14 de dez. de 2010

Para não mais beijar

Nem línguas, nem lábios, nem bocas,
mas vermes lentos,
lesmas quentes:
acasalamento
de moluscos sem concha
entre os dentes.

13 de dez. de 2010

Terra Incognita

Como se fosse eu navegante
do tempo do Descobrimento;
você Porto Seguro e eu caravela;
como se fosse eu entrada, bandeira,
e você Pindorama,
demarco, desbravo.
Você reclama, mas deixa.
Te estudo, te exploro.
Você se revela.
Abro trilhas na floresta,
mapeio a sua costa,
cada palmo do seu território.
Você protesta, mas gosta.

10 de dez. de 2010

Seios

Desculpe se pareço distante,
perdoe a distração,
o olhar alheio...
(não há atenção que resista
ao chamado dos seus seios)

7 de dez. de 2010

Taras

Inventa-me, amor, uma tara sem par.
Desvenda o universo das parafilias.
Revira grimórios, estelas, papiros,
revela em antigos mistérios e ritos
fetiches quaisquer que a nós dois enfeiticem
(é que o amor, meu amor, quase a tudo resiste,
mas não à armadilha fatal da mesmice).

6 de dez. de 2010

Toponímia

Pauliceias, São Paulos e Sampas
as há aos milhares, milhões.
A minha é a mais suja e a mais pura;
a um só tempo é a mais rude e a mais santa.
A minha São Paulo é a mais linda
e atende, pagã e profana,
apenas por Piratininga.

2 de dez. de 2010

Da Temática

Desde que a gente é gente,
desde que o mundo é mundo,
só tem importância um tema,
um só assunto interessa.
O resto? Ora, o resto!
São coisas que a gente inventa
pra ajudar a passar o tempo em que não dá pra fazer sexo.

26 de nov. de 2010

Cana

Que pensaram as araras,
divisando ao longe as naus
naquele dia de abril?
Que terão pensado as onças,
as tainhas e os saguis
quando os botes do homem branco
vieram dar ao litoral?
Teriam previsto o destino?
Teriam sentido que ali
começava a impor-se a ordem?
Quem sabe se anteviram o final
escrito nas entrelinhas
das mensagens de Cabral
e da carta de Caminha?
Se pressentiram o fim do caos,
do caos darwinista,
do caos colorido,
do caos tropical?
Terão percebido, aquele dia,
que logo, bem logo veriam,
no lugar do Santo Caos,
monocultura, monotonia?

22 de nov. de 2010

Busca

Busco sem sucesso,
mas insisto e não descanso
enquanto a busca não tenha fim:
em algum lugar desse deserto branco,
vinte e uma polegadas, wide-screen,
a musa se esconde entre pixels,
dá risada e faz pouco de mim.

21 de nov. de 2010

Aterro Sanitário

Entre os dejetos e os descartes
(Darwin ou Lavoisier?),
no meio daquilo que ninguém quer
bem no meio, ali,
daquilo que seria um hodierno sambaqui,
o mais banal dos embates.

Cravam as presas pequeninas,
arrastam garras e dentes
nas carnes do oponente,
dois ratos e uma criança com fome.

Quem ganhar come.

18 de nov. de 2010

Skyline

Silhueta geométrica
contra o fogo do poente.
Um perfil em tons de cinza
sobre fundo incandescente.
Um retrato da cidade –
sucessão interminável
de estantes de guardar gente.

5 de nov. de 2010

Cúpido

Cúpido, peço e não mo recusas:
entre as curvas
me revelas e descubro
teu tesouro mais oculto.

Cubro-te: atinges o cume
e sucumbes em decúbito.

4 de nov. de 2010

Alzheimer

Além das rachaduras da fachada.
Além dos portões,
do ranger das dobradiças,
depois do hall de entrada:
o velho salão.

Que é feito das festas
onde hoje há só teias e traças?
Onde hoje poeira e luz baça,
outrora boleros,
outrora foxtrotes e valsas.
Que é do rodar de vestidos?
Dos tules e tafetás?
Das risadas dos convivas?

Nada resta no velho salão
a não ser a vaga memória
daquilo que foi um dia:
o centro da casa em ruínas.

No meio do assoalho,
uma joia esquecida
brilha de vez em quando
sob a luz das claraboias,
e o salão se lembra e chora.

31 de out. de 2010

Gás

Talvez um poema lhe saia do peito,
Talvez venha a nós, outrossim, do intestino.
Pra mim, o poema biscoito mais fino
É o tal que se faz, não aquele que é feito.

E assim lhe respondo, contesto-lhe o pleito:
Não pode um poema, lhe indago, menino,
Fazer-se por si, prescindir raciocínio,
Nascer como espirro, um arroto ou um peido?

Não pode um poema fazer-se, de fato?
Vir não da cabeça, mas sim das entranhas?
Fazer-se espontâneo, sem truques nem manhas,
Qual faz-se uma bufa, ou um traque, ou um flato?

Nos vir por acaso, acidente, de chofre,
Malgrado o aroma de alho ou de enxofre?

28 de out. de 2010

99% de Transpiração

Poemas escritos com esmero:
aqueles que fazem pensar
no autor acordado até tarde,
cioso do ritmo e do metro,
contando elisões e hiatos,
morrendo de medo de errar,
confuso entre técnica e arte.

(poeta esforçado é um saco).

16 de out. de 2010

P:P-P na Rádio Senado

O programa Prosa & Verso, da Radio Senado, apresentado por Marco Antunes e Tuka Villa-Lobos, teve um especial de quase 20 minutos sobre o Projeto: Palavra-Porrada, que organizo junto com a Lúcia Gönczy.

Dá pra ouvir e/ou baixar no site da radio:

http://www.senado.gov.br/noticias/radio/programa.asp?COD_PROGRAMA=11

Ars Retorica

Me convenço,
nos raros momentos
de calma e bom-senso,
ser, sim, o silêncio
o melhor argumento.

22 de set. de 2010

Condenado

Só o que fazia era urrar. Ou tentar urrar: não ouvia a própria voz. Debater-se? Como, se qualquer movimento era impossível? Então urrava, urrava por dentro. E só.

Não sabia como tinha ido para o inferno, ou porque. Surpreendia-se, aliás, já que nunca acreditara em vida após a morte, que dizer do inferno como o concebiam os cristãos. Surpreendia-se, que fique claro, nos breves períodos em que tinha lucidez o bastante para surpreender-se com qualquer coisa. Surpreendia-se entre um e outro dos seus já amados surtos de inconsciência completa que a dor causava.

