As chegadas e partidas da vida

 



Eu não sei se já li em algum lugar ou se acordei com essa afirmação na cabeça: a vida é uma estação de trem. Pessoas chegam e partem em todas as fases da nossa vida.

Cada vagão é uma etapa vencida ou concluída. Do vagão da minha infância lembro-me muito pouco. Lembro-me da minha primeira amizade, a avó dela era amiga da minha avó e brincávamos sempre. Depois começamos a estudar na mesma escola e mesma sala. Por eu ter sido uma criança mais tímida, conheci a diretora primeiro que todo mundo. Ela se preocupava por eu me excluir de qualquer atividade que envolvesse muita gente. Me lembro dos balanços, escorregador e de como era a sala e a professora. A minha avó Maria me buscava sempre na escola e me dava balas chita. Infelizmente ela faleceu pouco tempo depois. Me lembro do meu pai e um tio brincarem comigo em um colchão enquanto a minha mãe fazia o jantar. Me lembro de brigar com um primo pra ele me emprestar os brinquedos de homem dele e da irmã dele ter que cuidar da gente. Coitada!

No vagão da adolescência me lembro do meu primeiro porre e da minha mãe ter que me dar diversos banhos e ter que trocar roupas de cama. Eu não tinha nenhum juízo nessa época. Lembro-me de vizinhas que se tornaram colegas de saídas, de voltas na pracinha da matriz e de idas a única boate do distrito.

Tem o pior acontecimento que foi nessa época, mas que não vou falar sobre para não estragar o texto.

Eu conheci quem eu considero a melhor amiga, conheci quem eu admirava a beleza e passei a admirar também o coração, conheci pessoas que eram o oposto de mim. Com elas fui à festas, barzinhos, cinema em casa, mas eu me sentia um patinho feio. Metade deste vagão se rompeu. Os passageiros se foram e permaneceram os que estão em todos os próximos vagões. A que eu admirava a beleza permanece somente no coração, não mais na presença. Carrego comigo erros e aprendizados dessa época.

No vagão do início da vida adulta eu me senti um pouco perdida. Quis cursar ciências biológicas porque havia amado os laboratórios, mas acabei me acomodando e fui trabalhar em uma fábrica de fogos, por o meu meu ser o chefe, eu me sentia melhor que todo mundo e já tinha minhas companheiras ansiedade e epilepsia. Lembro--me de várias vezes desmaiar lá, não sei se foi por isso, mas trabalhei lá só por dois anos. Um dia o meu joelho resolveu dar pt e eu tive que fazer fisioterapia e pilates, nesse processo conheci pessoas algodão, aquelas que com um sopro vão embora. Não me lembro muito bem de outros acontecimentos.

No vagão da vida já adulta mesmo, em que eu já sabia o que queria para o meu futuro e vida toda:  jornalismo, eu prestei vestibular em Divinópolis, passei, mas não formou turma. Me ligaram da secretaria para me perguntar se eu queria ir para o curso de publicidade e propaganda e eu foi sem pensar em nada. No início recebi tantos elogios dos professores que meu ego inflou até que a turma toda não gostasse de mim. Lembro-me de quando um professor mandou escrever uma propaganda de shampoo e quando eu entreguei a minha contendo uma lauda, ele me disse que o meu destino mesmo era o jornalismo. Então formou-se uma turma de jornalismo, as tentativas de transferência foram muitas e frustantes, até que um dia a coordenadora do curso conseguiu. Eu entrei no jonalismo no segundo período deles e no quarto meu de publicidade. Eu já sou tímida e fiquei ainda mais, com o tempo comecei a conversar com algumas pessoas, outras eu só respondia. Da minha turma de jornalismo eu guardo com amor e carinho três pessoas. Tem outras pessoas que eu gostaria de ter guardado, mas elas resolveram ser só passagem na minha vida.

Por eu estagiar na universidade eu conheci gente de diversos cursos, mas principalmente de história e psicologia. Quando ocupamos a universidade foi que eu sai da minha bolha e conheci os mais diversos perfis de pessoas lutando pelo mesmo objetivo. E a responsabilidade de registrar os mínimos detalhes me renderam fotos lindas. Devo isso a professora que confiou totalmente em mim do início ao fim, que guardo do lado esquerdo do peito e morro de saudades, mesmo tendo contato diário. A professora de psicologia que foi minha terapeuta por quase quatro anos hoje se tornou amiga. Mas o que falar sobre todas as outras pessoas que passaram pela minha vida?

Das minha calouras que moraram comigo: uma foi foguete, a outra toda nerd partiu depois de ter me apoiado e ter presenciado um momento importante que foi o meu TCC. Guardo as melhores lembranças, mas foi escolha dela partir sem dizer o motivo. A outra é uma irmã de cor toda sorridente e good vibes. Eu amei fotografá-la e amo ver que ela está feliz com as suas escolhas. Das calouras que não moraram comigo mas que tivemos convivência: tem uma baixinha da capital que me cativou totalmente.

