba. Tinha faltado energia, era isso, tinha faltado energia e na mesma horinha havia chegado. A TV inteirinha, sem nenhum curto-circuito. Então ele tinha feito uma descoberta. Podia faltar a energia que fosse que a TV aguentava. Correu a cozinha. Os olhos bem abertos. A cara de gênio. Abriu a geladeira. Olhou a luz acesa, a fumacinha saindo. Foi então que ele comprovou. Disse pra todo mundo, bem assim, faltou energia, mas já voltou, a TV e a geladeira estão funcionando direitinho, nada de curto-circuito, estão vendo? Disseram, onde é que faltou energia, menino? O rádio aqui, ligado o dia todo.
         Ele baixou a bola e voltou pra sala, à frente da TV. A bola murcha agora. Falavam dele na cozinha. Só se ouvia agora o tchitchitchi. Ele sem entender o acontecido. O desenho continuava: a baleia se contraindo e dentro dela a chama tremendo. Foi então que ele percebeu. Teve outro estalo. Quem disse que ele era bobo? Porque era mesmo assim: se a pessoa disse que, faltando energia, ele tirasse a tomada da TV e da geladeira, era porque só esses dois é que teriam curto-circuito – o riso esticando na cara. Se não disse nada do rádio, era porque o rádio, ora essa, o rádio ele... – A ideia vinha reverberando num cordãozinho de neurônio, mas descarrilou. O rádio, ora essa, o rádio, ele...





Polinização, por Rodrigo Lacerda


        Ele já chegou ansioso, transportado até ali pela excitação, com o barulho de suas asas ecoando pela floresta mediterrânea. Era abril, início da primavera. Fazia muito calor e não havia uma nuvem no horizonte. A abelha, cujos feromônios o zangão deve ter rastreado a quilômetros de distância, o aguardava rente à folhagem rasteira, imóvel entre galhos caídos e fiapos de grama. Ele foi se aproximando por trás, vendo crescer diante de si o dorso arredondado, protuberante, coberto de cerdas macias, no qual o azul do céu parecia refletido. As asas da fêmea, em descanso momentâneo, eram de uma delicadeza absoluta, transparente e irresistível, como um véu sobre seu corpo colorido. Quando o zangão finalmente pousou sobre ela, a abelha, submissa, aceitou sem resistência os movimentos abdominais vigorosos e as estocadas do macho enlouquecido de desejo.
        Levou algum tempo até ele perceber que algo estava errado. Aquela fêmea era... uma planta!?!
Ao se desfazer o encanto, só lhe restava sair voando à procura de outra parceira. Mesmo nessa hora, o zangão não percebeu os dois pequenos cilindros amarelos grudados em suas costas.
*
       Eu larguei o botão do disparador e abri o sorriso largo de quem conseguiu todas as imagens que precisava. Estávamos há apenas dois dias na Sardenha e aquela era nossa primeira incursão nas florestas da ilha. Ainda que por lá as chamadas orquídeas prostitutas cresçam quase como mato, foi muita sorte flagrarmos em tão pouco tempo sua pseudocópula com o zangão. A bióloga responsável pelo trabalho até duvidou:
       “Você tem certeza que pegou tudo?”
       Tirei a máquina do tripé e mostrei para ela. Cada etapa do processo estava lá: a flor da Ophrys, com seu lábio inferior imitando direitinho o formato e as cores de uma abelha vista de costas, o pouso do zangão, o humilhante logro sexual e, por fim, o momento em que as polínias, as duas bolsas amarelas cheias de pólen, se descolaram da planta e grudaram no dorso do pobre macho ludibriado.
       Salomé balançou a cabeça, satisfeita. Nos próximos dois meses, ela ia precisar que eu fosse bom no meu trabalho. E eu, ansioso pela contratação, queria agradar logo de uma vez.
       Começamos a recolher nosso equipamento.
       “A maioria das flores recebe várias espécies de insetos durante a polinização”, Salomé falou, “Mas orquídeas como a Ophrys só atraem um tipo de polinizador. Você acha justo que ela tenha o apelido de orquídea prostituta?”
       Eu não disse nada. Estava na cara que era ela quem tinha alguma conclusão a respeito:
       “Para mim, é machismo. A Ophrys é muito menos promíscua que as outras.”
       “A bióloga aqui é você, eu só tiro as fotos”, respondi, achando que iria agradar.
       Ela me olhou meio torto. Julguei prudente lhe dar razão.
       “Eu concordo. O apelido é injusto. E sobretudo por um detalhe que você não mencionou.”
       “Qual?”
       “A realização efetiva da cópula é, exatamente, a única certeza com as prostitutas.”


