terça-feira, 17 de novembro de 2020

Adriano Nunes: "Nas alegorias festivas da métrica"

 "Nas alegorias festivas da métrica"


Primeiro, fui alargando o verso
Para ver se você cabia na minha astúcia.
Depois, vi que era preciso alterar o metro e o ritmo
Para ver se você se encaixava direito,
Em cada imagem, em cada sentido.

Sim, eu sei que, a seguir, rasguei uma miríade de folhas
E já não sabia o que eram ritmo e metro.
Calculei errado que com as rimas ricas poderia capturar o seu espectro,
A sua alegria, os seus remorsos, as suas dúvidas.
Não era assim! Repeti isso algumas vezes.

Não pode ser deste jeito! Gritei para o meu peito.
Num sábado qualquer, compus quadras clássicas
E com um microscópio eletrônico tentei ver o seu DNA
Nas alegorias festivas da métrica.
Nada achei. Nem beijos nem abraços,

Nem olhares de lado. Sequer desculpas por não me poder ter notado.
Compreendo. Sim, agora compreendo.
Sangrei-me sem estrofes.
Pensei: pode ser que escrevendo em prosa
A sua existência vingue em cada letra, em cada signo de silício.

Que tolice! Que engano! Que risco!
Já é um pouco tarde para lamentos, diz-me Eros.
A máquina velha está ali, logo ali.
Papéis em branco saltam da escrivaninha.
Talvez você tenha sido um erro, por isso

A poesia não quis aceitar as suas pernas, os seus músculos, a sua língua.
Ah, a sua língua! Que caminhos pode percorrer
Em meu corpo! Que horizontes não me devolveu naquele acaso!
Pois bem: está tudo ante o meu ser, ante áleas.
Começar? Com que verso admitir que seria bom

Trocar algumas metáforas por umas elipses no banco do carro?
Com que decassílabo decompor as vestes do medo e dar-lhe uma mordida naquele lugar de êxtase?
Ah, instante de Musas e risadas quânticas!
Ah, impulso linguístico de deixar tudo ser um rio e fluir por fazer parte de tudo!
Com que aliterações ser mais livre, mais astuto?

Sim, quando mais estava desistindo de tecer o poema, senti
Que era preciso estar aqui, escrevendo-o.
Dirão que é um poema de amor, romântico, lírico, etc e tal. Nada digo.
É um poema. Ele tem fome. Está faminto. Quem sabe,
Devore o seu coração, sem receios, com arte.

Adriano Nunes


domingo, 8 de novembro de 2020

Adriano Nunes: "Ars poetica"

 "Ars poetica"


Ele não responde.
A vida não responde.
Tento outra vez.
Nada. Só o silêncio das sinapses
A pensar o silêncio das sinapses.
Os deuses, ocupados em serem deuses,
Não respondem.
Abro uma gaveta. As chaves
Para alguma álacre alegoria, quem saberá
Onde as pus? Não sei. Talvez, nunca saiba.
Percorro, aflito, o corredor que me leva
Às frestas da janela mais próxima.
O ar torna-se fresco e suave.
Favônio? Ou o bater das pequeninas asas
Das sandálias de Hermes?
Olho para a rua. Para o devir da rua.
Quero ser o êxtase em existir que ferve ali.
Procuro por Dionísio.
Onde está aquela bárbara bacante?
Ela não responde.
O tempo não diz nada.
Olho para além-rua, para dentro em mim,
Para ti, que engendro em meu olhar,
Palavra alada, palavra sem pouso.
Vou perguntar-lhes de novo:
Como ser só um outro?
Como dizer de mim, sem ferir o que canta,
Nesta hora, o meu coração?
Debaixo da cama! Sim, deve estar lá
A esperança amedrontada.
Ou o que possa restar dela.
Debaixo da cama tem-se escondido a existência!
Mas... O que importa, o que ainda importa?
De sua laringe,
Não espero respostas
Nem enigmas que me devorem agora,
Por ser quem mais me penso.
Insisto um pouco mais, com certa astúcia:
Volto ao quarto.
Pego algumas folhas em branco.
O lápis faz uns giros semânticos...
Brotam do desespero tático sons e signos.
Mares de imagens.
Ah, com que código arrancar-lhes a língua,
Como ser Eco sem remorsos?
Dize-me, ó Instante!
Basta escrever-me em teu ser?
E, entre recusas e folhas amassadas,
Entre rimas e ritmos arremessados ao longe,
Como se pedissem socorro para um nome,
Entre rabiscos, rasuras e tentativas nulas,
Eis que a Poesia, sem pressa,
Como se somente restasse esta voz perplexa,
Por ele, por ela, pela vida, pelos deuses, pelo tempo,
Responde:
"Ah, quanto te amo, poeta!"