As meninas da psicologia, como eu amava ir para o universitário beber e filosofar a vida, problematizá- la. Não é à toa que eu cursei duas disciplinas de psicanálise. Quando eu me formei fui eu quem saiu da vida delas, mas guardo comigo todos os momentos.

Sobre o menino da psicologia: eu amava sentar e conversar, ver ele analisando minhas atitudes e dizer as palavras mais certeiras, mas me perdi entre fantasia e realidade e ele partiu por um erro meu. Sinto saudades dos conselhos.

O pessoal da história me lembro de quando íamos para o bar e geral viajava nos assuntos e risadas. Foi a vida que nós fez partir.

Tem a professora que foi amiga, confidente e hoje partiu por sei lá, talvez por não gostar de coisas que eu faça ou falo ou pelo momento em que todo o mundo está vivendo, e ela em uma eterna onda roxa desde que começou a pandemia, se afastou de mim e de quase todo mundo, talvez foi isso.

Tem as amizades virtuais que me apoiam e ajudam bastante que eu espero que não partam. Uma delas já conheci pessoalmente e é um amor de pessoa assim como atrás de telas.

Tem a super amiga da UFSJ que de tão diferentes que somos, hoje não nos largamos mais.

Tem as pessoas dente-de-leão: essas fizeram chacota de mim, duvidaram da minha capacidade e com meio sopro se foram.

No vagão de 2021: Tem sonhos perdidos, tem angústias, desesperança, raiva de fascista, raiva de preconceito, raiva da desigualdade social e do capitalismo. Tem sede de justiça, mesmo sabendo que sozinha eu sou só uma gota no oceano, quem quiser vir comigo e virar pelo menos uma praia, acho que da pra lutar.

Eu não falei da minha mãe por ainda doer demais e nem de familiares, porque acredito que tem um trem separado para isso.

Enfim, chegadas e partidas que se eternizaram na memória.

Mari Ferrer: Não há vacina que cure a epidemia da injustiça brasileira




 Eu preferiria mil vezes que este texto fosse uma carta de amor ou até mesmo de amizade, mas não, a injustiça brasileira só permitiu que fosse uma carta de uma vitima de estupro para outra vitima.

Ah, Mari, eu sei muito bem o que é ser dopada  e depois perder a virgindade num estupro. Mas eu não sei, por exemplo, o que é ter "amigas" que ajudaram a me dopar e a me levar para o local do crime. |Eu não sei o que é enfrentar um exame de corpo delito e nem responder mil perguntas do delegado. Eu não sei o que é enfrentar julgamentos na vara criminal, não sei também o que é expor o estupro e toda a dor que vem com ele para mundo. Não sei o que é ter provas alteradas e nem tenho corpo padrão para ser influencer, sou apenas uma jornalista que se arrisca na literatura ou o contrário. Você resolveu dar o grito depois de alguns meses do crime, o meu grito só ecoou após dez anos do acontecido.

Quando eu conheci a sua história, eu tive vários gatilhos, mas me vi na obrigação de tentar te ajudar de alguma forma. Procurei-te dizendo que queria entrevistá-la e contei que seria publicada por uma jornalista já famosa, a então Daniela Arbex, você me disse que estava esgotada mentalmente e que não conseguiria, mas que tinha todas as informações no seu instagram. Confesso que li e reli várias vezes, e cheguei à conclusão de que não poderia te ajudar dessa forma porque os meus gatilhos estavam fortes demais. Senti-me fraca, mas tudo que você pedia no Twitter ou instagram eu fazia. Lembro-me que em uma conversa com uma amiga da área de humanas, eu disse a ela que  achava difícil um monstro branco e rico ser julgado, mas que pelas provas cogitava que ele pegaria uma pena mínima. Ai ontem à tarde veio à notícia de que André Aranha de Camargo tinha sido absolvido por falta de provas. O quê esse juiz tem na cabeça, além do machismo nosso de cada dia? O sêmen encontrado na sua calcinha era do Aranha, houve rompimento do hímen, houve sangue e roupas rasgadas, houve vídeos, conversas e fotos. O que seria prova para esse juiz? Ah, me lembrei, estamos falando da elite brasileira e pressuponho que elite ajuda a elite. Coitada da classe média alta que pensa fazer parte da elite, mas isso é assunto para outro texto ou outra carta.

Posso te chamar de Mari? Deixa eu te contar algumas coisas, Mari. Sabe essa sensação de que está suja que está sempre presente? Um dia ela irá passar. Sabe essa culpa que não é sua que você sente? Também irá passar. Sabe os sonhos que você acha que não terá mais? Eles irão voltar. Você sempre terá gatilhos e flashs de memória do crime, mas com o tempo ficarão mais leves. E se eu puder lhe dar um conselho: faça psicoterapia, ela ajuda a encontrarmos um norte quando tudo está escuro igual ontem, hoje, amanhã... Enfim: viva, mesmo quando a vontade for de morrer. As mulheres do Brasil estão todas com você. Fique firme, no seu tempo. Admiro-te!