       A orquídea Cryptostylis atrai o polinizador emitindo um cheiro semelhante ao feromônio de um tipo de vespa. O zangão dessa espécie, porém, cai no logro sexual até o fim. Ele de fato ejacula na flor, desperdiçando seu esperma. Isso poderia ser considerado o cúmulo do mau comportamento adaptativo, não fosse o fato de as fêmeas poderem reproduzir com ou sem o esperma do macho. Não obstante, chegava a ser maldosa a forma como a Cryptostylis usava o agente polinizador sem dar coisa nenhuma em troca.
      Já as flores noturnas da Angraecum produzem néctar em tubos longuíssimos, de modo a que somente possam alcançá-lo certas mariposas com línguas tão longas quanto. O inseto posiciona a cabeça numa determinada posição diante da flor, e assim, fatalmente, esbarra nas suas anteras, onde ficam as bolsas de pólen, ejetando-as contra si próprio. Viscosas, as polínias grudam em seu corpo, e a mariposa sai por aí, livre, leve e solta, transportando a carga genética da planta. Essa pelo menos teve a recompensa da comida.
      As orquídeas do gênero Dracula, típicas do Equador e adjacências, encantam mosquitos produzindo odores de fungo, carne putrefata, urina de gato e fezes. Outras orquídeas prometem abrigo em suas flores, que se assemelham a tocas para minúsculos animais, e outras ainda imitam zangões em voo, incitando o polinizador a um combate imaginário.
     “Dá um pouco de pena das orquídeas que não usam polinizadores para reproduzir, não dá?”
     “Por quê, Salomé?”
     “São como mulheres destituídas de qualquer poder de atração.”
     “É... ou então incapazes de se entregar.”
     Ela me olhou, pensando em uma resposta.
     “De um jeito ou de outro, são obrigadas pela natureza a se bastar.”
     Estávamos já há um mês viajando juntos quando ouvi isso. Olhei bem para ela, tentando me certificar do que eu estava entendendo. Mas seus olhos escaparam, e o momento passou.
     Haveria outros, talvez. Passaríamos mais quatro semanas fora do Brasil, pagos para mapear as estratégias de polinização das orquídeas em seus habitats naturais. Mais velha que eu, Salomé era extremamente reservada, mas continuava uma mulher interessante, e com ela eu trabalhava em harmonia. Tínhamos paciência nas buscas, gostávamos do isolamento em nossas expedições. Na ilha indonésia Celebes, que fica entre Bornéu e as Molucas, passamos cinco dias superando pacificamente a decepção e o desconforto, até encontrarmos, agarrada num tronco bem alto, a mais perturbadora das orquídeas.
    Quando vi pela primeira vez uma Bulbophyllum echinolabium, julguei estar diante de um mandarim do reino vegetal; um daqueles velhinhos chineses com duas longas barbichas caindo-lhe do queixo. Suas outras pétalas, duas enroladas para cada lado e a última para cima, pareciam, respectivamente, os cabelos presos num rabo de cavalo e o chapéu muito pontudo do mandatário chinês. No meio da flor estava seu rosto, pequeno e rosado.
     Mas Salomé soube me fazer enxergar as coisas de outro modo. Primeiro, recomendou que eu fechasse os olhos e realmente percebesse o cheiro forte, indefinível, com o qual a flor convocava os polinizadores. Subitamente, sem maior esforço, ele ficou muito nítido, mesmo para mim.
     “Agora preste atenção no labelo que sai da flor, a pequena haste cor de pele, ou vermelho claro, entre as duas pétalas inferiores. Não parece uma cartilagem?”
     Sim, parecia. E Salomé soube exatamente quando a imagem se formou dentro de mim. Depois acrescentou:
    “O labelo fica preso apenas por um pontinho. A menor brisa é suficiente para acariciá-lo, fazendo-o balançar. Viu?”
     Eu vi. E você, se fosse um inseto vendo aquilo, ficaria em ponto de bala, garanto. Pude sentir exatamente como seria. Era impossível não sucumbir ao magnetismo da flor, não querer tocá-la. Mas, na estratégia reprodutiva da Echinolabium, explicou Salomé, ainda faltava o elemento realmente impróprio para menores.
      “Agora repare na coluna, o centro da flor, como ela ganha um vermelho forte, cor de morango maduro.”
      Eu identifiquei a região apontada, e meu espanto cresceu ainda mais. Ela se abria em dois lábios intimamente frisados, de bordas quase roxas de tão intensas, desenhando-se ao redor de um ponto pequeno, mais escuro. Qualquer polinizador que se preze saberia exatamente onde penetrar.
       Algumas orquídeas não produzem néctar, mas também não são egoístas o suficiente para não dar nada em troca da polinização. No lugar do alimento, oferecem substâncias perfumadas, outro tipo de recompensa importante. As abelhas, machos e fêmeas, recolhem a cera de onde vem esse perfume e usam-na para produzir os feromônios com que atraem seus parceiros. Assim como nós, humanos, também recorremos ao perfume das flores em nosso processo de sedução.
       Por isso estávamos numa floresta no Panamá, no sexto dia da última expedição, e no total há 52 dias longe de casa. Chovia, fazia calor e éramos impiedosamente atacados por uma variedade de mosquitos que faria a glória de um catálogo entomológico. Três pessoas no meio do nada, cada um na sua barraca. Eu na minha, deitado, matando repetidamente as saudades da minha mulher. Salomé, como sempre, examinava amostras de plantas. O guia que havíamos contratado, um caçador panamenho com cara de inca, fumava um cigarro mais fedorento que uma orquídea Dracula no cio. Dava para sentir de onde eu estava.
      Mais cedo naquele dia, Salomé havia dito uma frase estranha de se ouvir de uma mulher, estando sozinho com ela no meio da floresta:
      “Alimentação e reprodução, não necessariamente nessa ordem, são as duas únicas coisas na qual eu penso o tempo todo, todos os dias da minha vida.”
       Na manhã seguinte, lá pelas onze, depois de tanto desconforto e com 90% do trabalho feito, eu estava prestes a pedir arrego, quando finalmente encontramos o espécime que faltava. A Coryanthes panamenha nascera dentro de uma moita, cercada por folhas e tons de verde os mais variados. Dessa vez, pude sentir por minha própria conta o perfume que suas pétalas amarelo-canário exalavam, um cheiro forte de especiarias adocicadas, damasco e eucalipto talvez, atraindo da mata circundante machos de abelhas do tipo euglossina. Se outras flores mimetizavam a aparência de carne, a Coryanthes parecia feita de um material borrachoso, brilhante e envernizado, que se redobrava sobre si mesmo.
       Em suas pregas escorregadias, os zangões competiam por espaço e pelo direito de raspar, com as patas dianteiras, maior quantidade das fragrâncias presentes na superfície cerosa da flor. Esses aromas, combinados a outros ingredientes encontráveis em certas folhas e fungos, formando um cativante odor de cânfora, seriam espalhados pelo zangão em seu próprio corpo, numa estratégia infalível para conquistar as fêmeas de sua espécie.
      Mas havia um preço a pagar. O labelo da Coryanthes, em forma de balde e cheio do mesmo líquido viscoso presente nas pétalas, mantinha-se estrategicamente colocado para receber qualquer zangão que, menos prudente, viesse a escorregar nas paredes deslizantes da flor. E logo aconteceu. Ao cair nessa piscina melada, um dos insetos teve as asas temporariamente inutilizadas. Se não quisesse morrer afogado, agora precisava escalar de volta para cima, passando por uma passagem estreita, que conduzia à parte posterior da Coryanthes. Atordoado e ensopado, ele se espremeu nesse túnel, passando embaixo de uma estrutura acionada feito mola, que lhe pregou nas costas um par de polínias. Aí o zangão secou as asas e saiu voando, provavelmente até achar outra Coryanthes, quando então cairia de novo no balde e, atravessando o túnel pela segunda vez, rasgaria suas mochilas polinizadoras em ganchos adaptados justamente para esse fim.
*
      Nove meses depois de voltarmos do Panamá, Salomé teve um filho com cara de inca.