Adriano Nunes

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Adriano Nunes: "A velha" - para a minha mãe"

 "A velha" - para a minha mãe


A velha levanta cedo
Como se já nenhum medo
Tivesse da astuta morte.
Sempre lhe se faz mais forte.
Às vezes, cansada, vem
À porta ver se ninguém
Espera o seu sol lá fora.
E o que se foi rememora.
O imaginar lento, leve,
Persegue a vida, não deve
Explicações às pessoas.
As ilusões soam boas.
Também não para. Sente
Que o porvir ser pode ausente
A qualquer momento. Poda
A ambiguidade da moda,
À rotina do lar cede.
Cose, cozinha, pede
Que rezem, cuidem-se, a todos,
Com os seus típicos modos.
Outras vezes, bem se atreve
A duvidar que até breve
Seja o existir. Dá-se logo
A pôr comida no fogo,
Brincar com netos, tecer
Mil planos para aquecer
O cerne de cada hora,
Sem receios, sem demora.
Deixa a torneira escorrendo,
Acesa a luz, como adendo.
Nas pernas pomadas põe.
Nunca as dores mais expõe.
Cantar ama. Bulas lê,
Vê novelas na tevê
Da sala, não se acomoda.
Tédio jamais a incomoda.
Ri como quem sabe além
Das coisas que são, mas sem
Outra intenção. Tão disposta
A tudo, no amor aposta.

Adriano Nunes

domingo, 23 de agosto de 2020

Adriano Nunes: "Brazillness"

                                                                    Brazillness





quarta-feira, 29 de julho de 2020

Adriano Nunes: "Cânone mínimo"

"Cânone mínimo"


Volto a Voltaire
E depois parto
Para Pasárgada.
Pouco me importa
Que dê em nada.
Que puis-je faire?

De gole em gole,
Gullar engulo.
De pulo em pulo,
Alcanço os Paulos,
Jorges, Joãos,
Sem queixas, juro.

Cecília, Emily,
Ana, Sophia,
Florbela, Safo,
E mais poetas
Fazem meu dia!
Vale o Vallias.

Rumino os russos.
Já com Drummond
Tranquilo durmo
Um sono grego,
Meio moderno.
Lê-los? tão bom!

Augusto, Arnaldo
E os concretistas:
Lindos seus livros!
Atiro ao Inferno
O Dante mesmo
Mal traduzido.

Melhor Cervantes
Antes que isso
Tudo termine.
E numa boa
Amo Pessoa.
O pensar voa!

O mestre Whitman
Também me instiga.
E quase até
Já Baudelaire
Esqueço a esmo!
Que fatal erro!

Logo me agrego
Mais aos latinos,
De versos finos.
Antonio Cicero
Está comigo
Desde o princípio.

De Goethe, gosto
Muito, e me assanha
Tanto Montaigne -
Fico até tonto!
A lista é longa,
A vida é breve.

Dou-me a sonhos?
Huidobro em dobro.
Tudo é íntimo,
Mundos sem fim.
Sigo seguindo,
Em mim, Secchin.

E só com esses,
E alguns ingleses,
Outros franceses,
Sem interesses,
Em verso, exponho
Cânone mínimo.