Qual teria sido seu pecado, imaginava, para merecer aquela punição? Privado da visão, como de todos os demais sentidos – a não ser pela dor, a mais completa e perfeita dor, a dor de todas as dores –, não o podia comprovar, mas tinha certeza: sua pele havia sido arrancada e a carne nua passava o tempo mergulhada em óleo fervente. Todo o tempo.

Tempo. Que era o tempo? Quanto tempo? Não podia julgar. Imaginava que o tempo não fazia muito sentido no Inferno, se era eterno. Eternidade. Eternidade e dor eram tudo. Eternidade, dor, urros internos e nada mais.

********

Na ante-sala da UTI do setor de queimados, a enfermeira tranquilizava a família:
– Ele não sente dor nenhuma, está em coma profundo.

11 de set. de 2010

A Musa Muda

Às vezes, a musa
– por pura pirraça –
não dá o ar da graça,
nos ignora, reclusa,
e desaparece.

E não há o que a faça
– súplica, prece,
berro, ameça –
mudar de conduta:
só vem essa vaca,
só fala essa puta,
se bem lhe apetece.

9 de set. de 2010

Pássaro

De olhos vazados, a musa
debate-se, urra – cativa.
Destroça seu rosto com as unhas.

O grito da musa no escuro:
lamento de dor e loucura.

(a musa, canário em clausura)

6 de set. de 2010

Barbaridades

Conhecermo-nos na cama tu e eu de olhos vendados,
descobrirmo-nos no escuro pelo toque, em Braille, às cegas.
Te fazer gritar e, após, enquanto em gozo ainda ofegas,
começar tudo de novo, mas, agora, do outro lado.

Despejar sobre o teu corpo mel e leite condensado,
explorar, com boca e língua, cada dobra, curva e prega,
e jamais nada negar a quem jamais nada me nega:
oras, bolas, convenhamos, o que pode haver de errado?

Ter-te assim não sabe a vício, baixaria, nem maldade.
Desbravar a tua pele, conhecer cada orifício,
mapear o teu prazer e toda a tua anatomia --

é normal para um casal que tanto ama ter vontades.
E os pudicos que criticam e que dizem ver mal nisso,
não os culpo: sinto pena. Têm inveja, é o que eu diria!

3 de set. de 2010

Escolha

Não creio em pecado:
prefiro o profano
ao santo e ao sacro;
o laico ao sagrado;
o século, o sexo
ao céu e ao casto.

Trago-me ereto –
jamais genuflexo.

2 de set. de 2010

Desafio dos Escritores - I Provocação (Poesia)

I - SOBRE AS NOTAS

A distribuição das notas foi normal. Dividindo as notas totais por quatro e arredondando para intervalos de meio em meio ponto, 19 poemas (ou seja, mais da metade) ficaram na faixa mediana entre 7,5 e 8,0.



À medida que o Desafio avance e tenhamos mais dados, vou passar a incluir, além do gráfico de distribuição, outro em linhas que dê aos participantes uma representação visual do seu progresso.

Cada jurado tem um ponto de vista diferente e é natural que haja variação entre as notas. Na primeira Provocação, só houve diferença muito grande (2,5 pontos ou mais) entre as notas de três poemas, todos do Grupo 1. Nos três casos, a menor nota foi a minha e a maior foi dada pela Prof.a Eneida. Também nos três casos, os dois outros jurados concentraram-se na vizinhança de algum dos dois extremos.

A pouca divergência entre as notas prova que embora avaliar um poema envolva um componente subjetivo, também depende de critérios objetivos – e são esses que predominam. É disso que vamos falar daqui pra frente.


II - SOBRE O TRATAMENTO DADO AO TEMA

A maioria dos textos enviados (24 dos 34, ou 70%) adotou a solução óbvia do “mimimi” poético, a fórmula do “Oh, como a humanidade é má!”. Os trabalhos que procuraram afastar-se das trilhas já batidas foram beneficiados com notas de modo geral melhores – a média dos poemas mimimi foi de 30,1 pontos; a dos outros foi de 33,3. Ou seja, galerinha: quem evita as soluções fáceis tende a fazer mais pontos. O leitor não tem interesse em ler algo que já leu milhares de vezes antes.


III - SOBRE OUTROS FATORES OBJETIVOS DE AVALIAÇÃO

Outra coisa que prejudicou alguns dos participantes foi abusar dos adjetivos – os que apresentaram esse deslize tiveram média de 29,0, contra 34,4 dos que foram mais parcimoniosos (claro que a coisa, aí, fica meio subjetiva: o que é abusar dos adjetivos?). Não fiz os cálculos para lugares comuns, rimas pobres e erros de português, mas meu chutômetro diz que também para essas características deve haver uma diferença grande em favor dos que as tenham evitado.


III.1 - Adjetivos

Houve dois casos extremos. Num, seis ocorrências nos oito primeiros versos de um só poema: “música suave”, “planeta febril”, “toque gentil”, “novos ares”, “verdadeira mensagem” e “verdes mares”. O mesmo texto também traz “coração sedento”, falsos profetas”, “deserto infinito”, “desafio parco e restrito” e “estranho universo torto”. No outro, sete ocorrências nos oito primeiros versos: “corpos trasladados”, “mentes enfadadas”, “teias emaranhadas”, “correntes enferrujadas”, “ordem invisível”, “muro inefável” e “chuva agradável”. Além desses dois, outros poemas também exageraram um pouco nesse quesito.


III.2 - Lugares comuns, clichês e etc.

O primeiro dos dois exemplos usados para os adjetivos também serviria aqui. E eis algumas ocorrências encontradas em outros textos: “lágrima de saudade”, “esquecer um grande amor”, “[a] tempestade passe (...) [o] sol brilhe (...) [e] venha meu arco-íris”, “coração pulsa”, “fonte de inspiração”, “plumas ao vento”, “sentimentos adormecidos”, “pulsar o coração”, “abala as estruturas”, “atingir a mudança”, “acreditar não é realizar”, “olhar de criança”, “o futuro existe a quem o procurar”, “só o tempo consegue apagar as marcas”, “sem verdadeiros amigos estamos perdidos”, “mundo cão”, “tudo isso é culpa do homem”, “uma humanidade melhor”, “cidadão [que não] para quando ouve uma (...) canção”, “palavras (...) podem mudar o mundo”, “abra a mente”, “mundo de sonhos”, “acredito no amor”, “pureza dos sentimentos”, “nada está perdido quando acreditamos no amor”, “o mundo não muda”, “velhos meninos”, “grito desumano”, “silêncio cortante”, “a vida é crua e má”.

