31.3.21
Conversa de Antonio Cicero com Luís Caetano sobre poesia e filosofia
28.3.21
Carlos Cardoso: "Espanto"
Espanto
Releio os meus versos
e me aterrorizo com o que faço.
Como pude escrevê-los?
Como me deixei expor
como um quadro na parede
em diferentes formas de estar ali
no plano
e sublinhado por tudo que é subjetivo?
Vontade de voltar a ser criança
e brincar de pique-esconde e lambuzar-me
de mariola e rapadura derretida,
por baixo da cama
jogar as folhas de papel,
doar minha lapiseira
a uma entidade filantrópica
e guardar tudo que sou,
deixar os meus rastros contados,
fotografados e mostrados
somente para minha memória,
e no espanto me desintegrar.
CARDOSO, Carlos. "Espanto". In:_____. Melancolia. Rio de Janeiro: Record, 2019.
26.3.21
Friedrich Hölderlin: "Buonaparte": trad. Antonio Cicero
Buonaparte
Vasos sagrados são os poetas,
Onde o vinho da vida, o espírito
Dos heróis se conserva;
O espírito desse jovem, porém,
Tão rápido, como não quebraria
Se o quisesse prender, o vaso?
Que o poeta o deixe intacto como o espírito da natureza,
Em tal matéria torna-se aprendiz o mestre.
No poema ele não pode viver e ficar:
Ele vive e fica no mundo.
Buonaparte
Heilige Gefäße sind die Dichter,
Worin des Lebens Wein, der Geist
Der Helden, sich aufbewahrt,
Aber der Geist dieses Jünglings,
Der schnelle, müßt er es nicht zersprengen,
Wo es ihn fassen wollte, das Gefäß?
Der Dichter laß ihn unberührt wie den Geist der Natur,
An solchem Stoffe wird zum Knaben der Meister.
Er kann im Gedichte nicht leben und bleiben,
Er lebt und bleibt in der Welt.
HÖLDERLIN, Friedrich „Buonaparte“. In:_____. Sämtliche Werke und Briefe.Vol.1. München: Carl Hanser Verlag, 1970,.
24.3.21
Mário Quintana: "LXXIII Da Realidade"
LXXIII Da Realidade
O sumo bem só no ideal perdura...
Ah! quanta vez a vida nos revela
Que "a saudade da amada criatura"
É bem melhor do que a presença dela...
QUINTANA, Mário. "LXXIII Da Realidade" In: MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dos textos. São Paulo: Cultrix, 2012.
22.3.21
Antonio Cicero: "O Livro de Sombras de Luciano Figueiredo"
O livro de sombras de
Luciano Figueiredo
1
Para onde vou, de onde
vim?
Não sei se me acho ou
me extravio.
Ariadne não fia o seu
fio
à frente, mas sim atrás
de mim.
Não será a saída um
desvio
e o caminho o
verdadeiro fim ?
2
Não é hora de regressos
Não é hora
3
É certo que me perco em
sombras
e que, isolado em minha
ilha,
já não me atingem as
notícias
dos jornais a falar de
bolsas,
modas, cidades que
soçobram,
crimes, imitações da
vida
ou da morte televisiva,
quadrilhas, teias
penelópicas
de horrores ou de
maravilhas
que dia a dia se
desfiam
e fiam sem princípio ou
fim
novíssimas novas
artísticas,
científicas,
estatísticas...
E há na noite quente um
jasmim.
4
É aqui, mais real que
as notícias, na própria
matéria, na dobradura
de uma folha
em que se refolha este
meu coração
babilônico, na
configuração
da mancha gráfica sobre
a tessitura
do papel tensionado, ou
onde se apura
o lusco- fusco
produzido por linhas
e entrelinhas, entre o
preto e o branco e o cinza,
onde cada ideia, cada
ponto e vírgula
dos trabalhos e das
noites se confunde
com miríades de pontos
de retícula
e meios-tons de clichês,
entre o passado
que jamais está passado
e alguns volumes,
linhas e planos apenas
esboçados,
que súbito os elementos
mais dispersos
se articulam,
claro-escuro filme negro,
entre a pura
matemática, o acaso
e a arte (esta árvore
já foi vestido
de mulher) onde o delírio
é mais preciso,
transparece o meu
jornal imaginário.
5
Para onde vou, de onde
vim?
Não sei se me acho ou
me extravio.
Ariadne não fia o seu
fio
à frente, mas sim atrás
de mim.
Não será a saída um
desvio
E o caminho o verdadeiro fim?
CICERO, Antonio. "O Livro de Sombras de Luciano Figueiredo". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.
20.3.21
Arthur Rimbaud: "Le buffet" / "O armário": trad. de Ivo Barroso
O armário
Grande armário esculpido: o carvalho sombreado,
Muito antigo, adquiriu esse ar de bom dos idosos;
E, aberto, o armário espraia em sua sombra ao lado,
Como um jorro de vinho, odores capitosos;
Repleto, é uma babel de velhas velharias,
Recendentes lençóis encardidos, fustões
De infante ou feminis, as rendas alvadias
E os xales das avós pintados de dragões;
– Em ti podem-se achar os medalhões as mechas,
Os retratos, a flor ressequida que fechas,
Cujo perfume lembra o dos frutos dormidos.
– Ó armário de outrora, as histórias que exortas
E amarias contar, com teus roucos gemidos,
Quando se abrem de leve as tuas negras portas.
