Bloquear botão direito do mouse: Bloquear seleção de texto: Bloquear tecla Ctrl+C/Ctrl+V: Bloquear arrastar e soltar:

Seguidores

domingo, 23 de agosto de 2020

NARCISA AMÁLIA DE CAMPOS





Perfil de escrava



Quando os olhos entreabro à luz que avança,
Batendo a sombra e pérfida indolência,
Vejo além da discreta transparência
Do alvo cortinando uma criança.

Pupila de gazela - viva e mansa,
Com sereno temor colhendo a ardência
Fronte imersa em palor...Rir de inocência,
Rir que trai ora angústia, ora esperança...

Eis o esboço fugaz da estátua viva,
Que - de braços em cruz - na sombra avulta
Silenciosa, atenta, pensativa!

Estátua? Não, que essa cadeia estulta
Há de quebrar-se, mísera, cativa,
Este afeto de mãe, que a dona oculta!



- Narcisa Amália, em "Nebulosas". 1872.




Biografia AQUI

sábado, 22 de agosto de 2020

ANILDA LEÃO




À procura da infância




Procuro ouvir na voz do vento
o eco perdido da minha infância.
E no riso franco das criancinhas
eu vislumbro o meu riso antigo.
Procuro nas ruas desertas e silenciosas,
o canto alegre das cirandas
e as minhas correrias do tempo recuado.
Dentro daquela avenida asfaltada,
onde rolam automóveis de luxo,
eu busco a minha ruazinha feia e pobre.
Procuro ver nas bonecas de hoje,
tão lindas, de tranças sedosas,
a bonequinha de trapo que eu embalei no meus braços.
Procuro encontrar no rosto das neocomungantes 
traços de minha inocência
e a primeira emoção daquela que ficou no tempo.
Procuro descobrir, desesperada,
na face ingênua das crianças
a minha pureza perdida.
Procuro em vão, pois não encontrarei jamais
vestígios da minha infância feliz,
que os anos guardaram no seu abismo.




- Anilda Leão, em "Chão de pedras". Maceió: Caetés, 1961.



Biografia e outros poemas AQUI

terça-feira, 11 de agosto de 2020

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA


GUARDA TU AGORA O QUE EU, SUBITAMENTE , PERDI


 Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi

talvez para sempre ― a casa e o cheiro dos livros,

a suave respiração do tempo, palavras, a verdade,
camas desfeitas algures pela manhã,
o abrigo de um corpo agitado no seu sono.

Guarda-o
serenamente e sem pressa, como eu nunca soube.

E protege-o de todos os invernos ― dos caminhos
de lama e das vozes mais frias. Afaga-lhe
as feridas devagar, com as mãos e os lábios,
para que jamais sangrem. E ouve, de noite,
a sua respiração cálida e ofegante
no compasso dos sonhos, que é onde esconde
os mais escondidos medos e anseios.

Não deixes nunca que se ouça sozinho no que diz
antes de adormecer. E depois aguarda que,

na escuridão do quarto, seja ele a abraçar-te,
ainda que não te tenha revelado uma só vez o que queria.

Acorda mais cedo e demora-te a olhá-lo à luz azul
que os dias trazem à casa quando são tranquilos.

E nada lhe peças de manhã ― as manhãs pertencem-lhe;
deixa-o a regar os vasos na varanda e sai,
atravessa a rua enquanto ainda houver sol.

E assim
haverá sempre sol e para sempre o terás,
como para sempre o terei perdido eu, subitamente,
por assim não ter feito.

 

Mª do Rosário Pedreira

in A casa e o cheiro dos livros (Quetzal, 1996)

in Poesia reunida (Quetzal, 2012


Biografia  AQUI

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

LILIAN AQUINO

Foto da poetisa


Indigesto


Como um comprimido
engulo este dia.
De oito em oito horas
me lembro
não há remédio
a não ser comer
esta demora que a vida leva
pra curar uma dor
Meus dentes estão moles
como balas de goma
impossível mastigar
estes segundos





Biografia e outros poemas AQUI