Parei antes de chegar ao fim, mas acho que dá para ter uma boa noção do que quero dizer. Moçada, um lugar-comum só não vai matar um poema. Mas não tem leitor que aguente quando eles abundam.


III.3 - Rimas

Não existe nenhuma lei que obrigue poema a rimar! Gosto de rimas e as uso bastante (até demais, há quem diga), mas não acho que sejam absolutamente necessárias e não vou desgostar de um poema só porque não as tem. Por outro lado, rimas forçadas me incomodam muito, sejam aquelas já carcomidas de tão comuns (pobres ou não), sejam as que, para ocorrer, exigem uma inversão injustificada da frase. Isso quer dizer que vou dar nota baixa para um poema que tenha uma ou outra rima que não me agrade? Não. Mas as rimas incômodas, se predominantes, prejudicam a obra. Alguns exemplos de rimas que, pro meu ouvido, prejudicaram poemas da primeira Provocação:

  • “assobiava / cantava / acabava / plantava / cantava (de novo)”
  • “inseminação / extinção”; “tolerância / beligerância”; “renováveis / inabitáveis”; “interativos / passivos”
  • “febril / gentil”; “infinito / restrito”
  • “dor / amor”
  • “expressar / tentar / verbalizar / imaginar / incomodar / planejar / lutar / realizar / lutar (de novo) / usar / brincar / acreditar / procurar”
  • “criança / esperança”
  • “frustrou / tornou / evaporou / desabou / atolou / vazou”
  • “invisível / possível”; “inefável / agradável”; “dor / indolor”; “ilusão / razão / coração”
  • “alegria / fantasia”; “criança / esperança”, “singelo / belo”; “iniquidade / banalidade”; “canção / emoção”

E por que não dar exemplos do contrário, das rimas que ajudam os poemas a que pertencem? E aproveitar a deixa para tratar, também, de brincadeiras que alguns participantes fizeram com categoria. Poeta, pra mim (eu sei, eu sei, já disse isso um monte de vezes antes), é quem faz malabarismo com as palavras. Mas não é só a mim que agrada esse tipo de coisa e não surpreende que os poemas em que se encontram os exemplos adiante tenham tido notas totais bem altas.

1) Em “Opróbio” (Persefone1202), uma bela aliteração na quarta estrofe, com “chuva / cheiro / chão”. Ainda mais legal porque o ch-ch-ch faz pensar em chuva. (Obs.: precisa tomar um pouco de cuidado com esse recurso: gosto de aliteração, mas há quem não goste; e, em excesso, costuma ser cansativo).


2) “The Wind is Over” (Olívia) não recorre a rimas óbvias. Mas é um dos poucos textos dessa etapa que usou rimas toantes e rimas internas. Por exemplo, nos três primeiros versos, temos:

“fArtas (...) sentIdos

(...) abIsmo (...) palAvras

reduzIdas (...) migAlhas”

Em seguida vem uma toante entre “respostas” e “agora”; depois, uma interna entre “diante” e “diamantes”

Uma coisa bacana é “ao raiar do novo vírus”. A gente começa a ler o trecho, pensa automaticamente em “raiar do novo dia”, se prepara para engolir um chavão e tem uma bela surpresa quando o chavão não vem.

Outra coisa bacana: “diamantes eram só vidro barato ... espatifados ... nem de tapete serviram para o seu amor passar”. A autora – ou o autor, vai saber – pega a musiquinha “se essa rua fosse minha” e vira de ponta-cabeça. Não tem como não gostar.


3) Em “Tempestivo” (Rainha), temos, logo de cara, “olhar para os lados” / “olhos desconfiados”. Mais adiante, uma imagem bem legal em “bilhares de pixels”


III.4 - Ortografia e Gramática

Não houve um número muito grande de erros ortográficos. Mas os gramaticais apareceram em profusão. É importante tomar muito cuidado com verbos (misturar 2a e 3a pessoa, por exemplo, só pode se você souber muito bem o que está fazendo), pontuação (uma vírgula a mais ou a menos pode mudar o sentido de uma frase) y otras cositas más.

Entre um poema excelente com erros de português e outro medíocre sem erro nenhum, ganha o primeiro. Mas entre dois poemas igualmente bons, é natural que vença o que estiver mais bem escrito.


III.5 - Ritmo e Métrica

Achei essa primeira rodada bem fraquinha em termos de ritmo. Muitos dos poemas não tinha ritmo praticamente nenhum. Os que tinham apresentaram, frequentemente, tropeços graves.

E não tinha nenhum poema metrificado! Nenhunzinho! Snif, snif...


III.6 - Outros

Vou deixar este último item para tratar de coisas que não encaixam nos anteriores, mas que acho que merecem destaque.

Uso de palavras “esquisitas” – quando foi a última vez que você ouviu alguém dizer “arrebol”? Pode ser implicância minha, mas dar de cara com uma palavra assim tira boa parte da graça de um poema. E “verbalizar”? Tudo bem, aposto que só na semana passada você deve ter escutado essa umas dez vezes. E aposto que foi mal usada em todas elas.

Redundâncias, pleonasmos, tautologias – “Não é loucura, nem insanidade”. Isso é mais ou menos como dizer “não é abacaxi, nem ananás”. O leitor fica com a nítida sensação de que o poeta está só enchendo linguiça.

Uso de maiúsculas – houve só um caso até agora (que me lembre – tou fazendo isso aqui meio de memória), mas não custa avisar. Tem gente que gosta de enfatizar uma palavra qualquer do texto com maiúsculas. Acho que é um recurso meio preguiçoso: um poeta deve ser capaz de dar a ênfase desejada usando apenas o texto, sem recorrer a maiúsculas, negrito, itálico (que deve ser usado em casos específicos, como termos em língua estrangeira, por exemplo) e, acima de tudo, letrinhas coloridinhas.

Repetição – Repetição é algo que se deve evitar, ou usar com grande parcimônia. Costuma cansar o leitor. Há exceções? Há. João Cabral de Melo Neto, por exemplo, usou esse recurso em alguns poemas. Mas era João Cabral de Melo Neto e ele podia.

Cacófonos – “A chuva bate, gela”. Hem? Que tem a tigela? Esse tipo de coisa desvia a atenção da leitura: fica difícil entrar no clima pretendido pelo autor quando nos vemos dando risinhos involuntários.