18.3.21
Giuseppe Ungaretti: "I ricordi" / "As lembranças": trad. por Geraldo Holanda Cavalcanti
As lembranças
As lembranças, infinito inútil,
Mas sós e unidas contra o mar, intacto
Em meio a estertores infinitos…
O mar,
Voz de uma grandeza livre,
Mas inocência inimiga nas lembranças,
Rápido em apagar as doces pegadas
De um pensamento fiel…
O mar, suas blandícias acidiosas
Quão ferozes e quão, quão esperadas,
E no momento da agonia,Sempre presente, renovada sempre,
No pensamento atento, a agonia…
As lembranças,
Revolver em vão
A areia que se move
Sem pesar sobre a areia,
Breves ecos prolongados,
Mudos, ecos de adeuses
De instantes que pareceram felizes…
16.3.21
Jorge Reis-Sá: "David Bowie [heroes]"
David Bowie
[Heroes]
Não é do pai que falo -- do amigo. Das conversas
que ficaram por cumprir porque a morte se interpôs
e as não permitiu. Do Lancia Delta que eu achava nos
idos anos noventa o carro mais lindo do mundo e que
ele, sapiente, retorquiu numa viagem luminosa
é demasiado semelhante a uma carrinha. O meu pai
não gostava de carrinhas. Mas não é dele que falo –
do amigo. Aquele que à entrada da salinha me via
vibrar como David Bowie a cantar I, I wish you could
swim, like dolphins, like dolphins can swim, vestido
de verde-alface. O David Bowie é o único homem
no mundo a quem um fato verde-alface fica bem.
O meu pai o único que consegue ficar para sempre
à entrada da salinha.
REIS-SÁ, Jorge. "David Bowie [Heroes]". In:_____. Pátio. Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2020.
14.3.21
Antonio Carlos Secchin: Soneto de Lúcia
Soneto de Lúcia
Luzes lançam-se agora na ribalta
Sobre a querida Lúcia, que, no meio
De uma guerra, nos leva a um devaneio:
Sonhar que a vida pode ser mais alta.
Venha ao Leblon, Marcel, chegue, Rimbaud,
Conosco se irmanando nesta ceia.
Nós somos, pois a arte nos salvou,
Ulisses sem naufrágio de sereia.
Vagamos, marinheiros veteranos,
Ainda assim ansiosos na aventura
De renascer além de tantos danos,
Festejando a alegria do que dura.
E, revogadas as leis em contrário,
Um viva à diva, em seu aniversário.
Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 2021
Antonio Carlos Secchin
12.3.21
Bertolt Brecht: "Hier standen die alten Mauren" / "Aqui ficavam os antigos mouros"
Aqui ficavam os antigos mouros
Aqui ficavam os antigos mouros
E miravam longamente o mar
Dizendo, reinos são morredouros
E o nosso está para se acabar.
E o que os muros diziam é inconteste
Pois não sobrou um para contar;
E agora, onde ficavam, está Brecht
E ele mira longamente o mar.
Hier standen die alten Mauren
Hier standen die alten Mauren
Und shcauten aufs Meer hinaus
Und sagten, nun kann's nicht mehr lang dauern
Und dann ist's mit uns aus.
Und damit hatten die Mauren recht;
Denn jetzt ist's mit ihnen aus
Und da, wo sie standen, steht jetzt der Brecht
Und schaut aufs Meer hinaus
BRECHT, Bertolt. "Hier standen die alten Mauren" / "Aqui ficavam os antigos mouros". In: Poesia. Introdução e tradução. por André Vallias. São Paulo: Perspectiva, 2019.
9.3.21
Lord Byron: Poem 72 of Canto III of Childe Harold / "Poema 72 do Canto III de Childe Harold: trad. por Augusto de Campos
Do Canto III
72
Não vivo por mim mesmo. Sou só um
Elo do que me cerca, mas se a altura
Das montanhas enleva-me, o zum-zum
Das cidades humanas me tortura.
A criação só errou na criatura
Presa à carne, onde paro, relutante,
Buscando, libertada a alma pura,
Mesclar-me ao céu, aos montes, ao ondeante
Plaino do oceano, às estrelas, e ir adiante.
6.3.21
W.B. Yeats: "The coming of wisdom with time" / "Com o tempo a sabedoria": trad. por José Agostinho Baptista
Com o tempo a sabedoria
Embora muitas sejam as folhas, a raiz é só uma;
Ao longo dos enganadores dias da mocidade,
Oscilaram ao sol minhas folhas, minhas flores;
Agora posso murchar no coração da verdade.
The coming of wisdom with time
Though leaves are many, the root is one;
Through all the lying days of my youth
I swayed my leaves and flowers in the sun;
Now I may wither into the truth.
YEATS, W.B. "The coming of wisdom with time" / "Com o tempo a sabedoria". In:_____. Uma antologia. Org. e trad. por José Agostinho Baptista. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996.
3.3.21
Antonio Cicero: "La Capricciosa"
La
Capricciosa
In memoriam
Roberto
Correia Lima, meu irmão
É claro que estou exposto
eu como todos os outros
animais às intempéries
que cedo ou tarde nos ferem;
mas aqui a noite, seda,
suavemente me enleia:
espelhos olhares vinhos
uvas cachos rosas risos
e ali, do lado de lá
das lâminas de cristal
tão tranquila e cintilante
quanto o céu, sonha a cidade.
Desperta-me um celular:
a morte também tem arte.
CICERO, Antonio. "La Capricciosa". In:-_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.
1.3.21
Luís Miguel Nava: "Retrato"
retrato
A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo--a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurara protecção.