30.12.17

Inês Pedrosa: "Delito de Opinião"



Fiquei muito feliz ao ver que, no seu excelente blogue, “Delito de Opinião” -- cujo endereço é http://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/ -- a grande escritora portuguesa Inês Pedrosa havia escolhido o nosso “Acontecimentos” como o “Blogue da Semana”

E ainda mais feliz fiquei com as generosas palavras que ela dedicou tanto ao blogue quanto a mim. Viva Inês Pedrosa! Eis suas palavras:


“Acontecimentos” é o título do excelentíssimo blogue que o poeta e filósofo brasileiro Antonio Cicero mantém há dez anos. Nele encontramos sobretudo poesia (a dele e a de muitos outros grandes poetas) e reflexões sobre poesia: trata-se de um blogue dedicado ao que realmente acontece para lá da superfície, do acontecimento contrário à trovoada de irrelevâncias em que tantas vezes nos deixamos submergir. Vale a pena procurar os textos das crónicas que escreveu para a Folha de São Paulo (por exemplo, nas entradas "barbárie", "civilização" e "direitos humanos"), desmontando, com lucidez, saber e arte, a mitologia contemporânea do relativismo cultural. Encontram-se também textos e entrevistas de outros autores (como o seu muito amigo Caetano Veloso) sobre estes temas. Antonio Cicero é, além de um poeta de altíssima qualidade, um dos filósofos mais estimulantes e argutos do nosso tempo. Como bónus, o poeta a dizer um dos seus mais belos poemas, aqui .      



27.12.17

Antonio Cicero: "Medusa"


  

Medusa

Cortei a cabeça da Medusa
por inveja. Quis eu mesmo o olhar
sem olhos que vê e se recusa
a ser visto e desse modo faz
das demais pessoas pedras: pedras
sim, preciosas, da mais pura água,
onde o olhar mergulha até a medula,
diáfanas, translúcidas, cegas.
Refleti muito, antes. Na verdade
estes meus olhos provêm de carne
de mulher, não do nada imortal
da divindade. Como encarar
com eles a Górgona? Mas mal
pensando assim, lembrei ser mortal
ela também: e seu pai é um deus
do mar mas eu sou filho de Zeus.
Mesmo assim não quis enfrentá-la olhos
nos olhos. Peguei emprestado o espelho
da minha irmã e adentrei o cômodo
da Medusa de soslaio, vendo
tudo por reflexos: o seu corpo
em terceiro plano, atrás de heróis
de pedra e dos meus olhos esconsos
em primeiríssimo. Eis o corte
da lâmina especular: do lado
de cá eu, sem corpo, a olhar; do outro
lado eu, olho olhado, olho enviesado
e rosto e corpo entre muitos corpos,
um dos quais o dela. A mesma lâmina
decapitou-a também: do lado
de cá guardo seu olhar e faina;
e lá jaz seu vulto desalmado.
Mas nada é tão simples. Do pescoço
cortado nasceu um cavalo de asas
(é que o deus do mar a engravidara)
e mergulhou no horizonte em fogo
crepuscular. Contam que, no monte
Hélicon, seu coice abriu uma fonte.
A ser não sendo, de madrugada
levanto com sede dessa água.




CICERO, Antonio. "Medusa". In:_____. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002.

24.12.17

Carlos Drummond de Andrade: "Receita de ano novo"




Receita de ano novo

                 
Para você ganhar belíssimo Ano-Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano-Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior),
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegrama?).
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano-Novo
cochila e espera desde sempre.
  



ANDRADE, Carlos Drummond de. "Receita de ano novo". In:_____. Receita de primavera e alguns sonhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2914.

19.12.17

Rainer Maria Rilke: "Der Panther" / "A pantera": trad. de Augusto de Campos



A pantera
                        No Jardin des Plantes, Paris

De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.




Der Panther

                                   Im Jardin des Plantes, Paris

Sein Blick ist vom Vorübergehn der Stäbe
so müd geworden, daß er nichts mehr hält.
Ihm ist, als ob es tausend Stäbe gäbe
und hinter tausend Stäben keine Welt.

Der weiche Gang geschmeidig starker Schritte,
der sich im allerkleinsten Kreise dreht,
ist wie ein Tanz von Kraft um eine Mitte,
in der betäubt ein großer Wille steht.

Nur manchmal schiebt der Vorhang der Pupille
sich lautlos auf — Dann geht ein Bild hinein,
geht durch der Glieder angespannte Stille —
und hört im Herzen auf zu sein.



RILKE, Rainer Maria. "Der Panther". Trad. de Augusto de Campos In: Coisas e anjos de Rilke. 130 poemas traduzidos. Trad. e org. de Augusto de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2013.

16.12.17

Alex Varella e Antonio Cicero: Poemas lidos no MAM



Os poemas lidos na aula "Como ler poesia", dada por Alex Varella e Antonio Cicero no MAM do Rio de Janeiro foram os seguintes:


Alex Varella: “Água marinha” 
Alex Varella: “A invenção do nome” 
Alex Varella: “A paixão do olhar”
Alex Varella: “Negra grega”      
Alex Varella: “O pintor da paleta do mar”
Alex Varella: “O pombo flaneur”
Antonio Cicero: “Consegui”
Antonio Cicero: “Dilema”
Antonio Cicero: “Museu de Arte Contemporânea”
Antonio Cicero: “Prova”
Antonio Cicero: “Virgem”
Carlos Drummond de Andrade: “Os inocentes do Leblon”
Carlos Pena Filho: “Soneto do desmantelo azul”
Carlos Pena Filho: “Olinda”
Carlos Pena Filho: “Pedro Álvares Cabral”
Décio Escobar: “Vicente”      
Eugênio de Andrade: “frutos”
Fernando Pessoa: “O Tejo”
Ferreira Gullar: “A galinha”        
Ferreira Gullar: “Anoitecer em outubro”
Ferreira Gullar: “Galo galo”
Ferreira Gullar: “Sete poemas portugueses, nº 4”
João Cabral de Melo Neto: “A mulher e a casa”
João Cabral de Melo Neto: “Paisagem pelo telefone”
Paulo Leminski: “Adeus coisas que nunca tive”
Ricardo Silvestrin: “Não quero mais de um poeta”
Sosígenes Costa: “Pavão vermelho”



14.12.17

Marina Lima e Antonio Cicero: show "Dois Irmãos"



No dia 6 de julho deste ano, Marina e eu apresentamos, no palco do projeto Unimúsica, no Salão de Atos da UFRGS, em Porto Alegre, um show intitulado "Dois Irmãos". O Unimúsica acaba de colocá-lo no YouTube. Ei-lo: 


12.12.17

Mário Quintana: "Aula inaugural"



Aula inaugural

É verdade que na Ilíada não havia tantos heróis como na guerra
                                                                             [do Paraguai…
Mas eram bem falantes
E todos os seus gestos eram ritmados como num balé
Pela cadência dos metros homéricos.
Fora do ritmo, só há danação.
Fora da poesia, não há salvação.
A poesia é dança e a dança é alegria.
Dança, pois, teu desespero, dança
Tua miséria, teus arrebatamentos,
Teus júbilos
E,
Mesmo que temas imensamente a Deus,
Dança como David diante da Arca da Aliança;
Mesmo que temas imensamente a morte
Dança diante da tua cova.
Tece coroas de rimas…
Enquanto o poema não termina
A rima é como uma esperança
Que eternamente se renova.
A canção, a simples canção, é uma luz dentro da noite.
(Sabem todas as almas perdidas…)
O solene canto é um archote nas trevas.
(Sabem todas as almas perdidas…)
Dança, encantado dominador de monstros,
Tirano das esfinges,
Dança, Poeta.
E sob o aéreo, o implacável, o irresistível ritmo de teus pés,
Deixa rugir o Caos atônito…



QUINTANA, Mário. "Aula inaugural". In:_____. Nova antologia poética. Rio de Janeiro: Codecri, 1981.

11.12.17

Anônimo: "Traum" / "Sonho mau": trad. Geir Campos



Sonho mau

Esta noite sonhei
Um pesadelo assim:
– Em me jardim crescia
Um pé de alecrim;

Cemitério, o jardim;
A cova era um canteiro;
Flores, botões caíam
Do verde alecrineiro;

As flores coloquei
Juntas num jarro de ouro
Que me caiu dasmãos
E em cacos se quebrou;

Vi então correrem pérolas
E aljôfar cor-de-rosa...
Que quer dizer atl sonho?
Ah, Amada, estarás morta?