Você não quis dizer nada, por André de Leones

(1.)
         Está passando da hora de dar o fora dali, ela sabe que a mãe vai encher e mesmo assim não dá a mínima. Sentada na beira da cama, calça um tênis e depois o outro e quando termina esfrega o rosto com as duas mãos pensando que ganharia muito mais se fechasse as cortinas, se livrasse de toda a roupa e dormisse até a próxima era glacial, a qual, conforme um texto complementar do seu livro de Geografia, pode não estar tão distante assim. Olha pela janela o céu cinza-claro, as pontas de um ou outro prédio e o barulho um tanto disperso, longe, da zorra urbana lá embaixo. Um diabo de dia feio de dezembro, o mundo a duas semanas do Natal e ela a três passos da janela. Ela abaixa a cabeça e encara o chão.

(2.)
        A mãe, sentada à mesa, folheia uma G Magazine, assinatura-presente do pessoal da repartição. Não teve coragem de recusar.
        – Vai se atrasar.
       Enfeada por duas décadas de um casamento falido, cretinizada por centenas de livros de auto-ajuda, encurralada por uma filha tão visceralmente oposta a si e seca por dois maços diários de cigarros de terceira, ela encara cada pau em cada foto da revista com aquele nojo medido e distanciado facilmente traduzível na mais franca frustração. Em outras palavras: com saudade do que nunca teve de fato, posto que sempre agiu como se não precisasse (realmente, muito) daquilo. Não que seja ou tenha sido estúpida. Ela apenas nunca soube nem procurou saber do que, de fato, precisava.
       – Por que demorou?
       – Tava na janela.
      Ela vê a mãe de um jeito que a mãe não se vê. Mas o problema é que, mesmo vendo o que vê, ela não dá a mínima ou ainda não sabe que dá.
      – Na janela?
      Toma um gole de suco e:
      – É.
      – Fazendo o quê?
     Outro gole antes de:
      – Pensando.
      – Pensando? – e ela tenta parecer que não se importa.
      – É. Pensando.
      – Pensando no quê?
     Mastiga e engole uma bolacha. E desfere o xeque-mate:
     – Pensando em pular, mãe. Que saco.

(3.)
        Uma bem aparada barba grisalha. Um bem-apanhado jeito de ser e de falar e de se colocar. Terno claro sobre camisa azul-marinho. Um aquário na sala de espera. CDs de jazz e os clássicos. Livros bons e outros mais-que-bons. De todo tipo, da “área dele” e diversos. Um Pynchon sobre a mesa. Que bom, ele não usa divã.
        – Eu não queria ter vindo.
        – E por que veio?
        – Minha mãe.
        – Ela te obrigou?
        – Mais ou menos.
        Breve silêncio de “humm”. Outro Pynchon na estante.
        – Quer falar dela?
        Ela sorri. Falar?
        – Não tem o que falar.
       E suspira. Outro breve silêncio de “humm”.
       – É um saco isso – mais de si pra si.
       – O quê? Falar?
       – Às vezes. Eu nunca gostei. Nunca quis dizer nada.
       – Você nunca quis dizer nada?
       – Nem sempre interessa muito.
       – Para quem ouve?
       – Pra quem fala.
      Ele sorri. Está realmente interessado nisso? Duzentos paus a hora. Mais ou menos. Ela sorri. Ela tem uma ideia e sorri. Ele talvez saiba que ela teve uma ideia. E continua sorrindo. Daí que ela para de sorrir. E diz:
      – Meu pai. Meu pai é meio louco – pausa. Suspira. – Ele abusava de mim. – Que segurança é essa na voz? Que destemor? – Dos meus seis anos até os catorze.
     Ops. Não mais silêncio de “humm”.
(4.)
(Senhor Deus. Não sei se acredito no Senhor. Sou muito nova ou muito cretina pra acreditar no que quer que seja. Mas não tenho mais nada e vou Lhe falar assim mesmo. É maravilhoso não ter que explicar nada. Hoje eu menti, mas e daí? Uma mentira que não veio de lugar nenhum, assim como eu, como o Senhor, como todo mundo. Hoje, como todos os dias, eu também quis uma morte que não veio de lugar nenhum nem irá a lugar algum. Sou igual a todo mundo, por que não? Não importa. Importa é que cheguei a alguma verdade graças a essa mentira, como se minha dor e minha estranheza ganhassem um corpo e um nome e agora eu pudesse sair com elas por aí, de mãos dadas. Meu pai que me perdoe, não o Senhor. Senhor Deus, estar triste é muito feliz, e então eu não entendo mais nada.)
(5.)
      – Estava com o namorado?
      – Não. Cinema.
      – Viu o quê?
      – Uma comédia.
      – Engraçada?
      – Nem sempre.
      – ...
      – ...
      – Seu psicólogo ligou.
      – ...
      – Que merda você foi dizer pra ele?
      – ... Eu não tinha o que dizer.
      – Que ficasse calada então!
      – ...
      – Por que... por que você não disse o que acontece?
      – E eu lá sei que merda acontece?
      – ...
      – ...
      – Na minha cidade, tinha uma louca que tirava toda a roupa, sentava num banco de praça e declamava poesia aos berros até a polícia chegar.
      – ... Eu odeio poesia.
      – E gosta do quê?
(6.)
        O pai. Em muitos sentidos, e não apenas nos óbvios, o oposto da mãe. Não tão humano, por exemplo. E previsível. Sempre o mesmo restaurante, nas mesmas datas (primeira quinta-feira de cada mês) e vinte minutos atrasado.
        – Lendo o quê? – e a beija na testa e se senta.
        – Hegel.
        – Não é muito nova pra Hegel?
        – Ele que é muito velho pra mim.
       O pai sorri. E a observa marcar a página e fechar o livro com gestos exageradamente lentos.
       – Triste?
       – Mais ou menos.
       – Consegue comer?
      Um sorriso: – Nunca se sabe.
      – Sua mãe dizia isso o tempo todo.
      – Ainda diz.
      – Quando?
      – Quando não tem o que dizer.
      Arroz branco. Peito de frango empanado. Suco de acerola. Salada. E o pai diz que:
      – Estou namorando.
      – Gosta dela?
      – Mal a conheço. Pode ser que sim.
      Ela sorri. O que mais poderia fazer?
      – Desde que eu e sua mãe nos separamos que eu estava sozinho.
      – Não. Antes disso.
     O suco está aguado. Fritaram demais o frango. Sempre comem ali porque é o restaurante mais próximo do consultório dele. E o pior num raio de oitocentos mil anos-luz.
      – Minha mãe me fez ir a um psicólogo.
      – Eu sei. A conta vem pra mim.
      – Ela tem me achado estranha.
      – Como?
      – Diz que não consegue conversar comigo.
      – E desde quando isso é importante?
      – O quê?
      – Conversar com você. Isso é tão importante assim?
      – Acho que não.
      Alfaces desidratadas.
     – Falei pro psicólogo que você abusava de mim. Dos seis aos catorze.
     O pai sorri:
     – E se arrependeu?
     – De ter mentido? Não.
     – Então qual é o problema?
     Ela afasta o prato. Ele está certo. Ou não. Mas é seu pai.
     – Continue estranha.
     Como não?, ela pensa. E sorri.