Adriano Nunes

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Adriano Nunes: "Ode to George Floyd"

"Ode to George Floyd"


George Floyd was murdered
As have been murdered
Black people since the century
When white european people forged the discovery
Of a brand new world,

- We share his distressing shortness of breath!
We still feel the weight of that inhuman knee on his neck!
Dying is so fast! -

Since the white murderous machine
Thought, through his gears,
That can decide who will live, who will die.
And, since then, black people have been murdered.
George Floyd was murdered

- We share his distressing shortness of breath!
We still feel the weight of that inhuman knee on his neck!
Dying is so fast! -

Under the view of many people,
As black men were whipped to death,
Enslaved in America.
His pleas were useless.
His supplications were ignored.

- We share his distressing shortness of breath!
We still feel the weight of that inhuman knee on his neck!
Dying is so fast! -

He was not breathing.
The human requests from others were despised.
George Floyd was out of breath.
The white murderous machine has no ears for black people.
The white murderous machine has no eyes for black people.

- We share his distressing shortness of breath!
We still feel the weight of that inhuman knee on his neck!
Dying is so fast! -

The white murderous machine has no limits
To dictate its cowardly and cruel rules
Against black people.
The white murderous machine always has new oil for its parts, pulleys, wires, hands, revolvers, truncheons, automatic pistols, feet, and its knees.
The white murderous machine has always updated revisions and warranty ad infinitum.

- We share his distressing shortness of breath!
We still feel the weight of that inhuman knee on his neck!
Dying is so fast! -

The white murderous machine has the legitimacy of many white people to be their white murderous machine.
It just forgot one important detail:
We have the strength to revive George Floyd.
We have the power to bring to the memory of the world
That we will no longer accept that other identical barbarities happen.

- We share his distressing shortness of breath!
We still feel the weight of that inhuman knee on his neck!
Dying is so fast! -

We know its failure.
We have eyes, ears, mouths, hands, feet, mind, blood,
And a myriad of tools and weapons
To destroy its dismal machinery.
George Floyd will breathe again, alive, very alive!


Adriano Nunes

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Adriano Nunes: "a sua"

"a sua"


a metade
do meu coração
que é minha.


a metade.
a meta.
a me a
- me


tá fora
desta ilusão
que me aninha.




Adriano Nunes

Adriano Nunes: "Era pra ser um soneto, perdão, mãe!"

"Era pra ser um soneto, perdão, mãe!"


Tudo mesmo difícil neste tempo
Estranhíssimo e obscuro. Nada temes,
Eu sei. Manténs-te atenta e até contente,
Ainda que pareças estar presa
Ao próprio lar, à vida que te resta.
Por telefone, alcanças teus parentes
Mais distantes, ausentes. Na tevê
Vês que estamos num barco sem os lemes,
Um barco já furado. Não tens pressa.
As notícias ruins já não te cegam.
Ah, mãe, doce mamãe! Tudo está tenso
Lá fora, nas cidades e fazendas,
Nas vilas e favelas, nos grãs centros
Urbanos, nas moradas dos colegas
E de amigos, nos postos e nos prédios!
Idêntico a um imenso pesadelo
Em que o começo assombra por inteiro.
Imaginei fazer outro soneto
Para ti, porém vi que todo verso
Não se mais ajustava, fixo e hermético,
Queria ainda espaço e movimento.
O teu aniversário, hoje, bem
Na grave pandemia. Que presente
Dar-te, sem esse medo de não ter
Como feliz fazer-te? Com que métrica
Perfeita decantar este portento
De luz e gratidão, em meio às trevas?
Ou com qual decassílabo sedento
De alívio e de saída dar-te a estética
Liberdade do amor? Quem sabe esta
Tentativa de ver-te sorrir, sempre,
Este vasto desejo, com prazer,
De ofertar-te minh'arte, o meu mais ser,
Como um abraço e um beijo, sem receios,
Dos que são teus. Então, eis o que peço
Ao devir, à existência: que a dor cesse,
Que o vírus destruído agora seja,
Que ninguém adoeça mais e que
Qualquer aniversário volte a ter
Festas, alegre gente, até presentes!
Ah, mãe, doce mamãe! Tudo está tétrico
Lá longe, em emergências e, aqui, dentro,
Nas orlas e alamedas, e nas praças
Do Brasil, nas estradas, nos colégios,
Nas igrejas, nos cines e nos templos!
Sim, parece um terrível pesadelo
Em que o desfecho assusta por completo.


