"Informar não é uma liberdade para a imprensa, mas um dever"
25 novembre 2019
Bolivie, o
regresso da besta imunda
– um golpe de
Estado escondido pela comunicação social
Maïté PINERO
Nunca, na sua carreira de jornalista,
Tom Phillips tinha vivido algo parecido. Chegado a El Alto, perto de La Paz, no
dia seguinte ao massacre na refinaria de Senkata, o correspondente do Guardian na
América latina foi recebido com aplausos por uma guarda de honra. A imagem
circula nas redes sociais. Prega ao pelourinho os grandes meios de comunicação
social.
Dois dias depois do golpe de Estado, o novo ministro do Governo, Arturo
Murillo, e a sua ministra das Communicações anunciavam que os jornalistas “sediciosos”
seriam presos, com o nome publicado. Nesse mesmo dia, todos os jornalistas e técnicos
argentinos foram agredidos pelos comités cívicos de Santa Cruz, as milícias
fascistes. Foram obrigados a juntar-se e, depois, a refugiar-se num hotel, antes
de serem recenseados pelas suas embaixadas.
Telesur pôde emitir ainda alguns dias, com repórteres no terreno (Marco
Teruggi et Willy Morales) multiplicando precauções, falando de “governo de
facto”, enquanto nos estúdios o apresentador evocava claramente o “golpe de
Estado”. O canal informou sobre os massacres em Cochabamba e depois em Senkata.
Após as últimas reportagens, no hospital de El Alto, onde sse ouvem gritos de
dor, onde se vêm cadáveres, onde um médico desesperado, Aiver Guarana (depois
preso), chora frente à câmara, as transmissões foram cortadas.
Em Senkata, em directo da mortandade, um jornalista latino-americano lamentava-se :
Somos dois… onde está a imprensa
internacional? Filmou o massacre. Depois, escondeu-se, misturou-se com população de El Alto.
Apareceram novos “jornalistas”. Trazem máscaras e capacetes com o distintivo
estampado “prensa”. Num video, agridem um estudante de cinema e documentário,
que lhes diz: eu faço o trabalho que a
imprensa não faz! Os pretensos « jornalistas » apontaram-no aos polícias,
que logo o prendem.
Os meios franceses e europeus estão ausentes. Uma cortina de ferro mediática
abateu-se sobre o país. A Federação internacional dos jornalistas, o SNJ e o
SNJ-CGT denunciaram o golpe de Estado. Silêncio!
Com excepção do L’Humanité, a imprensa censura a tragédia: nem uma palavra
sobre o autarca indígena pintado de tinta vermelha e cabelo rapado, nem uma
palavra sobre os camponeses levados para a beira de uma lagoa, forçados a
ajoelharem-se e depois levados para destino desconhecido, nem uma palavra sobre
incêndios e saques das casas de Evo Morales, de sua irmã, de representantes
eleitos e líderes do Movimento ao Socialismo (MAS), o partido político do
presidente, nem uma palavra (ou quase) sobre a repressão aos manifestantes que,
sob fogo, deixaram quinta-feira El Alto com seus mártires caixões abandonados
nas ruas.
Os brancos ricos dão rédea livre ao racismo e têm sede de vingança: não
podiam suportar que um indígena, um aimará, nacionalizasse a riqueza do país
para criar escolas e universidades, tornar a saúde um direito, conceder reformas,
reduzir para metade a pobreza, o desemprego e o analfabetismo. E tenha
dado, à maioria do país, os "primeiros povos", o seu lugar na
sociedade e no poder. Começando com sua bandeira, a Wiphala, cujo nome
significa a vitória que acena, que era a segunda bandeira do país. Nunca
visto!
Franceses e europeus, vocês não saberão nada da
tragédia. Editorialistas e "especialistas" patenteados ficarão à
margem do que aconteceu e acontece. Na melhor das hipóteses, haverá um
debate: é um golpe de estado ou é algodão doce (“barbe à pápá”)?
A verdade, teimosa e sangrenta, faz o seu caminho. O golpe seguiu o
cenário de Golpe Blando (Lawfare), desenvolvido pelo teórico da CIA Gene Sharp.
A verdade? As acusações de fraude eleitoral são uma montagem da ala
direita e da CIA.
A verdade? A Organização dos Estados Americanos (OEA), o
"Escritório Colonial" de propriedade de 60% dos Estados Unidos, foi o
gatilho do golpe. Dois centros de pesquisa, incluindo o Centro de Pesquisa
Económica e Política de Washington, criticaram o relatório da OEA, dizendo que
mesmo que os votos em discussão fossem para a lista da oposição Evo Morales teria
ganho.
A censura prolonga o envolvimento da União Europeia e da França. O
Parlamento Europeu recusou-se a incluir o termo "golpe de Estado" na
agenda do debate sobre a situação na Bolívia. Federica Mogherini, chefe de
política externa da UE, reconheceu o golpe por evitar o "vazio do
poder".
Desde então, o representante da UE, Leon de la Torre, está ao lado da
ditadura.
André Chassaigne, deputado comunista, enviou uma pergunta escrita ao
governo, perguntando se as intervenções da UE e da França pretendem "participar e ajudar a restaurar o
estado de direito ou pressionar os eleitos da maioria para que se submetam". Pede
que " se informe imediatamente a
representação nacional sobre o significado real, o conteúdo e as medidas
tomadas pela França e pela União Européia na Bolívia".
Quanto à administração Trump, organizadora dos bastidores do golpe, deixa os
seus cúmplices fazerem o trabalho sujo.
Denegridos e ameaçados, os deputados e senadores do MAS, maioria de 70% na
Assembléia Plurinacional, votaram em novas eleições que a UE, comprometida no
reconhecimento do golpe, estava com pressa de anunciar. O que quer dizer
quando o exército invade o campo para semear terror? Que prisões e
desaparecimentos se multiplicam?
A intervenção da porta-voz da Assembléia MAS, Sonia Brito, que reflecte veemência,
foi censurada no Twitter. No Senado, um seu colega, em declaração ambígua
e precipitada, disse: "Há relatos na
imprensa de que o grupo radical fez um acordo com a oposição. Isto está
errado. Este não é um pacto ... Não vou contradizer a cobertura do governo
de transição. (...) não acho é que um governo de transição possa expulsar cidadãos,
cause 32 mortos, mais de 780 feridos, prenda mais de 1.000 pessoas, acuse
jornalistas de sedição."
Os golpistas ameaçaram promulgar, na segunda-feira, um decreto para
anunciar um outro escrutínio se o Parlamento não aceitar as suas condições.
Quais condições? Basta ver o gabinete de marionetes fazendo o sinal do
WP (White Power) da "supremacia branca" durante a execução de
"juramento", para entender o seu objectivo: instalar permanentemente
um regime racista e fascista.
"Se deixarmos acontecer o que está
acontecendo na Bolívia, isso acontecerá em todos os lugares", disse José Luis
Zapatero, ex-presidente do governo de Espanha. O aviso lembra os
antifascistas, artistas e intelectuais da década de 1930. O véu negro da comunicação,
o silêncio da elite, o papel da UE estão a preparar-nos para amanhãs de
pesadelo, porque é também de nós que se trata. A besta imunda está de
volta. A história ensina que é impossível domá-la.
Maïté PINERO
Ex-correspondente do L’Humanité
em Havana
(tradução S.R.)