quarta-feira, 29 de maio de 2024

 

Escrever

            Eu gostaria de ficar escrevendo o tempo todo. Eu gosto de escrever e não gosto de falar. Eu não consigo falar, principalmente se todos quiserem me ouvir. Escrevendo, eu consigo me comunicar com várias pessoas ao mesmo tempo, e apesar de elas não estarem lendo os meus textos no momento em que escrevo, existe uma possibilidade de que um dia todos leiam, e dessa forma eu me sinta bem. Esse é o desejo de todo escritor.

             Escrever é bom, é particular, é criativo, é sensacional, e você que escreve pode ser um chorão, reclamar da vida, pode ser verdadeiro, mentiroso, poético ou escandaloso. E o principal: você pode ser você mesmo.

            Escrever é uma aventura.

sábado, 25 de maio de 2024

 

“PLOC”

                Um homem, ao sair do quarto escuro, pegou o chapéu e correu até a porta. Desesperado, tentava falar, sem conseguir. Sentia, há tempos, que começara a ficar mudo. Queria se libertar da vida que levava, e já na rua, abraçou o primeiro transeunte que encontrou. Por coincidência esse transeunte era eu, que nesse instante quase chorei de emoção diante daquele gesto nobre. Apertei-o contra o peito e ele ainda brincou, segurando o meu nariz entre os dedos. Eu espirrei três vezes e comecei a me coçar. Foi tudo muito rápido: cocei, cocei, e, de repente, a pele começou a se desfazer nas minhas mão, e logo em seguida a carne também. Eu tocava, aflito, os meus próprios ossos, e o couro cabeludo se desfez entre horror e lágrimas. Um dos meus globos oculares caiu como uma bola de gude e eu, olhando aquele olho no chão, com o olho que me restara, tive vontade de pisar para ouvir fazer “PLOC”.

quarta-feira, 22 de maio de 2024

 

A memória de um morto

            O meu computador morreu. Eu o velo na mesa de vidro jateado. Levou consigo tudo o que eu não guardei na memória. As migalhas estão nas nuvens. Meu passado, meus sonhos, meus desejos, tudo isso confiei na memória de um morto.

sábado, 18 de maio de 2024

 

A sua cabeça

            A sua cabeça é imprevisível. Eu gasto muito tempo tentando decifrá-la. Sempre me iludo achando que sei o que acontece lá dentro. Ela, com razão, diz que eu não sei, mas na verdade, o que me interessa lá dentro é aquela confusão cativante.

quarta-feira, 15 de maio de 2024

 

Objetos

            Lá vem o dia cheirando a carros. Poderia exalar o cheirar de uma rosa ou o da brisa do mar, e não o do azul do carro. Poderia brilhar o dia, não o brilho de faroletes, e sim, o brilho exuberante de uma belo manhã de sol. A fumaça nos impede disso. Lá vem o dia esbanjando objetos.

sábado, 11 de maio de 2024

 

Só ando com o necessário

            Eu não tenho nada. Não acumulei nada. Só ando com o necessário. Em vez de ter várias casas, contento-me com asas. Não quero ser grande, andar como se de salto-alto. Eu não acumulei riqueza. Sou rico de companhia. Não morro de amor por carros. Gosto de observar o caminho. Não quero poder. Quero poder ser.

            Mas eu tenho um cachorro.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

 

A roseira

            A roseira cobre-se sob um corpo de espinhos. Inventou este artifício para se proteger de herbívoros. O homem, carnívoro, deveria deixa-la em paz, mas inventou a tesoura para roubar-lhes as rosas e enfeitar as suas casas, usando algumas pétalas como marcadores de livros.

sábado, 4 de maio de 2024

 

O grande orgasmo

             Na verdade a vida aqui na terra deveria ter um final diferente do que acontece na maioria das vezes.  É sempre triste uma pessoa entubada esperando a morte num leito de hospital.

            Ao contrário do usual, nós deveríamos nascer e ter uma relação íntima conosco. Uma relação sexual. 

            Começaríamos nos descobrindo e usando de todas as possibilidades que a vida nos oferecesse para sentir prazer, e no fim, depois de muitos anos, já velhinhos, atingirmos o clímax, o ponto mais alto da nossa relação conosco: o grande orgasmo.

            E fim.