Traum

Ich hab die Nacht geträumet
Wohl einen schweren Traum,
Es wuchs in meinem Garten
Ein Rosmarienbaum.

Ein Kirchhof war der Garten
Ein Blumenbeet das Grab,
Und von dem grünen Baume
Fiel Kron und Blüte ab.

Die Blüten tät ich sammeln
In einen goldnen Krug,
Der fiel mir aus den Händen,
Daß er in Stücken schlug.

Draus sah ich Perlen rinnen
Und Tröpflein rosenrot:
Was mag der Traum bedeuten?
Ach Liebster, bist Du tot?




Anônimo. "Traum". In: CAMPOS, Geir. O livro de ouro da poesia alemã (em alemão e português). Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.

9.12.17

Torquato Neto e Jards Macalé: "Let's play that"




Let’s play that

Quando eu nasci
Um anjo louco muito louco
Veio ler a minha mão
Não era um anjo barroco
Era um anjo muito louco, torto
Com asas de avião
Eis que esse anjo me disse
Apertando minha mão
Com um sorriso entre dentes
Vai bicho desafinar
O coro dos contentes
Vai bicho desafinar
O coro dos contentes
Let's play that




NETO, Torquato. "Let's play that". In: MORICONI, Ítalo (org.). Torquato Neto essencial. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.


Canção: Jards Macalé canta a canção "Let's play that", parceria dele (música) com Torquato Neto (letra):


7.12.17

Sylvia Beirute sobre a poesia de Antonio Cicero



Fiquei feliz com a análise crítica que a poeta portuguesa Sylvia Beirute fez da poesia que escrevo. Fica aqui: http://sylviabeirute.blogspot.com.br/2010/11/antonio-cicero-poemas-poesia-analise.html.

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Fernando Pessoa: "Nesta vida, em que sou meu sono"



Nesta vida, em que sou meu sono

Nesta vida, em que sou meu sono,
Não sou meu dono.
Quem sou é quem me ignoro e vive
Através desta névoa que sou eu
Todas as vidas que eu outrora tive,
Numa só vida.
Mar sou; baixo marulho ao alto rujo,
Mas minha cor vem do meu alto céu,
E só me encontro quando de mim fujo.

Quem quando eu era infante me guiava
Senão a vera alma que em mim estava?
Atada pelos braços corporais,
Não podia ser mais.
Mas, certo, um gesto, olhar ou esquecimento
Também, aos olhos de quem bem olhou,
A Presença Real sob o disfarce
Da minha alma presente sem intento.



PESSOA, Fernando. "Nesta vida em que sou meu sono". In:_____. Poesias inéditas (1930-1935). Lisboa: Ática, 1955.

6.12.17

José Mário Pereira: "O que é um texto literário bom?"



O que é um texto literário bom?

É aquele que se lê com agrado e que convoca à reflexão. Um bom autor maneja bem os recursos de sua língua, e dialoga ao mesmo tempo com a tradição e com os seus contemporâneos.



PEREIRA, José Mário. Entrevista à revista Cândido. Curitiba: Biblioteca Pública do Paraná, dezembro de 2017.

4.12.17

Dylan Thomas: "And death shall have no dominion" / "E a morte não terá domínio"



Eu já havia publicado o extraordinário poema "And death shall have no dominion", de Dylan Thomas, e a bela tradução de Augusto de Campos, mas agora resolvi republicá-los, colocando, entre o original e a tradução, um vídeo, retirado do YouTube, em que se ouve a voz de Dylan Thomas. Leiam e ouçam:



And death shall have no dominion

And death shall have no dominion.
Dead man naked they shall be one
With the man in the wind and the west moon;
When their bones are picked clean and the clean bones gone,
They shall have stars at elbow and foot;
Though they go mad they shall be sane,
Though they sink through the sea they shall rise again;
Though lovers be lost love shall not;
And death shall have no dominion.

And death shall have no dominion.
Under the windings of the sea
They lying long shall not die windily;
Twisting on racks when sinews give way,
Strapped to a wheel, yet they shall not break;
Faith in their hands shall snap in two,
And the unicorn evils run them through;
Split all ends up they shan't crack;
And death shall have no dominion.

And death shall have no dominion.
No more may gulls cry at their ears
Or waves break loud on the seashores;
Where blew a flower may a flower no more
Lift its head to the blows of the rain;
Though they be mad and dead as nails,
Heads of the characters hammer through daisies;
Break in the sun till the sun breaks down,
And death shall have no dominion.










E a morte não terá domínio

E a morte não terá domínio.
Nus, os mortos há de ser um.
Com o homem ao léu e a lua em declínio.
Quando os ossos são só ossos que se vão,
Estrelas nos cotovelos e nos pés;
Mesmo se loucos, há de ser sãos,
Do fundo do mar ressuscitarão
Amantes podem ir, o amor não.
E a morte não terá domínio.

E a morte não terá domínio.
Sob os turvos torvelinhos do mar
Os que jazem já não morrerão ao vento,
Torcendo-se nos ganchos, nervos a desfiar,
Presos a uma roda, não se quebrarão,
A fé em suas mãos dobrará de alento,
E os males do unicórnio perderão o fascínio,
Esquartejados não se racharão
E a morte não terá domínio.

E a morte não terá domínio.
Os gritos das gaivotas não mais se ouvirão
Nem as ondas altas quebrarão nas praias.
Onde uma flor brotou não poderá outra flor
Levantar a cabeça às lufadas da chuva;
Embora sejam loucas e mortas como pregos,
Testas tenazes martelarão entre margaridas:
Irromperão ao sol até que o sol se rompa,
E a morte não terá domínio.




THOMAS, Dylan. "And death shall have no dominion" / "E a morte não terá domínio". Trad. Augusto de Campos. In:_____. CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006.




2.12.17

Francisco Alvim: "Disseram na Câmara"



Disseram na Câmara

Quem não estiver seriamente preocupado e
perplexo
não está bem informado




ALVIM, Francisco. "Disseram na Câmara". In:_____. Poemas [1968-2000]. São Paulo/Rio de Janeiro: Cosac Naify/7 Letras, 2004. 

30.11.17

Carlos Cardoso: "O bonde do silêncio"



O bonde do silêncio


Já é noite e o bonde do silêncio
permanece intacto.

Nas ruas as pessoas observam os
pássaros a sobrevoarem as
correntezas.

E tudo permanece intacto.

Os amantes, os Deuses, as estátuas.

Só a poesia perambula.

Acaso os versos caminham ágeis e
desapercebidos.

E tudo permanece intacto.



CARDOSO, Carlos. "O bonde do silêncio". In:_____. Na pureza do sacrilégio. Cotia: Atelier, 2017.


28.11.17

Wallace Stevens: "Man carrying thing" / "Homem carregando coisa": trad. de Paulo Henriques Britto



Homem carregando coisa

O poema tem que resistir à inteligência
Até quase conseguir. Exemplo:

Vulto pardo em tarde de inverno resiste
À identidade. O que ele carrega resiste

Ao sentido mais premente. Aceite-os, pois,
Como secundários (partes semipercebidas

Do todo óbvio, partículas incertas
Do sólido certo, primário indubitável,

Coisas a flutuar como os cem primeiros flocos
Da nevasca que há que suportar a noite inteira,

De uma tormenta de coisas secundárias),
Horror de pensamentos súbito reais.

Temos que suportá-los a noite inteira, até
Que o claro óbvio se mostre, imóvel, no frio.




Man carrying thing

The poem must resist the intelligence
Almost successfully. Illustration:

A brune figure in winter evening resists
Identity. The thing he carries resists

The most necessitous sense. Accept them, then,
As secondary (parts not quite perceived

Of the obvious whole, uncertain particles
Of the certain solid, the primary free from doubt,

Things floating like the first hundred flakes of snow
Out of a storm we must endure all night,

Out of a storm of secondary things),
A horror of thoughts that suddenly are real.

We must endure our thoughts all night, until
The bright obvious stands motionless in cold.




STEVENS, Wallace. "Man carrying thing" / "Homem carregando coisa". In:_____. O imperador do sorvete e outros poemas. Trad. de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

26.11.17

Paul Valéry: "Quem escreve em versos..."



Quem escreve em versos...