(7.)
    A porta da sala destrancada, a mãe não está na cozinha. Ela caminha por todo o apartamento com o coração na boca como se algo estivesse muito errado. No seu quarto, dá de cara com a janela escancarada. Senta-se na cama. Quer gritar.
     Então, um som de descarga e a mãe sai do banheiro arrumando a saia. Ela encara a mãe, lívida:
     – Achei que você tivesse pulado.
     E a mãe retruca:
     – Nunca se sabe.




Meu sonho com papai, por Nivaldo Tenório

        Só me lembrei do sonho alguns dias depois. No sonho meu pai é protagonista e foi ele mesmo quem salvou o sonho do esquecimento. Eu estava sentado com um amigo e tomava café quando meu pai apareceu com hálito de cerveja. Ofereci café e ele recusou porque queria conservar o hálito de cerveja. Naquele instante me lembrei do sonho. O amigo com quem eu dividia a mesa é um sujeito de quem gosto apesar de seus vários defeitos. Entre os principais está a propensão de sua natureza para a cerimônia, razão pela qual mantemos em mais de vinte anos uma relação quase formal. Também é sovina e sua natureza esconde uma boa dose de esquizofrenia que ele disfarça escrevendo poemas. Defendi – os poemas – mais de uma vez de ataques dos críticos que os acusam de hermetismo. Não é verdade; os críticos é que não sabem ler. Além do mais são horacianos e propõem um retorno ao Paganismo como nos poemas de Ricardo Reis. Ele é meu parceiro nas conversas que não dão em nada sobre literatura e naquela tarde estava sozinho e sentado à mesa quando entrei no Café.
       Havia um e outro que eu também conhecia tomando seus cafés. Sozinhos, em mesas com duas cadeiras, sorriram quando me viram chegar e acenaram quase num desespero achando que eu os libertaria da solidão. Eu também acenei e até sorri para um e outro. Mas como meu amigo poeta também estava ali, eu não tive dúvida na hora de escolher a mesa, pois de longe prefiro a ele com sua poesia e sovinice. Mas não é dele que desejo falar nem de seus defeitos, mas do sonho que me pareceu estranho: mistura de Kafka e pesadelo.
       Papai é da polícia e no sonho não fica claro se da civil ou militar porque no nosso país as polícias são duas: civil e militar, elas provêm de outro país chamado Babel. Expressam-se em línguas diferentes e é esta a razão por que não se entendem e tudo que fazem só não é pior do que o trabalho do judiciário que nem é militar nem civil, mas uma espécie de nobreza que sobreviveu à república e subsiste emporcalhando tudo o que toca com o seu toque de Midas amaldiçoado por bruxas que preferem merda a ouro.
         Eu estou lendo e não sei o que leio, é um livro, tem capa e páginas volumosas, mas não consigo ler a lombada, o livro é apenas um objeto de figurino, está ali sem outra razão senão a de justificar minha posição, sentado numa cadeira que também é o único móvel na sala. No mais tudo é sombra e imprecisão como nos vários esboços da Catedral de Rouen, de Monet. Mas como me angustia não reconhecer o livro que leio, vamos supor que seja a bíblia.
         Eu tenho uma amiga que é católica fervorosa apesar de sua devoção a Bernard Shaw. Uma amiga que vem nos últimos anos doando sua biblioteca. Ela sabe que não dispõe de muito tempo, é idosa, e como não possui herdeiros, é seu amor pelos livros que a faz escolher a dedo aqueles que ficarão com ela. Sinto como é doloroso para ela se dispor desses livros e talvez por isso o faça com lentidão, aos poucos. Orgulho-me de ser um dos herdeiros dos despojos dessa biblioteca particular. Coube a mim “O amor e a Lira” de Otávio Paz, uma antologia de poemas escolhidos de Robert Frost e uma novela de espionagem do Tchekhov. Ela conserva, entre os mais difíceis de abdicar, os escritores católicos, entre eles Bernanos e Chesterton. Certa vez perguntei se a Igreja Católica não atrapalhava sua relação com Deus. Ela depois de se chocar com minha pergunta petulante e recriminar a si mesma toda a liberdade que me deu durante o tempo que nos conhecemos e por todas as tardes durante as quais tomamos Vinho do Porto. Depois de tudo isso que na cabeça dela durou apenas um átimo, ela se ajeitou na poltrona e me informou que era justamente o Catolicismo aquilo que conferia legitimidade à sua fé.
        Enquanto ela se indignava eu ficava imaginando em que ponto ou pontos se parecem o Papa e Jesus Cristo, este um farrapo humano, montado num burro e falando para analfabetos. Aquele vestido em ouro, sentado num trono e recebendo Chefes de Estado. Mas esse defeito imperdoável de minha amiga de se recusar enxergar a verdade – embora verdade não há como reconhecia o próprio Jesus e seu silêncio embaraçoso diante de Pôncio Pilatos –, esse defeito de preferir a cegueira acompanhada de uma boa dose de esperança de um dia rever os antepassados que na sua família são muitos, que mais do que isso suplantam em número e qualidade os vivos. Mortos que ela carrega além da velhice, mortos nos retratos pendurados nas paredes, mortos em preto e branco e vestindo roupas fora de moda. Essa esperança que meu amigo poeta chama de uma escolha entre o ideal e o factual nem de longe atrapalha nossa amizade regada a Vinho do Porto e amor a Bernard Shaw.
