1 de Dezembro de 2016
Seis e pouco da manhã e já pedalava pelas ruas da vila. Escuro ainda, o vento a arrefecer-me as faces e os dentes (não convém pedalar a sorrir quando está frio; arrefece os dentes !). Foi uma bela maneira de começar; as ruas desertas, apenas as folhas a esvoaçarem por ali sob o vento e iluminadas pelos candeeiros e eu, também por ali, às curvas a ocupar toda a estrada. E nem cães nem gatos. Dantes, ainda não há muito tempo, viam-se cães a vadiar pelas ruas e jardins. Agora não. Pouco depois encontrei-me com os dois companheiros com quem ia pedalar até ao cimo da serra do Caramulo. Com quem ia fazer o mítico "assalto ao Caramulo do dia 1 de Dezembro". Eu, que ainda levava o sorriso no rosto, dei com eles a sorrirem também. Sabíamos que a coisa ia ser danada. Tínhamos previsto que até lá seriam 65 Km mais coisa menos coisa e para aí uns 1750 m de acumulado positivo em altitude. Mais 1000 e tal para a volta.
Primeiro teríamos que atingir o rio Mondego e seguir pela margem esquerda. Apanhámo-lo 30 km depois em Penacova. O Sol tinha nascido antes de termos iniciado a descida para o rio. Belíssimo, por baixo de nuvens negras sobre a cordilheira Açôr-Lousã. Ainda me passou pela cabeça tirar uma fotografia mas iria ficar tão desiludido ao vê-la, sabia de antemão, que desisti.
O Mondego ia tranquilo (
Suzanne takes you down to her place near the river ...).
Pedalámos vários km pela margem, ora em estradões e praias fluviais, ora em "single tracks" em zonas húmidas cobertas de vegetação densa e onde a roda traseira patinava nas raízes molhadas, até zonas com plantações. Perto da barragem da Raiva, onde o atravessámos, as pedras espalhavam-se por ali, pelo leito baixo do rio. Tudo muito bonito.
O tempo foi fechando. Muitos km e pedaladas depois, passados Mortágua, e guiados por GPS para nãos nos perdermos nos caminhos, já a meio da subida da serra do Caramulo, aos cerca de 500 m de altitude, parei e olhei para trás. A serranias na linha do horizonte, de onde tínhamos partido pela calada da noite sob intenso temporal e com os lobos a uivarem lá longe (bem, agora deixei-me levar um pouco pela imaginação - estava apenas vento e um friozinho, nada demais), estavam sob um céu carregado. Seria preciso voltar para lá, uma vez atingido o cume do Caramulo.


Já na cumeada da serra, começámos finalmente a encontrar outros companheiros de pedaladas. Centenas e centenas. No percurso final encontram-se os grupos que subiram a serra, partindo de diversos locais à volta, no sopé. É uma grande festa. Grupos surgem a subir os caminhos da serra por todos os pontos cardeais. É um passeio espontâneo, não organizado, sem qualquer apoio e guiado por GPS. Depois vai-se quase em pelotão, incentivando-nos mutuamente (tirando uma meia dúzia que faz daquele encontro uma corrida).
É também onde os horizontes se abrem, o ar fica mais frio e se tem a sensação de andar lá por cima. Estou sempre impaciente para chegar ali.
Já perto do cume avistam-se as formações de granito características do topo. Não sei o nome da povoação (e não aparece no google earth) mas parece um oásis no meio da rudeza à volta.
Em Malpalhão de Cima, aldeia de granito e gado e caminhos ladeados de muros de granito e grandes lages de granito a pavimentar o chão aqui e ali, o bar da aldeia enche-se de centenas de pedalantes. Poucos cabem dentro e cá fora é preciso furar pelo meio da multidão para fazer os últimos 2-3 km que falta para o cume. Para o Caramulinho (parece ali tão perto e tão pequeno mas é imponente):
Aqui em cima o vento sopra forte, o suor arrefece-nos e, por regra, a fome aperta (felizmente pessoal da zona, sabendo do "assalto" do dia 1, monta por lá umas barracas de comes e bebes e é ver a bela sandes de presunto em quase todas as mãos enluvadas num contorcionismo, tentando segurar a bike, o cantil da água ou a mine e furar pelo meio da multidão). Há um cerrar de dentes que resulta da sensação de frio à medida que o suor nos arrefece com o prazer de trincar as sandes.
Como quem crava a bandeira depois da conquista de um qualquer cume nevado (e há anos em que o cume está nevado), tira-se a fotografia da praxe.
O conta-quilómetros da bike marcava 74 km (mas tinham dito que eram sessenta e poucos !?). Era preciso fazer outros tantos de volta. Descer a serra, fazer todo o vale, atravessar o Mondego e subir para a serra da Lousã.
Vamos lá fazer contas. São quase 2, o Sol põe-se às 5:30, já vamos chegar de noite. Nem penses. agora é a descer. Em 3 h estamos lá. Mas isso dá mais de 20 à hora. Pelo meio das matas não é possível. Ora, quem é que quer saber de aritmética, vamos mas é andando.
Quando chegámos de novo ao Mondego, 8h depois de lá termos passado pela manhã, o Sol já se punha.
Ainda estive por ali uns minutos parado. Vamos, está de noite, diziam eles. Primeiro fiquei fascinado com a disposição das pedras. Achei muito bonito. Depois fiquei a pensar qual a finalidade (quebrar a força da corrente? barreira para impedir descida de barco? barreira para reter árvores e outros detritos? impedir a erosão do leito?...)
Chegámos de noite, perto das seis. Tínhamos partido de noite há 11h e tal atrás. Foram 9:20h em cima da bike a pedalar.
Tal como à partida, despedimos-nos com um sorriso.
Afinal, passou depressa, tantos os belos sítios por onde pedalámos.
Foi uma not so
long and winding road