Pontuação “esquisita” – Moçada, fujam das reticências. Também resistam à tentação de usar “??”, “!?” e outras combinações de sinais: é mais ou menos como no caso das maiúsculas – o poeta deve ser capaz de usar apenas o texto para dar a ênfase que deseja.

Verborragia, logorréia e outros sinônimos de som igualmente feio – Diversos dos textos acabaram piores do que (ou não tão bons quanto) poderiam ser porque tanto se estenderam que a ideia central acabou diluída. Se você puder dizer em 20 versos o que está dito em 200, por que não cortar uma boa parte do texto? Ou, por outra, por que se dar ao trabalho de esticar até o ponto de ruptura algo que pode já estar bom? Lembra da anedota sobre Michelangelo e como esculpia (“tiro do mármore tudo aquilo que não se parece com Davi”)? Às vezes pode ser uma boa tirar do seu texto tudo aquilo que não se parecer com um poema. Ou que não seja absolutamente necessário para o poema.


IV - CONCLUINDO:

Acho que deu pra entender, né?


Seja original:

nas ideias – se te ocorre uma solução óbvia para a Provocação, é provável que ela também seja óbvia para os demais;

nas palavras – evite lugares comuns, chavões e clichês;

nas rimas – evite rimas pobres em excesso (na dúvida, evite rimas).


Não descuide do português:

a língua é a sua ferramenta de trabalho e deve ser tratada com o devido respeito. Se perceber que não sabe uma coisa, estude. Se for usar a segunda pessoa e não estiver acostumado a ela, pergunte-se, antes, se precisa ser mesmo na segunda pessoa. Se precisar, não custa nada consultar alguma fonte confiável para ver se não está cometendo algum erro.


Tenha cuidado especial com ritmo:

É isso, afinal, que distingue um poema de um texto em prosa. Se não sabe bem o que os jurados querem dizer com ritmo, arrume um tempinho para ler – em voz alta! – uma boa quantidade de poemas de autores consagrados.


Finalmente, se der, termine seu poema uns dias antes do fim do prazo e deixe descansar. Antes de enviar, leia em voz alta e como se não fosse seu. Você provavelmente vai perceber sozinho diversos dos problemas de que falei acima, se houver.

31 de ago. de 2010

Cala

(ao avô, mestre e poeta Geraldo Vidigal)
Cala-te, Musa:
não há quem te ouça.
Cala, Cidade:
tua voz nada diz.
Calai-vos, Arcadas!
Quem ousa tanger
a lira partida
do Predestinado,
do Mestre Aprendiz?

Cala-te, Musa.
Imploro-te: cala.
É inútil teu pranto,
de nada nos vale.
De que te adianta?
Cala-te, é tarde:
teu vate descansa.

27 de ago. de 2010

Sem Trégua

Quem mediará o conflito?
Quem imporá o armistício?
Quem poderá dar abrigo,
conceder santuário a este aflito,
se a guerra é minha comigo?
Que força? Que deus?
Quem conterá o inimigo,
separará eu e eu?

Observador

Estalidos sobre o asfalto.
O staccato do teu passo
me toma os ouvidos de assalto.

Frio na barriga, arrepio.
Tornozelos, panturrilhas.
Escalas o meio-fio.

Flutuas de salto alto.
És pernas e saia curta:
cada passo, um sobressalto.

23 de ago. de 2010

Fofuchice I

Um segredo pra amar bem
(amor é ciência e arte):

O saber apaixonar-se,
again and over again,
por um só e o mesmo alguém.

19 de ago. de 2010

Barfly

Sonhava ter no copo dois dedos
das águas abençoadas do Lethes
e esquecer-se de si em degredo;
e achar refúgio, ainda que breve;
mas é a visão da própria dor
que o fundo do copo reflete.
E a boca do copo é o Equador:
abraça seu mundo e o circunscreve.

16 de ago. de 2010

Trouxa

Quem mandou, também, paspalho,
resolver largar o cigarro
logo agora que ela foi viajar a trabalho?
Agora fica aí,
mal-humorado pra caralho,
dormindo toda a tarde,
passando a noite acordado,
sem saber se essa azia
é por causa da saudade
e da casa vazia,
ou se é só ansiedade
e hiponicotinemia.

15 de ago. de 2010

Tudo

Não te vou comparar às estrelas,
nem ao fresco do sereno,
à luz limpa da lua cheia;
qualquer uma dessas coisas
por si só é mesquinha e pequena.
(és a noite)

E não vou dizer de ti que és minha
e, quando não mais o fores,
jamais pensarei, “a tinha”.
Quem, afinal, poderia
– sendo um só – para si ter-te toda?
(és a vida)

E sequer julgarei que és apenas
a mulher que me chama de amado.
Quem sou eu para impor-te cadeias?
Não és só quem me abraça no escuro,
nem somente quem dorme ao meu lado.
(és-me tudo)

14 de ago. de 2010

Abscesso

Irritante, perigosa, um corpo estranho,
como areia que penetra na ferida,
uma frase se insinua pelo ouvido
alojando-se no fundo do meu crânio,
onde agrega a si mais frases e palavras
e um dia, finalmente, estoura em verso.

O processo formativo do poema
se assemelha, muitas vezes, ao do abscesso.

11 de ago. de 2010

Auto-jabá: entrevista!


O Marcelo Novaes me entrevistou para o seu "Bloco de Notas". Tá aqui.

6 de ago. de 2010

Da Responsabilidade do Autor

“Mas, menino, isso lá é poesia?”,
reclamam os que veem,
no que escrevo, baixaria.

Escrever desse jeito, afirmam,
não condiz com alguém assim,
quatrocentão, de boa estirpe.

Mas que culpa tenho eu
se a musa às vezes inventa
de brindar-me com um strip?

5 de ago. de 2010

Debalde

Procurei na poesia,
nas palavras do vate –
fosse no literal,
fosse nas entrelinhas –
um sinal qualquer de verdade.

Mas debalde:
todo poema é mentira;
todo poeta é uma fraude,
mitômano armado de lira.

2 de ago. de 2010

Trajeto

Parto do alto.
Paro atrás da orelha esquerda,
onde se concentra, intenso,
algum truque olfativo de Kenzo.

Toco a nuca, onde o cabelo
gradualmente se transforma
na penugem fina
que te desce clara pelas costas;
na penugem que se eriça
quando explora minha língua
cada vão da tua espinha.