Quem escreve em versos dança sobre a corda. Anda, sorri, saúda e isso nada tem de extraordinário, até o momento em que se percebe que esse homem tão simples e à vontade faz todas essas coisas sobre um fio da grossura do dedo.



VALÉRY, Paul. “Poésie”. In:_____. Ego scriptor et Petits poèmes abstraits. Présentation et choix de Judith Robinson-Valéry. Paris: Gallimard, 1992.

25.11.17

Domício Proença Filho: "O lugar"



O lugar

Ventre liso e livre
a Serra da Barriga
emprenhada a sangue
e sal
suor de negro
ferro
no pescoço
e na alma
argola
couro de rebenque
a pele
arrebatada
a vinagre e pimenta
a carne viva
a voz emparedada:
sêmen
da cidade do sonho
negro.




PROENÇA FILHO, Domício. "O lugar". In:_____. Dionísio esfacelado (Quilombo dos Palmares). Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

24.11.17

Paul Celan: "Ein Drönen" / "Um estrondo": Trad. de Celso Fraga Fonseca



Agradeço ao meu amigo, o poeta Adriano Nunes. por me ter chamado a atenção tanto para o fato de que ontem foi o aniversári de Paul Celan, quanto para a excelente tradução, por Celso Fraga da Fonseca, do seguinte, belíssimo poema desse poeta:


Um estrondo

Um estrondo: a
própria verdade
surgiu entre
os homens
em pleno
turbilhão de metáforas




Ein Drönen

Ein Dröhnen: es ist
die Wahrheit selbst
unter die Menschen
getreten,
mitten ins
Metapherngestöber



CELAN, Paul. "Ein Drönen" / "Um estrondo". In: "Poemas de Paul Celan". Trad. de Celso Fraga Fonseca. In: Cadernos de Literatura em tradução nº 4, p.17.

21.11.17

Emily Dickinson: "Our share of night to bear" / "Nossa porção de noite": Trad. de Augusto de Campos



Nossa porção de noite —
Nossa porção de aurora —
Nossa ausência de amor —
Nossa ausência de agrura —

Uma estrela, outra estrela
Que se extravia!
Uma névoa, outra névoa,
Depois – o Dia!




Our share of night to bear –
Our share of morning –
Our blank in bliss to fill
Our blank in scorning –
 
Here a star, and there a star,      
Some lose their way!
Here a mist, and there a mist,
Afterwards – day!




DICKINSON, Emily. "Our share of night to bear" / "Nossa porção de noite". In:_____. não sou ninguém. Traduções de Augusto de Campos. Campinas: Unicamp, 2015. 



Ouçam "Nossa porção de noite" musicada pelo Cid Campos e interpretada por ele e pela Adriana Calcanhotto:




18.11.17

Leoni e Mauro Santa Cecília: "Ode a Waly"



Ode a Waly

adentramos a neblina
deixemos de lado
a fumacinha photoshop
essa minha ilha de edição
vamos para outra coisa
arame farpado, por exemplo
é útil para espantar inconveniências
é uma facada quando
vem em sinais do seu amor
mas pode ser algo mais leve
como a fatalidade de um empurrão
um corte superficial antecipado
um aumento de aluguel
ou uma curva em s
no meio da neblina




LEONI e SANTA CECÍLIA, Mauro. "Ode a Waly". In:_____. Baião de 2. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2017.

16.11.17

A.C. Grayling: trecho de "As religiões não merecem tratamento especial"



Dado que hoje – 16 de novembro – é reconhecido pela UNESCO como o Dia Mundial da Filosofia, resolvi postar a tradução de um pequeno trecho de um artigo do filósofo inglês A.C. Grayling. O texto, que me parece muito oportuno no momento atual, intitula-se “As religiões não merecem tratamento especial”.

            Já no século XVII, o filósofo Descartes dizia, no seu Discurso do método, que, “a pluralidade de vozes não é uma prova que valha nada para as verdades um pouco difíceis de descobrir, porque é bem mais provável que um homem as tenha encontrado do que todo um povo”. Ou seja, ele sabia que nenhuma crença – nenhuma crença religiosa, por exemplo – merece intrinsecamente mais respeito do que qualquer convicção individual.

Mas passemos às palavras de A.C. Grayling:



Está na hora de inverter o senso comum de que o comprometimento religioso intrinsecamente mereça respeito e deva ser tratado com luvas de pelica e protegido pelo costume e, em alguns casos, por leis que proíbem que ele seja criticado ou ridicularizado.

Está na hora de nos recusarmos a andar na ponta dos pés em torno de pessoas que exigem respeito, consideração, tratamento especial ou qualquer outro tipo de imunidade simplesmente porque têm uma fé religiosa, como se ter fé fosse uma virtude merecedora de privilégios, e como se fosse nobre acreditar em afirmações sem base e em superstições antigas. Nada disso: a fé é o comprometimento com uma crença contrária à evidência e à razão.

            Ora, acreditar em algo contra a evidência e contra a razão – acreditar em algo por fé – é ignóbil, irresponsável e ignorante, e merece o oposto do respeito. Está na hora de dizer a verdade.

            Está na hora de exigir dos crentes que mantenham na esfera privada suas escolhas e preferências pessoais nesses assuntos irracionais e frequentemente perigosos. Qualquer um tem a liberdade de acreditar no que quiser, desde que não incomode (ou intimide ou mate) os outros; mas ninguém tem o direito de exigir privilégios meramente na base de ser devoto desta ou daquela das muitas religiões do mundo.

            E, como essa última observação implica, está na hora de exigirmos – nós, que não somos religiosos – o direito de não sofrer interferência por parte de pessoas e organizações religiosas. Ninguém tem o direito de impor suas próprias práticas e escolhas morais às pessoas que não compartilham do seu ponto de vista.




GRAYLING, A.C. Trecho de “Religions don’t desserve special treatment”. In: The Guardian, 19 de outubro de 2006.

15.11.17

Gregório Duvivier: "Alguns lugares pertencem a tempos'"



alguns lugares pertencem a tempos

alguns lugares pertencem a tempos
específicos e jazem enclausurados
numa data como certos becos
de copacabana que moram em 1993
eternamente e de onde se pode ligar
de orelhões com fichas e comprar
revistinhas do cascão por cinco mil cruzeiros.



DUVIVIER, Gregório. "alguns lugares pertencem a tempos". In:_____. Ligue os pontos: poemas de amor e big bang. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

12.11.17

CURSO "LITERATURA E CONFLITOS"






DESCRIÇÃO
[curso Literatura e conflitos]
Organização: Eucanaã Ferraz
De 22 a 30 de novembro, o IMS Rio dá lugar ao curso Literatura e conflitos: uma série de encontros voltados para obras literárias que apresentam eixos temáticos relacionados a embates e lutas armadas. Clássicos da literatura universal e brasileira serão abordados por grandes especialistas em seis aulas. O curso se realiza no âmbito da exposição Conflito: fotografia e violência política no Brasil 1889-1964, que apresenta um panorama da fotografia de guerras civis e outros conflitos armados envolvendo o Estado brasileiro, desde a Proclamação da República à instituição do AI-5 após o golpe de 1964.