        Eu estava lendo quando ouvi o som das pancadas. Nossa casa tinha um porão e por mais que isso possa parecer estranho já que nunca entrei numa casa que tivesse porão, a idéia é essa mesma, afinal é sonho que está virando conto e o autor está preocupado com a atmosfera de estranheza que é natural dos sonhos e das leituras de Kafka.
        Kafka dizia que o ideal de escritor é o daquele cara confinado num porão – porão de novo – que ali se recolhe para escrever. Abdica do mundo exterior e todos os prazeres e mais coisas que possam atrapalhar e se dedica a escrever escrever incansavelmente. Três vezes ao dia, talvez menos, um cristão ou alguém motivado pela promessa da recompensa – o que no fundo é a mesma coisa – coloca por debaixo da porta uma cota de ração e água. Aquele evento três vezes ao dia seria a única coisa responsável em interromper o escritor em sua tarefa de escrever. Essa idéia, a péssima relação com o pai e a feiura de Felice, ao mesmo tempo responsáveis pela atmosfera kafkiana, seriam as razões que enlouqueceriam Kafka se ele não tivesse morrido antes, de tuberculose.
       O barulho vem do porão e é o som de quem bate e o de quem apanha. O som surdo de carne contra carne e ossos se partindo vem acompanhado de uma respiração ofegante e gemidos que não se propagam e morrem engasgados. Eu não me lembro do percurso que fiz até a arena do horror, mas decerto caminhei, cruzei cômodos e desci escadas e fui dar com meu pai vestido de verdugo e torturando um homem descamisado, amarrado a uma cadeira e com a cara que era só sangue e contrariedade.
        Meu pai é pequeno e tem o corpo coberto de pelos. Essa semelhança com primatas acentua-se ainda mais todas as vezes que ele bate no prisioneiro que é incrivelmente mais alto. Perto dele meu pai é um pigmeu. Mas os murros do verdugo o tornam gigante para o prisioneiro pigmeu.
        Meu pai me nota finalmente e não tem nenhuma reação. Depois de interromper a sessão de tortura, estende a mão e espera que eu deposite nela o copo de água que carrego. Eu me surpreendo entregando-lhe a água enquanto me lembro de tudo. De que sou eu que auxilio meu pai nas sessões de tortura. Lembro-me até do livro que há pouco segurava nas mãos. Quando ele me entrega o copo vazio e de novo me ponho subindo as escadas, ouço atrás de mim o recomeço do som de carne contra carne e ossos se partindo. Não sei quantas vezes subi aquelas escadas, mas foram muitas, e em todas as vezes, como agora, senti a mesma sensação de que tudo é maior do que eu. O prisioneiro não é o único impotente, e minha rebeldia não vai além da tentativa de desacreditar o papa que nem sabe que eu existo. Sou um filho de torturador que se prepara para o exame de ingresso na polícia.
        Agora que eu não escuto meu pai trabalhar, experimento uma sensação de que tudo está em ordem de novo. Sempre esteve como a ordem dos astros rodando ao redor do sol ou do próprio eixo. Uma ordem de quem ninguém se dá conta. Nos dias em que a cena do homem banhado em sangue persiste, procuro curá-la com a leitura da bíblia que em mim tem um efeito tranquilizante porque me entorpece até o sono.



Grisalha, por Mário Rodrigues



   São duas mulheres. Uma mais jovem do que a outra. Estão de mãos dadas. O forte vento muda de lugar as dunas onde pisam. Os pequenos grãos de areia em movimento constante agridem suas pernas sensíveis. Caminham e sabem para onde ir.
   “Ele era lindo”, diz a mais velha. “O homem mais lindo que conheci ou conhecerei.”
   “Rosto perfeito? Corpo sarado?”, pergunta a mais jovem.
   “Não. Era uma beleza que se revelava no seu humor, na sua generosidade.”
   “Que romântico!”
   “E no seu bom coração, no carinho por mim. No olhar.”
   “Só no início?”, pergunta a mais jovem.
   “Não apenas no início, sempre. Ele nunca deixou de me escutar, de se interessar por meus quadros, por mim.”
    “Então?”
    “A insegurança puxou o gatilho, ele dissera.”
    “Insegurança?”
    “Insegurança que, segundo ele, eu mesma havia causado.”
    “Era uma desculpa da parte dele? Uma espécie de racionalização?”
    “Não, não. Ele era ciumento. Mas tive toda a culpa. Incitei, em várias ocasiões, o ciúme dele.”
     “Por quê?”
     “Eu precisava me afirmar, ser cortejada, assediada, desejada, entende? Mas, no fundo, eu o amava. Aqueles outros homens que se aproximavam de mim batiam, ricocheteavam e nunca, nunca!, se acoplavam. Não representaram nada. Mas éramos jovens, com duas décadas de vida não se sabe absolutamente nada.”

         Um longo silêncio entre as mulheres. Céu azul. Areia por todos os lados. Nenhum ser humano além delas. O lugar teria eco? Quer saber a mais jovem, mas têm vergonha de gritar. Caminham. Sobem e descem dunas sem se importar com o sol.