Olho pra cima
ao som de um gemido teu.
Por um segundo assim me distraio
(por cima do ombro direito
tu me olhas de soslaio).
Acolho nas mãos os teus seios,
de novo enceto a jornada
a um destino certo — tu —
em que me perco e perco meu norte

a caminho do teu sul.

Lullaby

O vento assobia
ao dobrar cada canto
da escadaria.

O vento convida,
com sua cantiga,
a ninar.

E não mais despertar.

28 de jul. de 2010

Inconstante

Se uma hora queres isto,
logo após não queres mais
e ora dizes, "quero aquilo",
ora dizes, "tanto faz".
É inconteste teu direito,
prerrogativa de fêmea:
ser pra sempre, por enquanto,
o que nunca foste antes,
inconstante o tempo todo,
permanentemente efêmera.

20 de jul. de 2010

A um Estudante Desencantado

[este é um dos textos com que participei do 5º Desafio dos Escritores. O tom cômico foi a maneira que encontrei para lidar com o tema — aconselhar um estudante de economia — sem descambar para o recurso óbvio do construtivo e edificante]

Recebi com tristeza, prezado pupilo,
teu bilhete dizendo que tu desististe,
que trancaste a matrícula, e isso, e aquilo;
que não mais queres ser seguidor de Adam Smith

No papel de teu mestre, te quero tranquilo:
te retrata e prossegue. Vai em frente e insiste!
Não te deixes magoar por apenas ter lido
essa vil referência à matéria por "triste".

Sim, Carlyle a chamou "ciência triste", de fato,
"deprimente", ou "sombria", por outros relatos,
mas o fez ao falar das ideias de Malthus,
que era, bem sabes tu, pessimista e um chato.

Quem cunhou esse epíteto pouco sabia
que não há absolutos em economia.

15 de jul. de 2010

Tempo

Eterna dança de roda,
um baile estático e mudo,
uma ciranda de rocha.
As pedras dançam sem pressa
e giram junto com o mundo
(seu tempo se conta em eras).

Canta como dança a pedra:
pra si e não para a gente.
A voz da pedra é interna,
sua cantiga é silente.
Antes cantasse mais alto
e desse a quem ouvisse
a voz que vem do basalto
lição, ainda que triste:

"O construtor, sendo humano,
é breve, mortal, finito
(seu tempo se conta em anos,
não é o tempo do granito).
E finda a vida nada sobra
a não ser, talvez, a obra."

13 de jul. de 2010

Legado

Tens aqui a minha carta-testamento.
Com tristeza é que te deixo este legado.
Preconceitos e ideais equivocados
são o triste patrimônio que te lego.
Este dote que confio a ti, lamento,
é o mesmo que a mim antes foi deixado.
O que tens por tua herança é o mesmo fardo
que a mim veio de meus pais e que carrego,
acrescido das escolhas que fiz, cego,
convencido de que defender o lado
que pensava ser o meu era correto.

Me perdoa se te deito sobre as costas
a partilha que ora vês a ti imposta.
Olha bem o que te deixo por espólio,
o quinhão que te restou dos meus enganos:
as perguntas a que nunca dei resposta,
estas crenças que serviram-me de antolhos
e as mentiras que aceitei durante anos,

Dá ouvidos às palavras que te digo,
te liberta da ilusão a que te apegas,
o conselho que te dou, guarda contigo:
se tu tomas teu irmão por inimigo,
se as fronteiras entre esta e outras terras
são tão falsas quanto falso é o perigo,
de que importa se é vencida ou não a guerra?

Este é o saldo da minha vida que te cabe,
o saber, ainda em tempo, da verdade
pra que, espero, ao sabê-la não cometas
tantos erros quanto eu em tua idade.
Que tu possas ter por pátria este planeta
e que tenhas por nação a humanidade.

11 de jul. de 2010

Misantropo

Covil de concreto e de vidro,
arquivo das perdas e danos
causados por mim a mim mesmo.
Covil de concreto em que vivo
dos frutos de erros e enganos.
Caverna de vidro em que habito,
varado de dor e tormento.

Recebo a visita do vento
que vem me fazer companhia.
Relembra as escolhas que fiz,
sementes plantadas há tempo,
brotadas em erva daninha.

Procuro por ecos de mim
na torre de vidro e concreto –
suplentes no mundo moderno
do mítico e puro marfim.

Abraça-me o vento no escuro
enquanto a mim mesmo maldigo.
E os ecos de mim que procuro
(em vão) em milhares de livros
não há, vez que são, eu bem sei,
os filhos que nunca terei.

10 de jul. de 2010

Ímpio

Como vim parar aqui?
Não sei ao certo, confesso.
Já tentei me recordar,
mas sem nunca ter sucesso.

Deve ter sido acidente,
ou então morte matada,
vitimado em latrocínio
num farol, de madrugada.

Afinal, meu hemograma
mais recente foi perfeito
e o doutor me disse são
depois de auscultar meu peito.

O que quer que tenha sido,
disse à vida "até a vista";
faleci, ou fui a óbito,
Como dizem os legistas.

Qual não foi minha surpresa
- eu, que fora sempre incréu -
ao me ver ali, de cara
pro portão que dá pro Céu.

E pensei com meus botões:
"Poxa vida, quem diria
que um ateu tal como eu
estaria aqui um dia?"

E foi justo nessa hora
Que acenou pra mim um anjo
Tomei isso por convite,
Sem demora fui entrando.

"Alto lá!" gritou o tal.
"Tá pensando que é assim?
Aqui temos um processo,
só se entra com check-in."

Maldizendo os burocratas,
lá fui eu tentar a sorte.
E avisei de pronto o gajo:
"Olha, tou sem passaporte."

E o anjão me disse, "Filho,
Isso, aqui, não é problema
o processo é muito simples,
venha cá e nada tema."

Me estendeu um papelzinho
E me deu uma caneta:
"Bota aqui sua rubrica
pra dizer 'tchau' ao capeta."

Foi então que vi ao longe,
Passeando de mãos dadas,
Entretidos em conversa,
Mussolini e Torquemada

Perguntei, então, ao anjo,
"Me responda, ó, potestade:
por que estão aqui os dois
em vez de fritar no Hades?"

Me subiu, então, o sangue
e me deu siricotico.
Rasguei o contrato ao meio
e bradei, "Aqui não fico!"

"Palhaçada!", prossegui.
"Olha aqui, seu querubim,
uma vizinhança dessas
com certeza não é pra mim".

Veio então a trovoada,
pretejou o céu anil,
o anjo deu uma gargalhada
e o chão do céu se abriu.