[22.11, quarta-feira] Ilíada (Homero) | Por Antonio Cicero
Primeiro livro da literatura ocidental, a Ilíada parece se tratar, pelo título, apenas de um breve incidente ocorrido no cerco dos gregos à cidade troiana de Ílion, a crônica de aproximadamente cinquenta dias de uma guerra que durou dez anos. No entanto, graças à maestria de seu autor, essa janela no tempo se abre para paisagens vastíssimas, repletas de personagens e eventos que ficariam marcados para sempre no imaginário ocidental. É nesse épico homérico que surgem figuras como Páris, Helena, Heitor, Ulisses, Aquiles e Agamêmnon, e em seus versos somos transportados diretamente para a intimidade dos deuses, com suas relações familiares complexas e às vezes cômicas.
Mas, acima de tudo, a Ilíada é a narrativa da tragédia de Aquiles. Irritado com Agamêmnon, líder da coalizão grega, por seus mandos na guerra, o célebre semideus se retira da batalha, e os troianos passam a impor grandes derrotas aos gregos. Inconformado com a reviravolta, seu escudeiro Pátroclo volta ao combate e acaba morto por Heitor. Cegado pelo ódio, Aquiles retorna à carga sedento por vingança, apesar de todas as previsões sinistras dos oráculos. (www.companhiadasletras.com.br)
Sobre Antonio Cicero
Membro da Academia Brasileira de Letras e estudioso da literatura clássica, Antonio Cicero publicou ensaios sobre Homero e a cultura grega. É autor de livros sobre filosofia, literatura e artes, dentre os quais A poesia e a crítica(2017),Poesia e filosofia (2012) e Finalidades sem fim (2005). Poeta publicou, entre outros, Porventura (2012), ganhador do Prêmio ABL de Poesia. É também um dos mais reconhecidos letristas da música popular brasileira.
[23.11, quinta-feira] Os sertões (Euclides da Cunha) | Por Walnice Nogueira Galvão
Os Sertões – marco fundamental nos estudos sobre a formação brasileira, ao lado de Casa-grande e senzala e Raízes do Brasil – foi escrito a partir de um trabalho jornalístico sobre a rebelião de Canudos, liderada por Antonio Conselheiro e duramente reprimida pelo governo. Baseada em teorias deterministas em voga na época, a obra aborda cientificamente a influência do meio sobre o homem, como mostra a própria estrutura dos capítulos: ‘A terra’, ‘O homem’, ‘A luta’. (http://www.martinsfontespaulista.com.br)
Sobre Walnice Nogueira Galvão
Escritora e ensaísta paulista, é professora emérita de teoria literária e literatura comparada da Universidade de São Paulo. Dedica-se à crítica literária e cultural e ao estudo da obra de Guimarães Rosa e de Euclides da Cunha. Suas pesquisas desenvolvidas por décadas em torno do autor deOs sertões culminaram nos volumes Euclidiana (Prêmio Academia Brasileira de Letras, 2009) e Diário de uma exposição (2000), reunião de reportagens realizadas por Euclides da CunhaÉ obra sua a edição crítica de Os sertões, tarefa que levou oito anos, agora em 4ª edição.
[24.11, sexta-feira] O tempo e o vento (Erico Verissimo) |Por Regina Zilberman
A saga O tempo e o vento, de Erico Verissimo, conta uma das histórias mais espetaculares da literatura nacional e resgatam o Brasil sulista do começo do século XX. A trilogia — formada por O ContinenteO retrato e O arquipélago — percorre um século e meio da história do Rio Grande do Sul e do Brasil, acompanhando a formação da família Terra Cambará. Num constante ir e vir entre o passado — as Missões, a fundação do povoado de Santa Fé — e o tempo do Sobrado sitiado pelas forças federalistas, em 1895, desfilam personagens fascinantes, eternamente vivos na imaginação dos leitores de Erico Verissimo: o enigmático Pedro Missioneiro, a corajosa Ana Terra, o intrépido e sedutor Capitão Rodrigo, a tenaz Bibiana.(www.companhiadasletras.com.br)
Sobre Regina Zilberman
Professora do Instituto de Letras, da UFRGS, atua principalmente nos temas de história literária, literatura gaúcha e formação do leitor, é autora de diversos textos e livros, dentre os quais o ensaio “Mulheres: entre o mito e a história”, que consta do Cadernos de Literatura Brasileiradedicado a Erico Verissimo publicado pelo Instituto Moreira Salles em 2003. É autora ainda de A literatura no Rio Grande do Sul (1992), Brás Cubas autor Machado de Assis leitor (2012) e Estética da recepção e história da literatura(2015).

[28.11, terça-feira] A guerra não tem rosto de mulher(Svetlana Alexievitch) | Por Paulo Roberto Pires
A história das guerras costuma ser contada sob o ponto de vista masculino: soldados e generais, algozes e libertadores. Trata-se, porém, de um equívoco e de uma injustiça. Se em muitos conflitos as mulheres ficaram na retaguarda, em outros estiveram na linha de frente.
É esse capítulo de bravura feminina que Svetlana Aleksiévitch reconstrói neste livro absolutamente apaixonante e forte. Quase um milhão de mulheres lutaram no Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial, mas a sua história nunca foi contada. Svetlana Aleksiévitch deixa que as vozes dessas mulheres ressoem de forma angustiante e arrebatadora, em memórias que evocam frio, fome, violência sexual e a sombra onipresente da morte. (www.companhiadasletras.com.br)
Sobre Paulo Roberto Pires
Jornalista e professor da Escola de Comunicação da UFRJ, atuou como crítico literário no Jornal do Brasil, n’O Globo e na revista Época. É autor das biografias A marca do Z – A vida e os tempos do editor Jorge Zahar (2017) e Hélio Pellegrino – A paixão indignada (1998). Publicou também os romances Se um de nós morrer (2011) e Do amor ausente (2000). Organizou a obra poética e jornalística de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (2004). É editor da Serrote, revista de ensaios do Instituto Moreira Salles. Em 2016, durante a Flip, mediou o encontro com a escritora Svetlana Alexievitch.
[29.11, quarta-feira] A poesia brasileira e a Segunda Guerra Mundial (Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade, Cecília Meireles e Murilo Mendes) | Por Murilo Marcondes de Moura
Elaborado ao longo de muitos anos, num processo de múltiplas leituras e interrogações, O mundo sitiado: a poesia brasileira e a Segunda Guerra Mundial é um livro raro no panorama atual. Em primeiro lugar, pela amplitude de sua aposta crítica - flagrar a resposta dos poetas brasileiros ao acontecimento mais traumático do século XX - e, na sequência, pela fineza e eficácia com que Murilo Marcondes de Moura, professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo, encadeia seus argumentos.
Após um capítulo inicial dedicado aos nexos entre a poesia de vanguarda e a Primeira Guerra Mundial, em que brilham as leituras de poemas de Guillaume Apollinaire, Wilfred Owen e Giuseppe Ungaretti escritos nas trincheiras, o autor passa a examinar as marcas do conflito de 1939-1945 na poesia de Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade, Cecília Meireles e Murilo Mendes. Nessa mudança de foco, a investigação crítica age como um poderoso prisma: parte do movimento intrínseco de suas respectivas obras para em seguida, ao situá-las diante do acontecimento histórico de escala mundial, acompanhar as refrações da guerra nos temas e na voz de cada escritor.
Livro que parece conter muitos livros dentro de si, O mundo sitiado, ao confrontar guerra e poesia, abre um campo praticamente inexplorado em nossos estudos literários - e ilumina de forma aguda e original as relações entre linguagem, história, mito e participação política num momento central do modernismo brasileiro. (www.editora34.com.br).
Sobre Murilo Marcondes de Moura
Professor na Universidade de São Paulo e dedica-se sobretudo à literatura brasileira do século xx. Como ensaísta, colaborou em diversos volumes de crítica literária. Organizou a Antologia poética de Murilo Mendes (2014) e O mundo sitiado – A poesia brasileira e a Segunda Guerra Mundial (2016), obra na qual examina as marcas do grande conflito nas poesias de Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade, Cecília Meireles e Murilo Mendes.

[30.11, quinta-feira] Guerra e paz (Tolstói) | Por Rubens Figueiredo
Guerra e paz descreve a campanha de Napoleão Bonaparte na Rússia ao mesmo tempo em que acompanha os amores e aventuras de Natacha, Andrei, Pierre, Nikolai, Sônia e centenas de coadjuvantes, não menos marcantes. (www.companhiadasletras.com.br)
Sobre Rubens Figueiredo
Formado em português-russo pela ufrj, é professor de tradução literária e duas vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura com o livro de contos As palavras secretas(1998) e o romance Barco a seco (2002). Traduziu, de Tolstói,Guerra e paz e Anna Kariênina, além de Contos completos, Ressurreição e Uma confissão. Também cabe destacar suas traduções de Oblómov, de Ivan Gontcharóv, ePais e filhos, de Ivan Turguêniev.