         “Mas ele sabia disso?”
         “Claro. Falei que o amava, que o queria. Que ele era o máximo.”
         “Falou. Mas ele percebia?”
         “Não. Ele não me entendia. Me policiava. E sofria.”
         “E você?”
         “Eu não. Achei que ele sempre estaria ali, ao meu lado, funcional.”
         “O fim, quando foi?”
       “Eu ainda não sabia que estava grávida. Não tínhamos necessariamente brigado, falávamos normalmente, então ele se virou para mim e disse, olhando nos meus olhos: Você vai se arrepender. E se foi.”
        “Qual foi sua reação?”
        “Não prestei atenção. Para mim as palavras não tinham as significâncias e ressonâncias que tinham pra ele. Naquela frase simples, ele estava dizendo adeus. Mas dizia mais, dizia que eu não dera o valor que ele merecia, que não prestara atenção, que o subestimei, que o vilipendiei, porém eu só perceberia tudo isso, e a certeza de tudo isso, depois de muito tempo.”
        “E então?”
        “Ele parou de escrever. Casou-se com uma menina comum, que passava suas roupas, que limpava sua casa, que o esperava com um jantar saboroso no fim do dia e que seria, se não fosse estéril, a mãe de seus filhos e que foi, hoje posso confessar, feliz, porque era impossível para uma mulher não ser feliz ao lado dele, feliz numa intensidade da qual jamais sequer me aproximei. Mas ela morreu jovem, eles viveram juntos dois anos. Fui ao funeral dela. Foi a única morta que vi que não tinha cara de morta, mas de plenitude.”
    
      Outro silêncio entre as mulheres. No côncavo formado por um arredor de dunas está a lagoa.

      “E depois do enterro? Vocês se falaram? Reataram?”
      “Depois do enterro nos falamos. Uma conversa que esperara por mais de dois anos. Perguntei, num canto, se ele ainda me amava como antes. Se fosse assim, queria ficar com ele. Olhou-me profunda e lentamente, não respondeu nada. E se foi. Depois soube que ele mudou para outro país, ou cidade longínqua, não sei bem. Fez rápida fortuna. Os inimigos e invejosos diziam que ele enriquecera traficando drogas no atacado. Não sei se era verdade.”
      “Houve um último encontro?”
      “Houve. Você já devia ter uns dez anos. Ele estava lindo, como sempre. Seu corpo era ainda mais rijo e definido do que quando recém-saíra da adolescência. Veio espontaneamente, sem avisos. Havia uma empáfia angustiante, que chegava a humilhar o interlocutor, na sua voz de então. Mais uma vez usou apenas uma frase, com todas as ressonâncias e significâncias: Você se arrependeu?”
      A mulher mais jovem pergunta: “E você?”
      “Eu disse a ele: Claro que não me arrependi. Como devo ter parecido patética. Como eu não tinha me arrependido se ainda lembrava da sua última frase? Se, durante aqueles anos de intervalo, chorei quase todo dia porque o havia perdido e porque todos os homens que conhecera, antes e depois dele, eram uns imbecis. Naquele dia, ele me mostrou um envelope. Dentro deste havia uma relação de todas as suas posses materiais, inúmeras, convertidas para o meu nome. Ele disse: Agora tenho o direito à tua exclusividade? E se foi. Para sempre. E não sarou. Dói.”

     As mulheres param diante da lagoa no meio das dunas.

     “Este era o lugar preferido dele”, diz a mulher mais velha.
     “Tinha bom gosto. É o lugar mais lindo que já vi.”
     “Mergulhe, a água é morna e límpida. Ele amava mergulhar.”

     Enquanto a filha toma o banho, a mãe lembra mais um encontro. O verdadeiro último encontro: uma encomenda que chegara pelos Correios. A mulher mais velha tira da sua mochila a encomenda: um recipiente cheio de cinzas. A mulher mais velha derrama com calma as cinzas dele no lugar que ele desejaria. No lugar que ele mais amou sobre a terra. No lugar que, embora ele jamais soubesse, gerou a única filha que deixara no mundo.

     “O que é isso, mãe?”, pergunta a mulher jovem, de dentro da água.
     “Nada filha. Só poeira. Só poeira.”


Victor Hugo e as mulheres, por Luzilá Ferreira


No ano passado, comemorou-se, na França, a realização do Primeiro Congresso Internacional pela Emancipação das Mulheres, organizado pelas jornalistas-editoras do jornal La Citoyenne (A Cidadã), em 1879. Dirigido por uma mulher admirável, Hubertine Auclert, batendo-se pela restauração do divórcio, pelo direito de voto às mulheres, pela abolição do dote, o grupo organizador convida o grande poeta Victor Hugo a ser um dos participantes do evento. Doente e com 77 anos, Hugo não pode comparecer, mas envia uma mensagem de simpatia às congressistas, e de apoio à causa feminista. Essa mensagem será lida em público, e o jornal a publicará em seguida. Poeta, dramaturgo, romancista, político, prolífico em todas essas atividades, Victor Hugo atravessou o século XIX, do qual foi testemunha atenta, até os últimos momentos de vida. Em sua multifacetada obra, que tanto inspirou nossos românticos, o libelo contra as injustiças sociais, a tomada de posição em favor dos deserdados da terra, a descrição das doçuras de ser avô, a fruição de uma paisagem, o lamento contra a passagem do tempo que tudo destrói, o amor. E as mulheres.
O autor de Notre-Dame de Paris muito escreveu sobre as mulheres que atravessaram seu caminho, e sua relação com todas elas foi problemática ou sofrida. Com Adèle, a esposa, que ele enganava sistematicamente e que, ao que tudo indica, findou por se envolver sentimentalmente com o crítico Sainte-Beuve, amigo do casal. Com a filha querida, Leopoldine, que morreu afogada aos 16 anos, durante a lua de mel. Com Adèle II, a filha que se apaixonou por um oficial, que ela perseguiu até atravessar os mares e o encontrar no Canadá e nas Antilhas, e que findou seus dias num asilo. Com Juliette Drouet, a amante que suportou suas infidelidades durante mais de meio século e que parece ter, muitas vezes, pago com a mesma moeda o preço dos conflitos advindos de uma relação tumultuada.
V. Hugo é certamente o maior cantor das mulheres no Romantismo francês, sejam elas a redentora, o anjo, ou a mulher tentadora, ele as exalta, na adolescente que desperta para a vida, na mãe, na amorosa, na humilde mulher do povo, na operária, naquela que vende seu corpo para se manter. E, no final da vida, nas suffragettes, aquelas feministas que lutavam pela própria visibilidade, numa sociedade repleta de paradoxos.