"Vai-te embora!" ele gritou,
me empurrando, a altos brados.
Ainda pude responder,
"Pois vou, sim, e é de bom grado!"

Refleti durante a queda,
"Que se dane essa doutrina.
Me recuso a ser comparsa
disso que ali se ensina."

Recebeu-me aqui no inferno
um capeta sorridente.
"Que demora", disse ele.
"Vem aqui falar com a gente!"

Resignado à danação,
Outra vez me vi surpreso:
encontrei nas profundezas
meus heróis da vida em peso.

Não que aqui seja perfeito
(a bagunça é muito grande),
mas divido a eternidade
com Platão, Sidarta e Gandhi.

9 de jul. de 2010

Escuta

Se pensas que não tens fuga ou saída,
permite que meus versos te encorajem.
Escuta quem já fez essa viagem,
retoma já as rédeas da tua vida.

Reclamas da existência de criado,
mas dela não escapas por temor.
Tu és o teu senhor e o teu feitor:
és tu quem te mantém escravizado

Preferes a anonímia da manada
a erguer tua cabeça em desafio.
Por como te conduzes te avalio:
ao ser mais um apenas, tu és nada.

Tamanho é teu pavor de andar sozinho
que renovas teus grilhões a cada dia:
se pensas, atrevido, em alforria,
castigas-te a ti mesmo em pelourinho

A algema que te impões te faz covarde.
Acorda, Zé ninguém, que já é tarde!
Te afasta do rebanho de que és parte,
ou pasta em servidão até o abate.

8 de jul. de 2010

Pretérito mais que Perfeito

A memória? Ora, a memória!
É minha e dela faço o que quero.
E se recordo o que bem me apraz,
Zás-trás apago e reduzo a zero
Tudo aquilo a que não me apego:
Sou o autor de minha história,
Editor de tudo o que lembro.
O que incomoda, jogo fora
E o que falta, trago pra dentro,
De tal maneira e sorte que, agora,
Se me der um déjà-vu, um flashback,
Não restarão quaisquer momentos
Em que eu erre, ou falhe, ou peque.
Só lembrar do que é bom, por que não?
E se eu por acaso, algum dia,
Ceder à tentação da autobiografia,
Sairá com certeza uma obra de ficção.

6 de jul. de 2010

Paleontologia

Os amores de ontem se foram.

Quando muito,
emergem vestígios
como ossadas na falésia:

Os restos petrificados
de monstros e feras
terrores de outrora
que a morte fez dóceis.

Os amores de ontem? São fósseis.

Lamento da Mulher que não Fui

(Este texto ganhou o prêmio de originalidade no 5o. Desafio dos Escritores. A "missão" era escrever algo como as memórias póstumas de alguma personagem da literatura. A que me coube por sorteio foi Diadorim)

Eis que deito-me em leito de terra
Por seis palmos de terra coberta
E me vejo a viver sem ter fim
O caminho que fiz nessa vida.

Por Reinaldo me fiz conhecida.
Do meu nome de pia, Maria
Deodorina Bettancourt Marins,
Quase todo me fiz abrir mão
E me fiz conhecer Diadorim
Por aquele que foi para mim
Céu e inferno no chão do sertão.

Esta terra que agora me cobre
A um só tempo me pesa e me acolhe,
Qual talvez me acolhesse, pesado,
Riobaldo em mim sobre a cama.

É perdido pra mim Tatarana,
Mas de que me adianta chorar
Se fui eu que escolhi esse fardo?
Se meu choro só os vermes terão?
Se eu não o quis ter ao meu lado
Por marido em vez de soldado?
Meu é o pranto no chão do sertão.

Esta cova onde faço morada,
Esta cama na qual fui velada,
É onde durmo esse sono sem paz
Que me traz a ferida mortal.

Encontrei no sertão meu final
No cumprir da demanda sagrada
De matar quem tirou-me meu pai.
Mas matar quem o deitou por chão
Me custou preço alto demais:
No cruzar cá-pra-lá de punhais
Caí morta no chão do sertão.

Neste chão que hoje é meu abrigo
Só me resta chorar pelo amigo
De quem, mais que tenente, queria
E devia ter sido mulher.

Mas a vida nos faz como quer.
Não teria o jagunço Riobaldo,
Se não fosse minha honra de filha,
Sido meu por marido e varão?
Não teria ele feito família
Ao meu lado e não de Otacília?
Dura é a vida no grande sertão.

26 de jun. de 2010

Op. 15, No. 3

Quando brilha a Lua Cheia
(um pequeno sol gelado)
rodopiam pela noite
dois morcegos, lado a lado,
em seu pas-de-deux confuso.
Acompanham a coruja
que, repetitiva, pia
toda vez a mesma nota;
assobia pros morcegos,
antes de raiar o dia,
o começo de um concerto,
um noturno em Sol Menor.

15 de jun. de 2010

Cantos Vivos

Detesto as palavras redondas:
parecem-me frouxas e gordas
e de modo geral enfadonhas.

Prefiro as palavras agudas,
palavras que tenham arestas,
que saltem da língua afiadas.
Palavras assim como estas.

10 de jun. de 2010

Reciclagem

Se um átomo de carbono
duma molécula de amido
da farinha — cadáver do trigo —
do bocado de pão que mastigo
pode bem já ter pertencido
ao corpo do meu inimigo,
é claro que a vida faz sentido.

6 de jun. de 2010

Hamelin

Nossas crianças se foram, dançantes,
atrás do forasteiro e sua flauta.
Não estivéssemos tão ocupados
celebrando a partida dos ratos,
quem sabe teríamos antes
e a tempo sentido sua falta.

28 de mai. de 2010

Tapeçaria

Entrelaçados,
tu, a trama,
eu, urdidura.
Quase um quadro
tendo a cama por moldura.

Acalanto

Um mundo puro e sem males,
vicissitudes
e defeitos
que resume-se ao teu peito.

Universo sem segredos,
sem temores,
sem receios
que encontro entre teus seios.

Um cosmo livre de erros,
e de culpa,
e de dolo:
aninhado no teu colo.

27 de mai. de 2010

Dicotomia

Tu me exibes cada curva da tua bunda
e te entregas, submetes-te de quatro
e, ao fitar-te assim, mais uma vez constato
em teu corpo a candura mais profunda.

Se, molhada, tu me imploras que te foda
e abres, louca para dar, as tuas pernas,
tenho em ti a minha amada doce e terna
e sei bem que mesmo então és pura, toda.

Quando como essa boceta que ofereces,
As palavras mais imundas que proferes
– e que raro ouvi dizer outras mulheres –
são mais santas que a mais casta e pia prece.