[Perguntas frequentes]
Quais são minhas opções de transporte/estacionamento para chegar ao evento?
Linhas de ônibus: TRONCAL 5 (Alto Gávea - Central – Via Praia de Botafogo), 112 (Rodoviária - Alto Gávea), 538 (Rocinha - Botafogo), 539 (Rocinha - Leme), ônibus executivo (frescão) Praça Mauá – Gávea.
Metrô: Integração Gávea
Estacionamento e bicicletário gratuitos, a saída é mediante entrega de ticket carimbado pela recepção.
Como posso entrar em contato com o organizador se tiver perguntas? Pelo telefone 55 21 3284 7400 ou pelo e-mail imsrj@ims.com.br
Qual é a política de reembolso? É permitido solicitar o reembolso integral até 7 dias antes da data de início do evento.
Preciso levar meu ingresso impresso para o evento? Não é necessário levar o ingresso impresso, apenas um comprovante de identidade e é preciso fazer o check in na recepção do IMS.
Posso atualizar as informações da minha inscrição? A atualização de informações pode ser feita até 1 dia antes do início do curso.
Minha taxa de inscrição ou o ingresso podem ser transferidos? A transferência da matrícula pode ser feita até 1 dia antes do início do curso. Após o início do mesmo, não é possível fazer a transferência.
O nome no meu ingresso ou na minha inscrição não coincide com o nome do participante. Há algum problema?Sim, é preciso que o nome da matrícula seja o mesmo de quem irá frequentar o curso. Caso tenha comprado o curso para outra pessoa, é possível fazer a transferência do mesmo até 1 dia antes do início do curso.
Quem tem direito a meia-entrada? Estudantes, professores e maiores de 60 anos têm 50% de desconto em todos os cursos, mediante apresentação de documento comprobatório no dia do evento.


11.11.17

Arthur Rimbaud: "Antique" / "Alta antiguidade": trad. de Maria Gabriela Llansol



Alta antiguidade

Gracioso filho de Pã! Em torno de tua fronte coroada de pequenas flores e bagas, teus olhos, esferas preciosas, irrequietos movem-se. Maculadas de borras castanhas, cavam-se as tuas faces. Teus dentes carnívoros brilham. Teu peito assemelha-se a uma cítara, campainhas sonoras correm-te pelos braços louros. O coração bate-te nesse ventre onde dorme o sexo macho e fêmea. Passeia-te à noite balançando docemente essa coxa, essa segunda coxa e essa perna esquerda.



Antique

Gracieux fils de Pan ! Autour de ton front couronné de fleurettes et de baies tes yeux, des boules précieuses, remuent. Tachées de lies brunes, tes joues se creusent. Tes crocs luisent. Ta poitrine ressemble à une cithare, des tintements circulent dans tes bras blonds. Ton cœur bat dans ce ventre où dort le double sexe. Promène-toi, la nuit, en mouvant doucement cette cuisse, cette seconde cuisse et cette jambe de gauche.




RIMBAUD, Arthur. "Antique" / "Alta antiguidade". In:_____: "Illuminations" / "Iluminações". In:_____. O rapaz raro. Iluminações e poemas. Trad. de Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio D'Água, 1998.

8.11.17

Fernando Pessoa / Ricardo Reis: "Vivem em nós inúmeros"



Vivem em nós inúmeros

Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu escrevo.



PESSOA, Fernando. "Vivem em nós inúmeros". In:_____. "Ficções do interlúdio / Odes de Ricardo Reis". In:_____. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

5.11.17

Dênis Rubra: "pén"

 

   pén

   no tumulto
   dos carros
   e no tumul
   to da cidade

   no tumulto da rua
   da cidade
   com o barulho
   da buzina
   – pén –
   e o barulho do baralho me
   em
bara
   lhando

  eu
   desfaço
o po
   ema




RUBRA, Dênis. "pén". In:_____. é muito cedo pra pensar. Rio de Janeiro: rubra editora, 2017.

4.11.17

Humberto Finol: "Una nueva franja social"



Recebi do meu amigo Paulo Lima um interessante artigo, assinado por Humberto Finol, que não conheço. Está escrito em castelhano. Infelizmente, não tenho, no momento, tempo para traduzi-lo. Contudo, como creio que praticamente todos os que são capazes de ler em português são, em princípio, também capazes de ler em castelhano, resolvi publicá-lo na versão original. Ei-lo:


Una nueva franja social

Si miramos con cuidado podemos detectar la aparición de una franja social que antes no existía: la gente que hoy tiene entre cincuenta y setenta años

A este grupo pertenece una generación que ha echado fuera del idioma la palabra “envejecer”, porque sencillamente no tiene entre sus planes actuales la posibilidad de hacerlo.

Se trata de una verdadera novedad demográfica parecida a la aparición en su momento, de la “adolescencia”, que también fue una franja social nueva que surgió a mediados del S. XX para dar identidad a una masa de niños desbordados, en cuerpos creciditos, que no sabían hasta entonces dónde meterse, ni cómo vestirse.

Este nuevo grupo humano que hoy ronda los cincuenta, sesenta o setenta, ha llevado una vida razonablemente satisfactoria.

Son hombres y mujeres independientes que trabajan desde hace mucho tiempo y han logrado cambiar el significado tétrico que tanta literatura latinoamericana le dio durante décadas al concepto del trabajo. 

Lejos de las tristes oficinas, muchos de ellos buscaron y encontraron hace mucho la actividad que más le gustaba y se ganan la vida con eso. 

Supuestamente debe ser por esto que se sienten plenos; algunos ni sueñan con jubilarse. 

Los que ya se han jubilado disfrutan con plenitud de cada uno de sus días sin temores al ocio o a la soledad, crecen desde adentro. Disfrutan el ocio, porque después de años de trabajo, crianza de hijos, carencias, desvelos y sucesos fortuitos bien vale mirar el mar con la mente .

Pero algunas cosas ya pueden darse por sabidas, por ejemplo que no son personas detenidas en el tiempo; la gente de “cincuenta, sesenta o setenta”, hombres y mujeres, maneja la computadora como si lo hubiera hecho toda la vida. Se escriben, y se ven, con los hijos que están lejos y hasta se olvidan del viejo teléfono para contactar a sus amigos y les escriben un e-mail o un whatsapp.

Hoy la gente de 50 60 o 70, como es su costumbre, está estrenando una edad que todavía NO TIENE NOMBRE, antes los de esa edad eran viejos y hoy ya no lo son, hoy están plenos física e intelectualmente, recuerdan la juventud, pero sin nostalgias, porque la juventud también está llena de caídas y nostalgias y ellos lo saben. La gente de 50, 60 y 70 de hoy celebra el Sol cada mañana y sonríe para sí misma muy a menudo… hacen planes con su propia vida, no con la de los demás. Quizás por alguna razón secreta que sólo saben y sabrán los del siglo XXI.


Humberto Finol

1.11.17

Poetas-Santos de Xiva: "Acalanto do céu": Trad. de Décio Pignatari



Acalanto do céu
O vento dorme

O infinito dá de mamar
O espaço cochila

O céu silencia
A cantiga se acaba

O Senhor é
como se não fosse.



Poetas-Santos de Xiva. “Acalanto do céu”. In:_____. Pignatari, Décio (org. e tradutor). 31 poetas 214 poemas: do Rigveda e Safo a Apollinaire. Campinas, 2007.

29.10.17

Roberto Bozzetti: "O gato metonímico"

Agradeço a Adriano Nunes por me ter chamado a atenção para o seguinte, belo poema do Roberto Bozzetti:



O gato metonímico

                             ou: Disiecta membra


cabeça de camundongo
de calango língua
rabo de lagartixa
penas de sabiá
cambacica
juriti
carriça
carapaça de escaravelho
ao sol ressecada
pele de jararaca
escamas da sardinha roubada
à beira da vala me olha com olhos de rã
gourmet rigoroso
à sua maneira

o gato oferece
suas metonímias



BOZZETTI, Roberto. "O gato metonímico". In:_____. Blog "Firma irreconhecível". Acesso em 27/10/2017.

27.10.17

Horácio: Carmen IV.I / Ode IV.1: trad. por Pedro Braga Falcão




Ode IV.1

   De novo moves, Vênus, guerras
há tanto interrompidas? Poupa-me, rogo-te, rogo-te.
   Já não sou quem era, no reinado
da boa Cínara. Deixa, cruel mãe

    dos doces Desejos,
de vergar com suaves ordens um homem empedernido
   que já quase cinco décadas viveu.
Vai, para onde te reclamam as doces preces dos jovens.

   Mais a tempo te irás divertir
para casa de Paulo Máximo,
   nos teus purpúreos cisnes voando,
se inflamar procuras um coração que te convenha.

   E depois de assaz se ter rido
ao triunfar sobre os sumptuosos presentes do rival,
   perto dos lagos albanos
uma estátua de mármore colocará sob um telhado de cedro.

   Aí, ao nariz te há-de chegar
o perfume de muitos incensos, deleitar-te-ás
   com as melodias conjuntas da lira,
da tíbia de Berecinto, e também da siringe.

