O ZELADOR: Selton Mello recria Harold Pinter
Quantos são os atores nesse país, quantos os profissionais, ou os advindos de uma formação acadêmica? E nesse funil desesperador, quantos os que estão em cartaz? Pior, dentre esses, quais os conhecidos do grande público? Poucos, muito menos do compreensível, mesmo em um país onde a Cultura é supérfluo e passatempo esporádico.
Este ano bem começou e fui assistir a um desses tidos por privilegiados. Peça: O Zelador, de Harold Pinter. Ator: Selton Mello.
O que conheço de ambos? Bom, que Selton vagueia pela televisão, cinema e teatro, com uma qualidade excepcional; que conta com uma unanimidade em todas as camadas e circuitos. Harold, inglês, vencedor do Prêmio Nobel em 2005; ativista acirrado contra as políticas de guerra; um dos dramaturgos responsáveis pela construção e reinvenção da linguagem cênica no século xx. É pouco, e suficiente para interessar.
Do lado de fora do Teatro Folha, não reconheço o público. Lotado. E sem os costumeiros rostos circulantes pelos teatros. Idades variadas. Nitidamente, o que trazia as mais de duzentas pessoas àquela noite ao teatro, era o famosíssimo ator de novelas. Ironia, pois o que Selton mostra no palco é arriscado, pouco digerível e capaz de levar as senhoras e seus insuportáveis saquinhos de jujuba ao arrependimento tardio.
O que faz Selton especial é a maturidade com que se coloca em perigo, a coerência no se mostrar artista. Em O Zelador, a atuação foge do naturalismo televisivo em busca de outras possibilidades. A primeira direção de Michel Bercovitch deixa claro o acerto pela aproximação da linguagem com a história em quadrinho. Mas ainda vemos Selton em cena, apropriando-se da platéia com o carisma de quem sabe o que faz. E ao assistir o espetáculo, duas são as conclusões: Selton se presta ao melhor de Pinter tanto quanto Pinter a seu talento, descobrindo capacidades na dramaturgia, incorporando a retórica imaginativa ao corpo, ao movimento imprevisível, arrancando sorrisos de um público pouco interessado em profundidade, mas absorto e entregue à reflexão.
A segunda conclusão é que Selton inventara uma interpretação de si mesmo, volúvel, desrespeitosa ao seu histórico e por isso eficiente e magistral. E consegue nos apresentar os galãs de novelas passadas, os personagens mais profundos do cinema, ao mesmo tempo em que reconhecemos a fala de Pinter e sua criação. Estão todos lá, unidos na característica de serem igualmente partes do mesmo criador.
Voltando à indagação inicial, milhares são os atores espalhados por aí... Selton é, contudo, único. Porque sua força está em ser apenas ele mesmo, com a consistência de quem sabe construir e identificar o seu momento, para levar ao teatro um público incomum que certamente não iria, não fosse ele Selton Mello. Haja responsabilidade. O que não parece ser para ele problema algum. Pena serem tão poucos os jovens artistas interessados em "ser responsável"...
Quisera Pinter estivesse aqui para assisti-lo. Ambos mereceriam esta provocação do destino.
FERREIRA GULLAR vs GILBERTO GIL: a cultura que “kayu n’gan daya” revelada em outras notas
Pode ser certa ingenuidade minha, ou falta de idade que me possibilitasse ter vivenciado os anos 60/70, de qualquer maneira entre Ferreira Gulllar e Gilberto Gil fico com o poeta, sem medo de errar. Há no histórico de Gullar tudo o que almejam novos artistas e ativistas culturais, acrescentados ainda os valores de intelectualidade e capacidade de criação reflexiva. Já em Gil, um certo obscurantismo de seu raciocínio e uma farta associação com o interesse imediato pelo sucesso. Mas não estou aqui para julgar e confrontar talentos. Tanto a palavra de Gullar quanto a melodia de Gil têm suas importâncias na construção de nossa cultura. Maiores e menores...
Mas quando Ferreira Gullar critica o Ministério da Cultura atribuindo-o o adjetivo ‘centralizador’, e Caetano Veloso responde, acrescentando à lista que se forma às declarações de ambos os lados, o de ‘totalitarista’, o que me vem à cabeça é: o que está afinal acontecendo com a administração da Cultura brasileira?
Pela internet recebo informativos de prós-governistas onde assinaturas circulam virtualmente contendo centenas de defensores de Sá Leitão. Pelos jornais a discussão volta aos grandes nomes do nosso círculo cultural. Obviamente. Pois, diferentemente da internet, interessam à mídia os rótulos e o apego ao polêmico. O que neste caso é bem-vindo. Gosto de ouvir o que Caetano, Gullar, Fernanda Montenegro, Cacá Diegues têm a dizer sobre isso.
