Estranha afirmação esta vinda de alguém que dedica muito do seu pouco
tempo livre à pesca.
Então afinal sou o quê?
Porque é que continuo a pescar?
O que é me move e motiva?
No já longinquo ano de 1970, então com 15 anos de idade, matei a primeira peça de caça grossa em Moçamendes - Angola, numa fazenda chamada Tampa mesmo no sopé da Serra da Chela, onde terminava o asfalto e começava a picada serra acima a caminho de Sá da Bandeira.
Escondidos numa "mutala", abrigo feito de pedras e ramagem de espinheiro, no alto de um cabeço cerca de 100 metros sobranceiro a uma pequena nascente de água lá em baixo no vale, aguardávamos em silêncio absoluto há mais de 3 horas que as zebras descessem ao pôr do Sol pela encosta em frente para se dessedentarem. Era a minha primeira caçada a sério, antes disso tinha ido algumas vezes ás Impalas e ás Gazelas.
Eis que de repente e parecendo surgido do nada, um imponente macho se perfila lá do outro lado já a meio da encosta. Nem o tínhamos visto no alto cabeço oposto pois tinha descido vagarosamente e sempre camuflado com as matas dispersas de espinheiros. Dava uns passos vagarosos, parava, cheirava o ar, o vento estava nas nossas costas, mordiscava algumas ervas do chão, dava mais uns passos em direcção á água. Era o macho dominante da pequena manada e que primeiro se vinha certificar de que não haveria perigo, para depois e só então descerem as restantes.
Mais uma hora se passou neste lento caminhar em direcção à armadilha que lhe estava montada. Finalmente e a cerca de 5 metros da pequena nascente de cerca de 4 metros quadrados cuja água corria uns metros para desaparecer misteriosamente na terra ressequida, parou, cheirou de novo o ar em todas as direcções com o garrote bem levantado, "ladrou" (o relinchar das zebras faz de certa forma lembrar latidos de cão) avançou então para a água. O resto da manada apareceu e começou a descer a trote largo. Deviam estar sedentas.
Como me tinham ensinado e recomendado veementemente, deveria esperar até que o animal baixasse a cabeça, começando a beber. é nesta altura que as suas defesas naturais ficam mais frágeis, em que a tensão se iria aliviar um pouco. E assim fiz, a bala da .370 Magnum já estava na câmara e o travão estava solto. Apontei à espádua, respirei fundo, expeli lentamente o ar dos pulmões, tirei a folga ao gatilho e fiz o tiro.
A emoção era tanta que nem olhei para o meu alvo, culatra atrás nova bala na câmara e cano em direcção á manada que já fugia, quando uma mão me baixou a cano da arma e um ríspido "NÃO" me acordou de repente.
Ouvi então a voz calma do meu pai "chega Luís, uma zebra de cada vez é mais do que o suficiente para um bom dia de caça. Deixa as outras ir, outros dias haverão".
O eco do tiro na encosta oposta á nossa tinha enganado a manada fazendo-a fugir encosta acima na nossa direcção. eram cerca de 12, fêmeas, 3 crias, e alguns machos ainda muito novos que passaram a galope rasgado a cerca de 10 metros de nós. Recordo o medo vidrado naqueles olhos enormes e negros, húmidos e brilhantes.
Só então olhei para a peça a que disparara. Lá estava caída no mesmo local onde há segundos atrás bebia água. Tinha sido um tiro "limpo" ao coração como mais tarde se verificou quando foi esquartejada. Morte instântania. Tinha aprendido bem as lições que me deram.
E também aprendi para o resto da vida mais esta lição que o meu pai me tinha dado. Não deixar nunca que um momento culminante de um desporto em que se ceifam vidas e que se quer de êxtase, de clímax, de satisfação e respeito por uma vida que tiramos, se transforme em sofreguidão, em cego massacre, em irracionalidade.
E a partir daí nunca mais fui um caçador. E a partir daí nunca mais fui um pescador.
Cresci, fiz-me homem, continuei a caçar durante muitos anos, continuo a pescar, mas nunca mais como caçador ou pescador.
Sou um desportista. E é isso que quero continuar a ser a bem dos meus principios, da minha ética e do meu respeito e admiração por tudo o que está vivo.
Porque me dá um prazer infinito lutar e cobrar um animal ao qual dou as mesmas possibilidades que eu tenho.
Porque o que me motiva é a satisfação das horas passadas a cuidar e preparar o material, a preparação e antecipação da pescaria que se avizinha, a solidão e grandeza do mar, a paz e tranquilidade da Natureza, o novo alento que um dia destes induz naqueles que se seguem.
Para quem entender a pesca desportiva como o simples acto de retirar peixes do mar, então não sou um pescador. Pescar para mim é um desporto, não um simples acto de acumular grandes ou pequenas quantidades de peixe. Aliás a quantificação do resultado de uma pescaria, é um exercício irrelevante para mim. A minha valoração de uma pescaria é efectuada pelo exemplar que cobro com uma "canita" fininha e frágil, uma linha também ela fina, uma luta com o animal em que as probabilidades de sucesso estejam divididas em partes iguais entre o homem e o animal.
Quantas e quantas vezes ao final de cada sessão infrutífera de pesca, tantas horas a lançar e recolher, a experimentar, a inventar, com os braços a doer e as costas cheias de dores, a minha alegria e o meu sorriso são os mesmos que os daqueles dias em que carrego ás costas 2 ou 3 bons exemplares, são os mesmo em que começando a pescar ás 6 da manhã, às 8 vou-me embora porque já tenho a minha conta.
E a todos os peixes que fugiram, que se desferraram mesmo ali, aos que afugentaram todos os outros do pesqueiro na sua luta pela vida, aos que desconfiaram e não atacaram a amostra, que continuem a nadar livres e selvagens até á próxima ocasião em que se cruzem com o caminho das minhas amostras.