   Ai, duas vezes por dia,
rapazes com gentis virgens, louvando tua divindade,
   três vezes no chão hão-de bater
com o cândido pé, como é costume dos Sálios.

   Quanto a mim, nem mulheres,
o nem rapazes, nem a crédula esperança num amor recíproco
   me agradam, nem as ébrias rixas,
nem cingir a testa com frescas flores.

   Mas então por que, ah, Ligurino,
porque escorre por minha face rara lágrima?
   Por que, a meio de uma palavra,
cai minha eloquente língua no indecoroso silêncio?

   Em noturnos sonhos
ora te tenho cativo, ora a ti voando te sigo
  através do campo de Marte,
a ti, cruel, através das volúveis águas.



HORÁCIO. Ode IV.1. In:_____. Odes. Trad. por Pedro Braga Falcão. Lisboa: Cotovia, 2008.


Carmen IV.I

     Intermissa, Venus, diu
rursus bella moves? Parce precor, precor.
     Non sum qualis eram bonae
sub regno Cinarae. Desine, dulcium

     mater saeva Cupidinum,            
circa lustra decem flectere mollibus
     iam durum imperiis: abi,
quo blandae iuvenum te revocant preces.

     Tempestiuius in domum
Pauli purpureis ales oloribus            
     comissabere Maximi,
si torrere iecur quaeris idoneum;

     namque et nobilis et decens
et pro sollicitis non tacitus reis
     et centum puer artium              
late signa feret militiae tuae,

     et, quandoque potentior
largi muneribus riserit aemuli,
     Albanos prope te lacus
ponet marmoream sub trabe citrea.            

     Illic plurima naribus
duces tura, lyraque et Berecyntia
     delectabere tibia
mixtis carminibus non sine fistula;

     illic bis pueri die
numen cum teneris virginibus tuum              
     laudantes pede candido
in morem Salium ter quatient humum.

     Me nec femina nec puer
iam nec spes animi credula mutui              
     nec certare iuvat mero
nec vincire novis tempora floribus.

     Sed cur heu, Ligurine, cur
manat rara meas lacrima per genas?
     Cur facunda parvm decoro              
inter verba cadit lingua silentio?

     Nocturnis ego somniis
iam captum teneo, iam volucrem sequor
     te per gramina Martii
campi, te per aquas, dure, volubilis.    


    
HORACE. Carmen IV.I. In:_____. Odes and Epodes. Org. por Paul Shorey. Chicago: Benj. H. Sanborn & Co., 1919.
  

25.10.17

Sobre o album "Rei Ninguém", de Arthur Nogueira



Acabo de ler -- e recomendo -- um excelente artigo de Mauro Ferreira sobre o album Rei Ninguém, de Arthur Nogueira. Fica aqui: http://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/post/poesia-guia-reino-das-palavras-e-sons-do-quarto-album-de-arthur-nogueira.html.

António Botto: "Venham ver a maravilha"



Venham ver a maravilha
Do seu corpo juvenil!

O sol encharca-o de luz,
E o mar, de rojos, tem rasgos
De luxúria provocante.

Avanço. Procuro olhá-lo
Mais de perto… A luz é tanta
Que tudo em volta cintila
Num clarão largo e difuso…

Anda nu - saltando e rindo,
sobre a areia da praia
Parece um astro fulgindo.
Procuro olhá-lo; - e os seus olhos,
Amedrontados, recusam,
Fixar os meus… - Entristeço…

Mas nesse lugar fugidio -
Pude ver a eternidade
Do beijo que eu não mereço…



BOTTO, António. "Venham ver a maravilha". In:_____. Canções e outros poemas. Org. por Eduardo Pitta. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2007.

22.10.17

Antonio Carlos Secchin: "Poema promíscuo"



Poema promíscuo

Disseram que voltei muito mecanizado,
com ritmo correto, muita rima rica,
que não tolero nada que não seja aquilo
que seja exatamente o que o Bilac dita.

Disseram que com a forma estou bem preocupado
e corre por aí, com a maior certeza,
que muito pouco vale tanta velharia
de alguém que ainda pensa em produzir beleza.

Não sei o que o futuro guarda de armadilha,
porém não vou ficar parado e prisioneiro
de quem, pajé pujante em sua antiga taba,
dali pretende governar o mundo inteiro.

Pra cima da poesia não vale esse veneno,
que já destila seu sabor de cianureto.
Enquanto a tribo grita "Por aí não passa",
passa um poema concreto ao lado de um soneto.



SECCHIN, Antonio Carlos. "Poema promíscuo". In:_____. Desdizer e antes. Rio de Janeiro: Topbooks, 2017.

20.10.17

Stefan George: "Ein gleiches" / "Despedida". trad. por Eduardo de Campos Valadares



Despedida

Comove-me o abraço e o brinde do adeus
A todas! Mãos calorosas: qual deus
Hoje leve me sinto · imune a amigos
E inimigos · rumo a novos perigos.



Ein gleiches

Da mich noch rührt der spruch der abschieds-trünke
Ihr all! und eure hand noch wärmt: wie dünke
Ich heut mich leicht wie nie · vor freund gefeit
Und feind · zu jeder neuen fahrt bereit.



GEORGE, Stefan. "Ein gleiches" / "Despedida". In:_____. Crepúsculo. Org. e trad. por Eduardo de Campos Valadares. São Paulo: Iluminuras, 2000.

18.10.17

Mário Quintana: "O poeta começa o dia"



O poeta começa o dia

Pela janela atiro meus sapatos, meu ouro, minha alma ao meio da rua.
Como Harum-al-Raschid, eu saio incógnito, feliz de desperdício...
Me espera o ônibus o horário a morte - que importa?
Eu sei me teleportar: estou agora
Em um Mercado Estelar... e olha!
Acabo de trocar
- em meio aos ruídos da rua -
alheio aos risos da rua -
todas as jubas do Sol
por uma trança da Lua!



QUINTANA, Mário. "O poeta começa o dia". In:_____. Nova antologia poética. 2ª ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. 

16.10.17

Edgar Allan Poe: "Eldorado": trad. de Nelson Ascher



Eldorado

Um cavaleiro
seguiu faceiro
ao sol e à sombra, ousado
e, não obstante,
cantarolante,
em busca do Eldorado.

Mas ficou velho
esse andarilho
e não pôde, assombrado,
nunca, em lugar
algum, achar
nem sombra de Eldorado.

Enfim, diante
de sombra errante,
parou, já fatigado
e indagou: "Onde,
sombra, se esconde
a terra de Eldorado?"

"Vai às montanhas
da lua e entranhas
do atroz vale assombrado,
que há mais viagem”,
disse a miragem,
"se buscas o Eldorado."




Eldorado

Gaily bedight,
A gallant knight,
In sunshine and in shadow,
Had journeyed long,
Singing a song,
In search of Eldorado.

But he grew old
This knight so bold
And o'er his heart a shadow
Fell as he found
No spot of ground
That looked like Eldorado.

And, as his strength
Failed him at length,
He met a pilgrim shadow
"Shadow," said he,
"Where can it be
This land of Eldorado?"

"Over the Mountains
Of the Moon,
Down the Valley of the Shadow,
Ride, boldly ride,"
The shade replied
"If you seek for Eldorado!"




POE, Edgar Allan. "Eldorado". In: ASCHER, Nelson (trad. e org.). Poesia Alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

12.10.17

Juan Ramón Jiménez: "Ruta" / "Rota": trad. Antonio Cicero



Ruta

Todos duermen, abajo.
                                 Arriba, alertas,
el timonel y yo.


Él, mirando la aguja, dueño de
los cuerpos, con sus llaves
echadas. Yo, los ojos
en lo infinito, guiando
los tesoros abiertos de las almas.



JIMÉNEZ, Juan Ramón. "Ruta". In:_____. Piedra y cielo. Verso (1917-1918). Madrid: Edição do autor, 1919.





Rota

Todos dormem, embaixo.
                                    Em cima, alertas
o timoneiro e eu.

Ele, olhando a bússola, dono
dos corpos atrás de portas
fechadas. Eu, os olhos
no infinito, guiando
os tesouros abertos das almas.