O século XIX é o grande século de exaltação da figura da mãe gloriosa. Nos países do ocidente, que buscam construir a democracia, a mãe será lembrada como a grande responsável pela educação do futuro cidadão e pelo bem-estar do marido e do lar. Ernest Legouvé escreve no começo do século um longo poema de louvor a essa mulher abnegada que se sacrifica pela felicidade dos que dela dependem: e nos deixou este verso que os noivos franceses copiavam e colocam na corbeille que ofereciam às noivas, em meio a flores e jóias: Tombe aux pieds de cette femme à qui tu dois la vie. (Cai aos pés dessa mulher a quem deves a vida.) Esse louvor da mãe gloriosa se concretizará na instituição oficial, pela Igreja Católica, do Culto à Virgem Maria, por volta da segunda metade do século. Victor Hugo não escapa à fascinação desse tema. A mãe que ele exalta pode ser a sua própria mãe ou a esposa, Adèle. Ou a pobre e desconhecida que a morte do filho tornou louca, como no poema das Vozes Interiores:

Desde aquele dia, sem ver e sem falar,
Ela andava absorta, olhando à frente,
Buscando em meio à sombra, uma coisa perdida,
Seu filho que sumira no espaço desconhecido
E, vez em quando inclinava seu rosto como para ouvir
Sob a terra um canto que só ela escutava.
Pobre mãe, um suspiro sufocado,
às vezes cortava sua voz que murmura: o filho!
Ou procura um clarão no céu pálido
pois a jovem alma que fugira de casa
ao partir, levava consigo seu juízo.
Inutilmente, lhe diziam em voz baixa,
Que a vida é assim, que tudo morre, tudo passa (...)
Que Deus que empresta tudo e que não nos dá nada,
Pra refrescar nossas frontes com suas asas brancas
Põe os filhos, como se fossem pássaros, em nossos ramos.

Opondo-se a essa mãe infeliz, Victor Hugo exalta a mãe venturosa, o anjo do lar, aquela de que o país necessita para o equilíbrio dos futuros cidadãos. Mas a essa mãe ditosa a completa felicidade também é negada. Ela teme pelo futuro do filho, quando o vê crescer, como no poema intitulado Tentanda via est

Não se assuste, doce mãe inquieta
cuja bondade se espalha pela casa inteira
De vê-lo, tão pequeno, tão grave, pensativo.
Como um pobre pássaro fraco, que sozinho,
sobre um recife
vê o oceano subir e sonha.
Ele já antevê a vida imensa e escura (...)
Ó mãe de coração divino, não se assuste.
Você em quem tanto a alma é uma mescla encantadora:
o anjo vê uma criança e a criança vê um anjo.

A jovem adolescente a que Hugo exalta se encontra no começo da vida, à espera do amor e é descrita como um ser inocente, frágil, diáfana, a quem ele dá conselhos. E como, segundo Balzac, o grande negócio das mulheres é o amor, Victor Hugo chama a atenção da jovem para os perigos deste sentimento, como no poema “Para uma jovem”:

Jovenzinha, o amor é primeiramente um espelho
Onde a mulher vaidosa e bela gosta de se olhar,
e alegre e sonhadora se inclina;
E quando se tem, como você, um coração virtuoso
ele torna sua alma pura e branca.
Depois, quando se desce um pouco e depois se escorrega,
O amor é um abismo. Em vão as mãos se seguram nas bordas,
A gente é levada pelo turbilhão das águas.
O amor é encantador, puro, mortal. Não acredite nele.
Como a criança, atraída por um rio, progressivamente,
Se olha nele, se lava e nele se afoga.

Quando esta jovem é pobre, o interesse do poeta se transmuda em simpatia e compaixão. A preocupação social que atravessa a obra do autor de “Os Miseráveis” é personificada na jovem operária. Lembremos que o processo da industrialização na Europa fez com que muitas mulheres abandonassem, pela miragem dos grandes centros urbanos, a vida nos campos, onde nem sempre a colheita assegurava o sustento das famílias que a fome rondava. Paris, Londres e Milão são grandes centros invadidos por jovens camponesas atraídas pelos salários das fábricas, pela ocasião de se tornarem pequenas costureiras, bordadeiras para as mulheres ricas. E nas cidades encontram miséria e cansaço
Hugo descreve as miseráveis mansardas onde habitam essas infelizes, e, sabendo-as ingênuas e inocentes, vê como são sujeitas às tentações e às seduções de homens inescrupulosos. No poema “Nunca insultes uma mulher decadente”, ele culpa, aliás, o capitalismo desenfreado pela existência, na sociedade, dessas mulheres que cederam às tentações. No interior da mansarda ele vê:

Uma sombra, uma figura, uma fada, uma graça
Jovenzinha do povo, cantando ainda feliz.
Órfã, dizem, sozinha neste asilo
Mas que às vezes parece, pela fronte tranquila, ver distintamente a face do Senhor.
De manhã ela canta e em seguida trabalha.
Séria, com os pés sobre uma cadeira de palha,
Costurando, cortando, bordando/
E enquanto pensando em Deus, simples e sem medos,
Esta virgem faz seu trabalho augusto e santo
O silêncio sonhador, se senta à sua porta. (...)
Nenhum perigo, nem escolho. Se a serpente está na relva.
Ai, ai. O verme está no interior da fruta.

E o poeta se dirige à jovem costureira:

Deixa-te aconselhar pela agulha operária,
presente em teu labor, presente em tuas preces.
Que diz baixinho: Trabalha! Acredita no trabalho.
Deus fez nascer do trabalho – que o louco recusa – duas filhas:
a virtude, que torna doce a alegria,
e a alegria, que torna encantadora a virtude. (...)
Assim permanecerás como um lírio,
como um cisne, branca entre as frontes puras
marcadas com um sinal divino.