Tu me pedes que te chame de cachorra
e com isso o que te digo é que és amada:
ter-te-ei eternamente imaculada,
por mais que a tua boca cheire a porra.

Tu me juras, ao me dar, ser minha puta
e proclamas sem pudor ser eu teu dono.
Mas contemplo teu semblante, após, em sono
e te sei, dentre as mulheres, impoluta.

25 de mai. de 2010

Dúvida

Trabalhando num texto,
fiquei matutando:
"dátilo" é dátilo
e "anapesto" é anapesto.
Mas não entendo o porquê
de "troqueu" ser iambo
e "iambo", troqueu.

21 de abr. de 2010

Pontos de Vista

Não nos cabe julgar
Coisas ditas no leito.

Afinal, depende do lugar
O que é ou não vulgar.
O que, noutro contexto,
Seria falta de respeito;
O que é certo ou irregular;
O que, como, ou quando dar.

São, enfim, o dito e o feito
Apenas questões de conceito.

16 de abr. de 2010

XXX

Asa-delta em voo duplo, acopladas,
Borboletas se fodem, explícitas.
Hardcore sem pudor das visitas
Pelos ares da sala de estar.

14 de abr. de 2010

Primeira estrelinha que eu vejo....

Quem sabe alguém não me escute:
Quisera houvesse em Brasília
Um prédio como a Bastilha
(allez, enfants de la pute).

Desimportâncias

Conheço o destino dos elefantes
E sei que os tigres estão quase extintos
(Mas é forçoso dizer, e admito,
Tudo isso me soa desimportante).

Discutem-se as ogivas nucleares;
E algum ditador testou hoje outro míssil.
O mundo está cada vez mais difícil.
Mas que importa, se me basta me amares?

Não me diz respeito, se tenho a ti,
Se corre o mundo nova pandemia,
Se nunca terminou a guerra fria
Se a subnutrição assola o Haiti.

Depois penso nisso, outro dia, mais tarde:
eu sinto ainda, no canto da língua,
Um resto do gosto da tua saliva
E tudo é questão de prioridades.

9 de abr. de 2010

A Triste Verdade

Um poema não serve pra nada.
Não paga as contas de condomínio,
Nem as de água, luz e telefone.
Poema é algo que não se come,
Sem sabor, ou valor nutritivo.
E não há um só registro na história
Contemporânea, clássica, antiga
De soneto, de trova ou cantiga
De consequência digna de nota.
Um poema não serve pra nada,
Mas pior que o poema é o poeta:
O poema é apenas a obra
Que o autor por vaidade arquiteta.
Nada há, pois, em todo o universo
Mais inútil que o bardo e seus versos.

5 de abr. de 2010

Anatomia

Há os que escrevem coisas belas,
Construtivas
E morais.
Há quem escreva o que há no peito
E nas almas
imortais.
Coração, pelo que sei,
É uma bomba,
Nada mais.
Quanto à alma, convenhamos,
Se a tenho,
Desconheço.
Me perdoem os sensíveis,
E os bonzinhos
E os carolas,
Mas escrevo com a cabeça
E, às vezes,
Com as bolas.

1 de abr. de 2010

Ambicanhoto

Não dá pra levar muito a sério
quem trave no crânio combate
incessante entre os dois hemisférios.
Seja lá guerra fria ou détente,
Ou quiçá Apocalypse Now.
Acabo ficando eu refém
Da guerra pelo córtex frontal.
Dançando com dois pés esquerdos,
Nas mãos dos meus lobos, brinquedo.
E se quero correr para um lado
Acabo correndo pro errado.
Não podia, enfim, eu dar certo:
Sou canhoto num corpo de destro.

29 de mar. de 2010

Entrelinhas

Esse engenhoso disfarce,
persona que me mascara,
simultaneamente oculta
dos estultos minha face
e aos que sabem ler revela
sem retoques minha cara.

26 de mar. de 2010

Projeto: Palavra-Porrada

Lançado o "P:P-P I Round", com textos de Ana Cristina Martins, Antonio de todos os Cantos, Cairo Trindade, Flá Perez, Flávio UmagumA, Hamilton Brito, Helena Jorge, Jairo Alt, Lívia Abrunhosa, Nestor Lampros, Ogro da Fiona, Paulo Gomes, Rosa Cardoso, Ruy Villani e Ükma, além dos responsáveis pela bagunça, Lúcia Gönczy e Allan Vidigal.

24 de mar. de 2010

Relatividade

Se você não está por perto,
enfurece o próprio tempo
e o relógio, em protesto,
entra em greve: gira

lxxxxexxxxnxxxxtxxxxo

22 de mar. de 2010

Emoldurada

Viro pro lado e vejo
(filme adulto sem cortes,
revista de sacanagem),
em chiaroscuro e água-forte
à luz que vem da janela,
a obra-prima do vernissage.
Ainda sinto seu cheiro
doce e quente sobre a pele.
Ela dá uma de inocente
(nem desenho do Zéfiro,
nem bem óleo sobre tela),
espreguiça e faz que não sente
os meus olhos sobre a dela.

21 de mar. de 2010

S/T

Um amor que se preze é espumante:
como taça de Dom Pérignon,
sal-de-fruta em manhã de ressaca,
ou a boca dum doberman louco.
É inconstante. E é aí que tá a graça.

18 de mar. de 2010

Autoschadenfreude

Pingou pimenta
nos próprios olhos.
Foi ao delírio.

Dessoneto

Tem autor que só escreve quadrado,
Verso e estrofe bem dentro do esquadro,
E que pensa que rima é besteira.

Mas será? Pode ser, eu sei lá...
Cá pra nós, rima pobre me cheira
A desculpa pra mal sonetar.

Já que sei muito bem que não encaixo
Nesses moldes de autor de soneto,
Desmontei seu formato cabresto
E virei de cabeça pra baixo.

Que que foi, com essa cara de tacho?
Se te deixa mais calmo, prometo:
Não esquenta a cabeça com o texto,
Quase tudo o que escrevo é de escracho

5 de mar. de 2010

Cinder Block

Ando pouco me fudendo
Pra essas de estranhamento,
Conteúdo, continente,
Significante, significado.
Se um poema for concreto
Que seja concreto armado.
De preferência até os dentes.

4 de mar. de 2010

Confissão

Esquece o cabelão, as tatuagens,
A cara de mau e a roupa preta.
Esquece, sério, é só personagem:
No fundo eu sou um tremendo careta.