9.10.17

Cacá Diegues: "Tragam suas crianças"



O seguinte, excelente artigo de Cacá Diegues foi publicado em O Globo de domingo, 8 de outubro de 2017:


Tragam suas crianças


Em 1865, o quadro “Olympia”, do pintor Édouard Manet, um dos pais históricos do impressionismo, foi recusado no Salão de Belas Artes de Paris. O quadro rejeitado foi então exposto no Salão dos Recusados, onde provocou um escândalo sem precedentes. “Olympia” retratava uma mulher nua, deitada na cama enquanto uma criada lhe trazia flores.

Além de mal pintado, um borrão de cores desordenado, atentado à boa pintura de uma época neoclássica e acadêmica, “Olympia” foi acusado também de indecente e pornográfico. Professores e estudantes de Belas Artes organizavam passeatas contra a obra, mães de família cobriam o quadro com lençóis para que ele não fosse visto, jornalistas zombeteiros faziam piadas ao vivo e em seus jornais.

Não se tem notícia, porém, de nenhuma autoridade local propondo sorridente que a tela e seus admiradores fossem jogados no fundo do mar.

Exatamente 150 anos depois, no verão europeu de 2015, o Museu d’Orsay e o l’Orangerie, duas das principais salas de exposição de arte em Paris, iniciaram intensa campanha de promoção de suas mostras com uma frase: “Emmenez vos enfants voir des gens tout nus” (em tradução livre, “Tragam suas crianças para ver pessoas completamente nuas”). E a imagem que ilustra a frase, nos cartazes da campanha, é a da tela “Mulher nua deitada”, pintada em 1907 por outro mestre impressionista, Auguste Renoir.

Os cartazes foram espalhados pelas ruas, por pontos de ônibus e estações de metrô, por onde quer que a população de Paris passasse. Segundo a diretora do Museu d’Orsay, a campanha, além de lembrar que os filhos podem ser responsáveis pela presença dos pais nas exposições, pretende também educar as crianças para um melhor conhecimento da vida através da arte. Mesmo uma tela como a célebre “A origem do mundo”, de Gustave Courbet, simples, dinâmica e bela reprodução do órgão sexual feminino, está liberada para a visão das crianças.

O Estado francês não tem o direito de se meter nesse assunto e não se meteu. A aprovação da maior parte da população do país coroa o avanço ético e educacional que o procedimento representa. Não se pode tratar crianças como débeis mentais, protegidas do mundo pela ignorância cultivada pelos pais e educadores; elas são responsáveis pela direção que o mundo um dia vai tomar. Qual o problema de conhecerem melhor o corpo humano e seu funcionamento? Para que serve a vida?

Além disso, vai à exposição e leva seus filhos quem bem quiser, contanto que não incomode ninguém. Quem não quiser, tampouco será obrigado a ir, sozinho ou acompanhado. É assim que funciona a democracia.

Uma emergente mentalidade restritiva e boçalizante tem se tornado frequente no Brasil de hoje. Os esforços do nosso modernismo na cultura brasileira, sobretudo durante a segunda metade do século XX, frustram-se na proibição de manifestações de liberdade, de novos conhecimentos, de exercícios da diferença e de alegria. O modernismo nos ensinou o direito de sermos felizes. Ele livrou o Brasil da falsidade colonial, de uma cultura de repressão, da negação do que somos. E agora somos ameaçados por essa aurora de um novo medievalismo cheio de preconceitos e de sombra. Antes de tudo, se condena a felicidade.

Os nazistas sabiam que a cultura é o cerne de toda nação que se quer formar. Goebbels inaugurou o domínio deles sobre a Alemanha com uma exposição de “Arte degenerada”, uma seleção de tudo que fosse liberdade criativa, tudo que representasse manifestação livre da invenção humana. O mais importante teórico do Partido Nazista, Alfred Rosenberg, acusou de degenerada a estética modernista de pintores como Chagall, Mondrian, Kandinsky, Klee, todos eles, cujas telas foram queimadas, antecedendo a grande fogueira de livros que representavam o mesmo “subjetivismo degenerado”.

Essa experiência não ficou perdida no tempo. Agora mesmo, já no século XXI, conhecemos o movimento político e cultural dos talibãs no Afeganistão e do Estado Islâmico no Iraque e na Síria, destruindo monumentos e cidades inteiras, sob o pretexto de adorações que contrariavam as crenças do islamismo. O fundamentalismo se repete no mundo inteiro, através de ações intolerantes em nome das religiões mais populares.

No Brasil, além da violência contra a “Queermuseu” em Porto Alegre e a performance “La Bête” no MAM de São Paulo, já tivemos a depredação do túmulo de Chico Xavier em Uberaba, a destruição de uma casa de candomblé apedrejada em Nova Iguaçu, a proibição da peça “O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu” por um juiz do interior paulista, a alegre proposta de atirar uma exposição inteira no fundo do mar. E por aí afora.

A arte é um ofício solitário e sem limites conceituais, ninguém pode tentar domá-la em benefício de uma ideia que lhe é estranha. Desde as estátuas nuas de deuses e heróis gregos, tem sido sempre assim e assim sempre será. Esse é o jeito que temos de saber quem somos e o que queremos ser. A censura a isso, seja em nome do que for, é sempre inaceitável.


Cacá Diegues

8.10.17

Gregório Duvivier: "Plano de Poder"



É muito atual o seguinte momento do "Greg News", do Gregório Duvivier. Afinal, na semana passada, o pastor Crivella, por razões pseudo-moralistas, censurou uma exposição de arte. Como diz Gregório, precisamos estar atentos -- neste momento confuso da política brasileira -- ao perigoso plano de poder da Igreja Universal do Reino de Deus.

7.10.17

Adriano Nunes: "A falar de versos"



A falar de versos

para Antonio Cicero (por seu aniversário) 

Praia planejada
No primeiro encontro.
Mas a chuvarada
Veio forte e... Pronto:

Estamos nós dois
A falar de versos
E do que depois
Será, mais imersos

Em cada poeta
Que amamos. O mar
Até nos completa,
Neste patamar

De alegria estética.
Do Latino, as Odes
Belas, as grãs Odes!
Do Helênico, a Ética...

Na prima visita,
Rápida, na praia,
A arte se espraia
E a vida se agita.



Adriano Nunes

4.10.17

Antonio Cicero: "O poeta lírico"



O poeta lírico

Não sei contar histórias. Minha prima,
Corina, que sabe fazê-lo, disse
ser esse defeito a causa ostensiva
do que, em falso tom de corriqueirice,
ela se deleita em qualificar
de “o óbvio malogro” das minhas lides
poéticas. Tive que concordar
pois, por não sei que artes de berliques
e berloques, ela me criticava
com um argumento do próprio Filósofo
– para ela anacrônico e monótono –
em cuja obra-prima eu mergulhara
há tanto tempo – e a fundo – e ela nada.
Eu morreria se tivesse um óbolo.



CICERO, Antonio. "O poeta lírico". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.

2.10.17

Entrevista a Nahima Maciel, do "Correio Brasiliense"


A seguinte entrevista foi dada por mim a Nahima Maciel, do Correio Brasiliense, durante a 33ª Feira do Livro de Brasília, em junho deste ano:


Antonio Cicero afirma que a poesia permite ampliar a experiência do ser
O poeta e filósofo esteve na capital federal para pareticipar da 33ª Feira do Livro de Brasília

24/06/2017

Nahima Maciel

A filosofia é inevitável e, nos dias de hoje, extremamente necessária. É a “metalinguagem terminal”, nas palavras do poeta e filósofo Antonio Cicero. Tem uma certa coerência e alguma utilidade, já que filosofar pode ser um caminho para melhorar o mundo. A poesia é outra coisa. Não tem utilidade prática alguma e permite apreender o mundo em uma outra dimensão que não aquela das coisas funcionais. “A poesia é a língua-objeto terminal”, explica Cicero, que esteve em Brasília para a 33ª Feira do Livro de Brasília para falar do tropicalismo, tema do evento. O filósofo acaba de lançar A poesia e a crítica, coletânea com textos de palestras e ensaios proferidos e escritos nos últimos 11 anos.


Em 2016, Cicero lançou um disco em parceria com Arthur Nogueira. Presente foi uma espécie de celebração dos 70 anos do artista, mas também um aviso de que, a partir de agora, pretende se dedicar apenas à poesia. E essa, no caso do Brasil, está muito ligada à música graças a movimentos como a bossa nova e a tropicália. Na apresentação de A poesia e a crítica, Cicero conta como se encantou com Caetano Veloso no final dos anos 1960, quando foi morar em Londres para estudar e fugir da ditadura. Veloso, na época no exílio e casado com Dedé Gadelha, prima de Cícero, era capaz de colocar abaixo as barreiras entre o erudito e o popular graças a uma grande liberdade de pensamento, a mesma que fez Tom Jobim e Vinicius de Moraes ignorarem essas fronteiras.