A terceira grande representação da mulher na poesia de Victor Hugo é aquela da amada. Recorrendo à biografia do poeta, descobrimos a figura de Juliette Drouet. Atriz, amante do escultor Pradier, quando Hugo a encontra. Ao que parece, Juliette teve vários amantes simultâneos, entre os quais o marido da sobrinha de Napoleão III, o príncipe Anatole Demidov e o jornalista e escritor Alphonse Karr. A esse respeito, Balzac escreve à futura esposa, em março de 1833: “Victor Hugo, que se casou por amor e tem lindos filhos, caiu nos braços de uma infame cortesã. Ele se apaixonou por uma atriz chamada Juliette, que, junto com outros sinais de afeto, lhe enviou uma conta de lavanderia no valor de 7 mil francos. Hugo foi obrigado a assinar notas promissórias para pagar por sua carta de amor. Imagine um grande poeta como V. H. – pois é, um grande poeta – trabalhando para pagar a lavanderia de Mlle. Juliette.” O crítico Sainte-Beuve viu, entretanto, o que essa ligação traria à poesia do autor dos Trabalhadores do Mar: a inspiração de belos poemas: “ que encobririam de glória seu pecado.”

Em cinquenta anos, Juliette escreveria a Hugo 25.000 cartas. Para ela, ele escreveu o drama Marie Tudor. A crítica massacrou o desempenho de Juliette nessa peça: “Ela não foi ruim, foi deplorável.” Mas Hugo consola a amada: “Atuaste diante de duas mil pessoas e só uma delas te compreendeu: eu.” Durante dois verões, Hugo alugou para Juliette uma casinha junto da floresta de Bièvres e de vez em quando ia visitar a amada. Esta sonha em voltar ao teatro e ser uma grande atriz, o que não aconteceu. Anos depois, o amante retorna sozinho ao cenário de sua paixão e verifica que a Natureza os esqueceu. E escreve um de seus mais belos poemas, Tristesse d’Olympio. Aqui, ao retrato da amada e do amor, se acrescenta uma profunda meditação sobre o tempo que passa e sobre a indiferença da natureza com relação aos seres humanos:

“Como basta tão pouco tempo para mudar todas as coisas!
Natureza, de fronte serena, como você esquece!”

A essa queixa contra a natureza, já formulada por Lamartine, em O Lago, Hugo acrescentará uma longa reflexão sobre a passagem do tempo. E retomará a idéia de que Deus não nos dá nada, ele nos empresta. Concluirá o poema com um belo hino ao amor e ao que restará dele, quando tudo passará, isto é, a recordação:

“Todas as paixões se afastam com o tempo (...)
Mas tu, nada te apaga, amor! Tu que nos encantas!
Tu que, tocha ou chama, brilhas em nossa bruma!
Tu nos manténs pela alegria e sobretudo pelas lágrimas;
Quando somos jovens nós te maldizemos, mas quando velhos nós te adoramos.”

Depois de descrever a escura rampa onde se encontram, forçosamente, os que envelhecem, ele acrescenta:

“E lá, nesta noite, onde nenhuma estrela brilha
A alma num recôndito sombrio onde tudo parece acabar,
sente algo palpitar ainda sob um véu:
és tu que dormes na obscuridade, ó sagrada recordação.”

Alguns dos mais belos poemas de Victor dedicados a uma mulher são aqueles dirigidos a Leopoldine, a filha, que havia desposado o poeta Charles Vacquerie. Em Demais, dès l’aube (Amanhã, desde a aurora) ele lhe fala, como se Leopoldine, que dorme no cemitério de Villequier, o pudesse ouvir. Em A Villequier (Em Villequier), a dor da perda dá ensejo a uma meditação e uma espécie de oração a Deus, de um homem dividido entre a revolta, ante a perda da filha, e o cristão que deve se resignar à vontade divina:

Agora que Paris, suas pedras e seus mármores
E sua bruma e telhados estão longe de meus olhos
Agora que me encontro sob os ramos das árvores
e que posso sonhar com a beleza dos céus (...)
Eu venho a ti Senhor, pai em quem se deve crer
eu te trago, apaziguado
os pedaços deste coração cheio de tua glória
e que tu despedaçaste.

Eu aceito, ajoelhado que só tu, pai augusto/
Possuis o infinito, o real, o absoluto
Aceito que és bom, aceito que és justo
Que meu coração tenha sangrado porque Deus assim o quis.
Não te irrites que eu esteja assim, meu Deus.
Esta chaga sangrou tanto tempo! (...)
E meu coração está submisso, mas não resignado.”
Depois uma espécie de ato de contrição ele escreve:
“Senhor, eu reconheço que o homem está delirando se ousa se queixar;
eu cesso de acusar, cesso de maldizer, mas me deixa chorar”.
No final, o tom de intimidade com que se dirige a Deus instala no poema um clima afável, de alguém que conversa com um outro, de igual para igual:

“Veja só, nossos filhos nos são muito necessários, Senhor. Quando se viu, uma manhã, em meio ao tédio, às dores, às misérias, e em meio à sombra que o destino faz cair sobre nós, aparecer um filho, cabecinha querida e sagrada, pequeno ser alegre, tão belo que a gente pensa se abrir uma porta do céu com sua chegada, quando se viu, durante 16 anos, crescer a graça e a doce razão deste nosso outro, quando se reconheceu que esta criança que a gente ama, traz a luz para nossa casa. Que é a única alegria neste mundo que persiste de tudo aquilo que se sonhou. Considere que é uma coisa bem triste ver que ele se vai.”

No dia 22 de maio de 1885, Victor Hugo falece. As sufragistas, leitoras e editoras de La Citoyenne acompanham o cortejo fúnebre, que atravessou Paris, e se estendeu por alguns quilômetros. Em junho daquele ano, o jornal descreverá a cerimônia, durante a qual as mulheres permaneceram de pé durante dez horas e em pleno sol do verão parisiense, para celebrar seu grande apoio, o poeta. E lhe dedicará artigos de reconhecimento ao homem cujo espírito se conservara sempre jovem, e que soubera ver que o feminismo era o grande acontecimento do século XIX, na Europa. Foi este o último grande momento de encontro de Victor Hugo com as mulheres.