27 de fev. de 2010

Exceptio Veritatis

Essas regras que te impões,
Deflito, recuso e renego.
Sou bússola sem norte, compasso cego,
Régua torta, nível sem prumo,
Exceção dentre exceções:
Aquela que não prova regra alguma.

18 de fev. de 2010

À PQP

Não sei se tenho mais raiva ou pena de quem pensa que basta apenas dividir um texto em linhas pra que passe a ser poema. Ou se tenho mais raiva ou dó de quem escreve coisas com “Ó!”, de metido a poetinha que faz rima pobre e só.

Poeta? Poeta o caralho! É um estuprador da língua o paspalho que faz rima de “ão” com “ão”, que rima no mesmo tempo verbos da mesma terminação. E esses engajados, então? Poetas? Cara, nem fodendo! Panfletariozinhos pobres de espírito, esquecem que ridendo é que castigat mores.

Isso sem falar nesses babacas que se julgam novos Petrarcas só porque escrevem quadradinho sobre aquilo de que já se disse tudo – e foda-se a originalidade. Pra mim, mais poeta é a Tati Bernardi quando escreve sobre ET Pirocudo. Ué, que foi? Se ofenderam? Já vão tarde.

16 de fev. de 2010

Sejamos Realistas

Poupem-me dessa insistência
autoajudística, pentelha,
em ver a taça meio cheia.

O ponto de vista, sabe-se,
otimista ou pessimista,
não faz muita diferença
para quem não sente sede
e bebe de um só gole um cálice
de formicida e diabo verde.

14 de fev. de 2010


(click na imagem para ver o "poema", se é que pode ser assim chamado)

12 de fev. de 2010

Analogias

Virou um amor assim,
verdadeiro e genuíno
como uísque da rua Aurora.
Um amor tão puro,
impoluto e genuíno
quanto o travesti disforme
que se vende na Lineu
(mas que outrora foi menino
que o Lobo Mau comeu)

1 de fev. de 2010

Bronca

Alice, Alice,
Que foi que eu te disse?
“Não prova do bolo, não segue o coelho,
Nem tenta passar pr'outro lado do espelho”.
Te perdeste de vez no caminho que trilhas
De um lado pro outro em país de armadilhas.
Alice, Alice,
Que foi que eu te disse?
Por que não escutas quem bem te aconselha?

Alice, Alice,
Por que não me ouviste?
É falsa a lagarta e o gato, matreiro.
E mentem a lebre e esse tal chapeleiro
(Mas podes contar com a enxurrada de choro
E há um risco real de perder a cabeça).
Alice, Alice,
Por que não me ouviste?
O mundo que sonhas só em sonhos existe

29 de jan. de 2010

Um meio-termo sensato

Resolvi, afinal, o suposto dilema
Que enfrenta o poeta entre a espada e a pena.
Corto cabeças com uma num dia
E no outro, com a outra, escrevo elegias.

19 de jan. de 2010

Lugar Comum

Vou usar e abusar do chavão:
Fazer todo um poema de rimas
Desgastadas, cansadas, cretinas.
Vou rimar “coração” e “paixão”.

Vou usar só palavras banais,
Desfiar rimas burras e pobres
Até que nenhuma mais sobre
No meu velho e surrado Houaiss.

Vou fazer construções qualquer-nota,
E usar, sem ter medo nenhum,
Um milhão de lugares comuns
E as hipérboles mais idiotas.

Não faz mal se for tudo clichê,
Pois no fim resta salvo o poema
Se tiver algo raro por tema
E esse algo, meu bem, for você.

18 de jan. de 2010

Tradução de um poema de W.B.Yeats

MEN IMPROVE WITH THE YEARSxxxxxxxxxxSÃO MELHORES OS VELHOS

I am worn out with dreams;xxxxxxxxxxDe tanto sonhar, canso;

A weather-worn, marble tritonxxxxxxxTritão de mármore gasto

Among the streams;xxxxxxxxxxxxxxxxxxEntre os remansos;

And all day long I lookxxxxxxxxxxxxxE o dia todo miro,

Upon this lady's beautyxxxxxxxxxxxxxSenhora, tua beleza

As though I had found in a bookxxxxxTal qual retratada num livro

A pictured beauty,xxxxxxxxxxxxxxxxxxA tua beleza,

Pleased to have filled the eyesxxxxxGrato pelos ouvidos

Or the discerning ears,xxxxxxxxxxxxxE pelos olhos cheios,

Delighted to be but wise,xxxxxxxxxxxPor ser sábio agradecido,

For men improve with the years;xxxxxPois são melhores os velhos;

And yet, and yet,xxxxxxxxxxxxxxxxxxxMas, não obstante,

Is this my dream, or the truth?xxxxxSerá isto um sonho, ou não?

O would that we had metxxxxxxxxxxxxxAh, ter-te visto antes,

When I had my burning youth!xxxxxxxxEnquanto jovem varão!

But I grow old among dreams,xxxxxxxxMas sonho e passam os anos,

A weather-worn, marble tritonxxxxxxxTritão de mármore gasto

Among the streams.xxxxxxxxxxxxxxxxxxEntre os remansos

11 de jan. de 2010

Niilismo de botequim

Não é qu’eu ‘tava no barzinho
bebendo quieto, sossegado,
quando, pra minha surpresa,
sem sequer pedir licença,
chega Deus e senta à mesa?
E, não bastasse o descaso
com a minha descrença,
‘inda matou minha cerveja.

E eu, “Porra, Eheieh, que saco!
Isso é coisa que se faça?
Quer beber, vá lá que seja,
mas pelo menos pede outra taça!”

Ele deu um sorriso maroto,
roubou meu bolinho de bacalhau,
levantou e disse, “Sê besta, garoto.
Vai esquentar a cabeça com isto?
Foi só um golinho e, afinal,
que importa? Eu não existo!”

8 de jan. de 2010

Marcas

Trago como um distintivo
estas linhas sobre as costas
meio retas, meio tortas,
gravadas na carne viva.

Se entrecruzam cicatrizes
sobre meu dorso marcado
de alto a baixo, lado a lado.
"Mas que absurdo!", dizes.

Explico o que aconteceu:
Mulheres têm longas unhas
E algumas usam as suas
como ferro de marcar: "É meu!"

Se me importo? Ora, não!
Reconheço, claro, a posse
e mesmo que assim não fosse,
são um selo de aprovação.

São testemunha silenciosa
de noites de pouco dormir
que deixa como souvenir
minha amada quando goza.