Dessa forma, a poesia e a música sempre andaram juntas, mais agarradas uma à outra no Brasil do que em outros países. “Você vê um músico extraordinário como Tom Jobim fazendo música popular, um poeta como Vinicius de Moraes, erudito, de repente fazendo canções com Tom Jobim. Depois, veio uma geração incrível de pessoas influenciadas por eles. O próprio Caetano, um grande poeta. Não tem como negar. O Chico Buarque. São grandes poetas e músicos que estão fazendo coisas novamente consideradas menores, mas que não são menores”, diz Cicero, ao comentar o estardalhaço feito em torno do prêmio Nobel de literatura concedido a Bob Dylan. Abaixo, Cícero fala sobre filosofia, sobre o Brasil e sobre a  poesia no mundo contemporâneo.


Ainda é importante falar de filosofia hoje?

Não se pode evitar a filosofia. Chamo a filosofia de metalinguagem das metalinguagens. Metalinguagem é a linguagem que fala de outra linguagem. Se estou falando sobre um livro de poesia ou qualquer outra coisa, minha linguagem é metalinguística em relação a ele. A poesia é a metalinguagem das metalinguagens. A língua sobre a qual se fala é a língua-objeto. Não é possível falar da filosofia sem filosofar porque só a filosofia fala de si própria. A filosofia é a metalinguagem terminal e a poesia é a língua-objeto terminal. Então, você não pode atacar a filosofia sem ser filosófico. E a filosofia, justamente por isso, fala das últimas coisas, ou das primeiras. Ela fala sobre o ser de maneira geral, sobre o sentido da vida. A ética faz parte da filosofia, a estética, também. Não há como evitar. A filosofia puramente quer ser. Tem a ver com a razão e com o intelecto. A religião tem a ver com fé, emoção.

Está difícil falar de ética hoje no Brasil?

Um dos problemas que vejo no Brasil é que todas as ideologias tradicionais funcionam quase como uma religião. Os conjuntos de ideias que as pessoas tinham sobre o Brasil ou o mundo, aparentemente, falharam todos. Depois da queda da cortina de ferro, tudo falhou. Parece que não deu certo. As previsões e as esperanças para a esquerda não deram certo. A URSS não funcionou, a China maoísta, que era contra a URSS porque achava que tinha um marxismo-leninismo mais puro, não deu certo. Isso criou uma situação muito complicada para as pessoas que tinham essa ideologia, o que não quer dizer que as ideologias de direita sejam melhores ou funcionem melhor. Não acredito nisso. Na verdade, nenhuma deu certo. Agora é uma hora de se pensar de novo no que Marx realmente queria.

Como assim?

O materialismo histórico, que pretende ser o marxismo científico, não deu certo. A partir dele  previa-se, por exemplo, que a classe operária teria salários cada vez menores; que haveria uma queda da taxa de lucro dos capitalistas; que as tentativas das nações capitalistas de evitar as crises econômicas falhariam; que haveria revoluções socialistas nos países mais avançados, não nos menos avançados. Essas previsões falharam. Karl Popper, um pensador austríaco, dizia que a ciência – e Marx pensava que tinha feito uma filosofia científica – não pode estar sempre procurando provar que está certa, como faz o marxismo. Ao contrário, a verdadeira ciência está sempre procurando coisas que poderiam “desprovar” o que ela afirma. Está sempre se submetendo a testes. E enquanto os testes não destruírem a teoria científica, ela se segura. Mas pode vir alguém no futuro que faça uma experimentação e mostre que tudo está errado. A ciência é isso, está sempre ali sendo testada.

O que faz de um poema, um poema?

Essa coisa é muito difícil de responder. Já tive várias maneiras de falar desse assunto. Não existe uma definição que seja universalmente aceitável do que é poesia. Goethe dizia que a gente fala da poesia como uma das artes, mas isso está errado: a gente devia pensar em cada arte como sendo uma das várias formas de poesia. E poesia como se fosse um nome para as artes em geral. E tem a poesia que produz os poemas. Não só versos, porque há poemas em prosa e poemas visuais. O importante nas diferentes artes é que elas nos oferecem uma maneira de apreender o próprio ser, a vida, o mundo, diferente daquele que temos cotidianamente.

E como é nossa forma de ver o mundo no cotidiano?

É extremamente utilitária. A gente faz as coisas todas tendo em vista determinados propósitos, determinadas finalidades. Tudo é muito calculado. A gente apreende o mundo a partir dessa maneira de ver as coisas, cada coisa tem um sentido, serve para uma coisa. E a gente tende a ver as próprias pessoas assim. A poesia, não.

A poesia possibilita, como você fala em um dos textos do livro, uma nova dimensão do ser. Que dimensão?

A gente passa a apreender o mundo de uma maneira diferente quando entra num poema, numa pintura, numa peça musical. Nosso mundo se amplia porque a gente percebe as coisas de uma maneira que a gente não percebia antes. É como se fosse uma outra dimensão. Existe a dimensão utilitária e existe essa dimensão estética, usando essa palavra com cuidado porque muita gente pode apreender o próprio estético como utilitário, como se fosse o que a gente acha bonito. Não é isso, é uma coisa mais ampla. Vamos dizer, apreender de um  modo artístico a linguagem, sentir. Isso enriquece nossa maneira de estar no mundo. Devemos ter essa maneira de estar no mundo mesmo sem estar lendo um poema. É possível curtir as coisas de uma maneira diferente. A poesia nos leva a isso e nos abre muitas perspectivas sobre as diferentes coisas que estão no mundo e na nossa vida. E ela faz isso subvertendo a maneira normal de a gente realmente ver as coisas, captar, apreender.

Se falou muito da ligação entre música e poesia quando Bob Dylan ganhou o Nobel, mas no Brasil essa discussão existe há muito tempo. Falamos mais nisso por termos a música que temos? 

Acho que sim. No Brasil aconteceu mais fortemente do que nos outros países essa compreensão de que não é possível separar radicalmente o que é alta cultura, cultura erudita, do que é cultura popular. A ideia, que é uma ideia moderna e necessária, é que não se julgue uma obra a partir do lugar que a ela é convencionalmente designado. Se trata de uma obra erudita ou popular? Não. O que interessa é, primeiro, você olhar a própria coisa e ela ser capaz de ter esse efeito de que falei, estético ou artístico. Pode ser mais forte ou menos forte, mas isso não depende de ela ser erudita ou popular. O Bob Dylan pode, de repente, ter isso tão forte quanto um compositor de música erudita. Não dá mais para julgar com preconceito.

E qual o papel da Bossa Nova e da Tropicália nisso?

A bossa nova foi o movimento que realmente tematizou isso e compreendeu totalmente o que tinha acontecido. E quem fez isso mais claramente ainda foram os tropicalistas. Eles compreenderam totalmente essa situação e fizeram uma revolução nesse sentido. Isso foi muito importante. Foram eles que tornaram possível a gente compreender que aquela hierarquia tinha dançado.

Você vislumbra alguma outra revolução desse tipo possível na cultura brasileira?

Não. Mas acho que não precisa ter. Já foi feita essa revolução, já se sabe disso. O que tem é muita coisa muito ruim e algumas poucas coisas boas. Mas sempre foi assim, em todas as épocas e em todas as áreas. A gente sempre acha que agora é pior. Tenho a impressão de que quem viveu a experiência tropicalista pode ter isso muito forte. Eu vivi, mas tento me conter porque, às vezes, acho que ainda não deu tempo de perceber as coisas boas que estão sendo feitas. Há tanta coisa. A internet multiplicou. Todo mundo escreve poesia hoje. Mesmo quem não gosta. É estranhíssimo. E claro que a maior parte não é boa. Mas alguns poetas são muito bons.

A internet fez mal para a poesia?

Acho que não fez mal, mas permitiu a muita gente escrever. Isso tem um lado bom, talvez pessoas que não apareciam antes apareçam agora. Mas é que é tanta coisa que é muito difícil você filtrar. E demora um tempo. Essas coisas vão sendo filtradas com o tempo.