Pois bem, junto-me a estes. Eu, anônimo de revistas e outdoors.
Na construção de uma política pública o objetivo se prioriza em conseguir o impossível: atingir a todos em condições favoráveis e igualitárias. Evidentemente uma utopia, mas ponto inicial para a reflexão sobre qualquer ação que se propõe democratizante.
O Ministério da Cultura, na gestão de Gilberto Gil, insistentemente enfrenta acusações como as que ocorrem nesse momento, e se defende atribuindo a infelicidade dos ataques ao fato de estar desconstruindo uma prática protecionista direcionada aos artistas elitizados.
Há aí um pequeno engodo a ser escancarado. A existência de uma elite cultural que usufrui os poderes políticos por suas entranhas é um fato. Os recursos são evidentemente distribuídos aos mais influentes, basta listar os espetáculos, as exposições, os shows e filmes realizados na última década com apoio do Ministério da Cultura.
Contudo, muitos desses artistas não merecem ser encarado como meros protegidos. É preciso assumir também que a dita elite se fez assim por ser sobretudo os pilares da Cultura moderna brasileira. Foram esses os nomes que enfrentaram com suas criações os cacetetes da Ditadura, as vilas estranhas dos exílios, as crises financeiras de Sarney, a destruição da cultura determinada por Collor, a política neoliberal de FHC, e, por que não, também o partidarismo ególatra de uma administração pelo poder qual se revela a presidência petista.
Quando Sá Leitão define Gullar como stalinista, se refere a o que? Ao passado de luta? Ao confronto com as políticas estabelecidas durantes as últimas cinco décadas? Ao idealismo esquerdista? E o que é o Governo em questão se não um partido fundado sobre os mesmos aspectos? O estranho nisso é ver hoje esses artistas e intelectuais distantes de um governo que se propôs transformador! Sá Leitão é apenas um funcionário do Ministério. Não é Gil, e não deve ser crucificado por tentar defender em desespero o que não tem como ser defendido.
Quando Gilberto Gil assumiu o Ministério da Cultura, dois já eram os fatos que demonstravam ser sua nomeação um enorme equívoco: o questionamento em entrevista às redes televisivas de que o salário inicial de 8 mil reais não eram suficientes para manter sua qualidade de vida, e a contratação do show de Gil para a posse do Presidente com dinheiro do próprio MinC, liberado pelo então novo ministro. Sua primeira assinatura no trabalho.
Em um país onde a miséria se manifesta em todas as esquinas e semáforos, um ídolo da massa não pode irresponsavelmente, por ser exemplo de pensamento e comportamento, afirmar que o salário é pouco. Sobretudo por se tratar de um cargo cuja participação, espera-se, ocorra por vontade de ajudar a nação e não por interesse financeiro. Imagino o fã de Gil ouvi-lo dizer o que disse, e então buscando seu salário de 200 e pouco reais... Falta de percepção e responsabilidade humana. Talvez não haja definição competente para tal comportamento.
Ainda assim, lá vai Gilberto Gil para o Planalto, agregando seus dotes ao governo que se iniciava. Mas confesso ter ficado constrangido por saber que o Ministro pagava seu próprio show. Que o artista deve ser pago, é obvio. Porém, neste caso, a ética se contorce, e alguns milhares de reais do dinheiro público migram para o bolso do artista. Ou Ministro? Com o passar dos anos, as duas profissões de Gil têm se confundido cada vez mais.
Enfim, o que dizer de Gil à frente do Ministério da Cultura? Que infelizmente é outro político como tantos que nessa cadeira já sentaram, retórico, ineficiente, ausente. E sobre o artista? Bom, este não existe mais. Não se pode considerar artista alguém que não possui responsabilidade humana e valores éticos.
Se Gullar e todos os que assinaram contra Sá Leitão não passam de uma elite que perdera seus privilégios e por isso gritam, então Gilberto Gil deveria ser deposto de seu trono por se apropriar da máquina administrativa federal para se estabelecer pelo mundo afora, desfavorecendo outros e determinando sua música como representação maior de toda uma cultura híbrida aleijada de real reconhecimento.
Se a proposta do Governo é desfavorecer aqueles que se apóiam na suas forças políticas para se sobressair, então Gil ser ministro é mais uma das incoerências do governo Lula. Ou pior, apenas outra estratégia de marketing para se aproximar e convencer a camada de eleitores mais popular.
Enquanto não se tira Gilberto Gil de Brasília (e sabemos que não se tirará), então que ao menos o Governo deixe Gullar falar o que quiser. É o mínimo do suportável nessa hipocrisia toda, enquanto a Cultura continua a espera de ínfimas migalhas.
Fotomontagem: trechos do poema Homem Sentado, de Ferreira Gullar, retirado do site http://portalliteral.terra.com.br/ferreira_gullar/