Adriano Nunes

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Adriano Nunes: "Fluir" - para Chico César

"Fluir" - para Chico César


Um rio corre dentro do que sou,
E o que penso já ser é um outro rio.
Fluir é o próprio fim. E me inebrio
Do devir, do passar, do que cessou.

Corro em mim, para dentro e exterior,
Ousando o igual não ser, por ser só rio.
No fundo, areia e seixo, um arredio
Insólito mudar-se, mesmo humor.

Somente o relembrar é foz, semente.
Corto e curto cidades de passagem.
Miragens em meu ser mais interagem.

O sol alto, tão solto, transparente
Faz-me. À noite, o luar se vê na lente.
E os que adentram em mim sequer me sabem.


Adriano Nunes

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Adriano Nunes: "Bolsa de Valores"

"Bolsa de Valores"


O preço da gasolina
É alto
O preço do gás de casa
É alto
O rol de desempregados
É alto
O grau do analfabetismo
É alto
O total de femicídios
É alto
O registro de racismos
É alto
O rol de desabrigados
É alto
O indicador de miséria
É alto
O valor do dólar, euro,
É alto
O preço da cesta básica
É alto
O cômputo dos contágios
É alto
O número de fanáticos
É alto
O quantum de presos pobres
É alto
O de crimes recorrentes
É alto
O de abusos e de estupros
É alto
O número de políticos
É alto
O rol de seus privilégios
É alto
O índice de inflação
É alto
O total já desmatado
É alto
O rol de gente doente
É alto
O nível do Presidente
É baixo


Adriano Nunes

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Adriano Nunes: "A Guerra"

"A Guerra"


Quando a Guerra começou,
Éramos indiferentes
A ela. Bombas, projéteis
Não nos alcançavam. Víamos
O instante com a suspeita
Dócil de que, logo, logo,
Seríamos, pelo óbvio,
Sugados. Porque afirmavam
Que, lá para o leste, corpos
E corpos se amontoavam
Sobre montanhas e vales.
As cidades já ruínas.
Mortos e mortos e mortos
Enchiam campos e ruas.
Cidades viravam túmulos
De tudo por tudo ser.
Depois, de algum tempo, voos
Metálicos atiraram,
De cima a baixo, a Surpresa
Trágica, de estrondos cheia,
A destruição sem medida.
E muitos corpos e corpos
E trapos, troços, destroços
E farrapos modelavam
A vida, em si já ferida,
Acumulavam-se em toda
Direção. Sequer sabíamos
Por que isto acontecia,
Por que foi preciso, assim,
Acontecer a chegada
Do deus Marte: vácuo e nada!
Até hoje ninguém mesmo
Sabe. Não, ninguém não sabe!
Mesmo que somem cadáveres!
Mesmo que sangrem destroços!
Mas naquela tarde em que
A prima bomba caiu
Sobre nós, mais percebemos
A irracionalidade
Feroz dos tais semelhantes.
Desses forjados sob leis
Dos Eus, pertencentes à
Essa espécie animalesca
Que na Terra habita e, vez
Ou outra, até tem bons modos,
Sorri, canta, filosofa,
Faz poemas. Põe-se à prova.
Restaram coisas inúmeras.
Muita coisa se foi cedo.
Quando a Guerra começou,
Desesperado o Amor foi-se,
Escondeu-se na caverna
Escura do medo. Fera
Coagida, ameaçada,
Não queria mesmo ver
Que tinha falhado, que
Em vão lançou suas flechas.
O que, máxime, importava?
Quanta gente se foi mesmo!
As existências perplexas
Assombra o Horror. Essa Guerra!
O Horror! O Horror! Toda Guerra!
Oh, destroços da Esperança!
Oh, verve vital da Dor!


Adriano Nunes