O Público, vd. aqui, entrevistou Garcia dos Santos, que, dentro de dias, completará 88 anos de idade, contava 39 anos anos no dia 25 de Abril de 1974, e fizera parte do grupo de militares que na véspera, comandado pelo major Otelo Saraiva de Carvalho, instalou secretamente o posto de comando do movimento revolucionário no quartel da Pontinha, em Lisboa. Entre esses militares estava o então tenente-coronel Garcia dos Santos, responsável pelas transmissões (vd. Cronologia da Revolução dos Cravos, aqui).
O general Garcia dos Santos já concedeu outras entrevistas, nomeadamente ao Público em 18 de Maio de 2001, ao Observador em 18 de Junho de 2014, à revista Sábado em 11 de Agosto de 2019. Não me teria a minha paciência consentido observar o percurso deste "militar de Abril" se a mais recente entrevista concedida ao Público não me tivesse suscitado alguma reflexão sobre um golpe militar que imediatamente suscitou adesão pública generalizada e provocou inequívocas alterações na sociedade portuguesa sem, contudo, erradicar alguns dos seus atavismos.
O quinquagésimo aniversário do 25 de Abril de 1974 acontecerá dentro de cerca de nove meses, até essa data e depois dela haverá celebrações de enaltecimento de uma data que será sempre um marco histórico neste país. Daqui a cerca de 3 meses será o 49º aniversário do 25 de Novembro de 1975, uma data maldita para aqueles, militares ou civis, que após o 25 de Abril de 1974 quiseram que o país percorresse um caminho para outra ditadura que o 25 de Novembro de 1975 barrou com a participação do general Garcia dos Santos, e permitiu que a libertação sentida a 25 de Abril de 1974 finalmente acontecesse.
Há várias afirmações de Garcia dos Santos na atrás citada entrevista de Ana Sá Lopes, claramente benevolente, que mereciam contraditório esclarecedor, tanto mais que algumas das afirmações do entrevistado já tinham sido passivamente recolhidas em entrevistas anteriores:
" Um dia perguntaram-me se eu queria participar
numa dessas reuniões com os capitães. “Tenho muito gosto nisso, muito prazer.”
Comecei a assistir às reuniões que ele faziam…. sobretudo discutiam sobre o seu
estatuto político e militar. Nunca na altura falaram da hipótese
revolucionária...
...(hipótese) que veio mais tarde. Fui a várias reuniões até que um dia, numa reunião, houve
alguém que disse “isto só vai” — desculpe o termo — “só vai à porrada”. Foi o
termo utilizado no sentido de resolver os problemas que estavam a acontecer. E
quais eram esses problemas? A guerra estava a avançar cada vez mais na Guiné,
Angola e Moçambique. O pessoal não chegava. Nessa altura, o Governo resolveu
fazer uma coisa que não lembrava ao diabo. Promover os milicianos que ficavam
voluntariamente no serviço militar a oficiais do quadro permanente e a
capitães! E inclusivamente a ficarem com uma antiguidade maior do que os do
quadro permanente, os profissionais militares."
"Isso deu origem a que o pessoal do quadro permanente reagisse. Havia capitães
com o grau de capitão e que eram mais antigos dos que os do quadro permanente e
não tinham, de facto, as qualificações que tinham os do quadro permanente. E
então começou a discussão de que isto tem de se resolver de qualquer maneira.
Inclusivamente “à porrada”, como já tinham dito."
É muito evidente a conclusão que pode retirar-se destas palavras de Garcia do Santos: o 25 de Abril de 1974 consagrou um golpe militar germinado por interesses corporativos, pela exaustão e pela saturação dos quadros profissionais qualificados nas academias militares mas o parto da democratização teria de aguardar cerca de dezanove meses pela passagem de confrontos entre facções militares que atravessaram o "verão quente de 1975" e só em 25 de novembro desse ano começaria a estabilizar-se.
Muito relevante para as razões que inquestionavelmente forjaram o golpe é a afirmação de Garcia dos Santos "o Governo resolveu
fazer uma coisa que não lembrava ao diabo. Promover os milicianos que ficavam
voluntariamente no serviço militar a oficiais do quadro permanente e a
capitães! E inclusivamente a ficarem com uma antiguidade maior do que os do
quadro permanente, os profissionais militares."
Ainda bem que, não lembrando ao diabo, lembrou ao governo, donde se conclui que o diabo esteve, no momento daquela decisão do governo, do lado do parto da liberdade: Se o governo não tivesse tido aquela ideia não diabólica, se os oficiais profissionais não tivessem visto aos seus camaradas milicianos sido garantidos direitos que, do ponto de vista dos oficiais profissionais, prejudicavam as carreiras destes, não teria havido uma sublevação determinada por aquela opção do governo. E não teria havido o 25 de Abril de 1974!
Teria havido, certamente mais tarde. Se o levantamento das Caldas, a 16 de Março, não determinou que o governo tivesse garantido a lealdade dos quartéis é porque o regime já não estava condições para se aguentar com um abalo melhor preparado. "A guerra estava a avançar cada vez mais na Guiné,
Angola e Moçambique. O pessoal não chegava", reconhece Garcia dos Santos. Os profissionais estavam exaustos com tantos anos de guerra e a guerra tinha, naturalmente, desmotivado a adesão de mais milicianos, as academias militares não eram atractivas em tempos de guerra.
Há uma dívida do país aos "Capitães de Abril"?
Talvez, mas, sinceramente, não sei porquê.
Em 28 de Maio de 1926 os militares derrubaram a Primeira República Portuguesa e completaram, com a Igreja e o Partido Único, o tripé que sustentou a ditadura durante 48 anos, treze dos quais queimados numa guerra que não podia ser ganha pelos portugueses. Decorreram entretanto outros tantos 48 anos durante os quais o país, nem sempre sem sobressaltos mas em democracia, progrediu, ainda que com notórias insuficiências, em todos os vectores do desenvolvimento humano - educação, saúde, paz social - , tornou-se membro de pleno direito da Comunidade Europeia. Não são estes 48 anos suficientes para serem ser consideradas saldadas as contas com os militares?
Até quando têm de continuar ritos de agradecimento a quem devolveu o que retiraram?
Por que devemos continuar a pagar tributo por um direito restituido na sequência de razões, provavelmente respeitáveis mas iniludivelmente corporativas?
Tanto mais que nas palavras de Garcia dos Santos ressoam ressentimentos castrenses relativamente a quem, para o bem ou para o mal, foi eleito democraticamente. Não me cabe a mim julgar até que ponto Garcia dos Santos tem razão quando acusa ou denuncia nas entrevistas que pesquei na net. Mas posso avaliar o temperamento de um militar envolvido no golpe de 25 de Abril e na contenção do contra golpe a 25 de Novembro, e a minha avaliação perscruta um carácter ressentido de má consciência. Reflecte este perfil, ainda que aproximadamente, os dos que foram seus companheiros na guerra e nas revoltas? Espero que não mas receio que sim.
Na entrevista do Público de Agosto de 2001, João Cravinho, então ministro que tutelava a Junta Autónoma da Estradas é considerado como "parvo" e
"traidor"; o anterior ministro das Finanças, Sousa Franco, que
numa carta enviada a Garcia dos Santos terá dito "saber dos problemas de
corrupção e quem são as pessoas envolvidas", é acusado de ser
"cobarde", uma vez que "manda as bocas e depois não sabe assumir
a responsabilidade das coisas que diz"; traça o perfil
de António Guterres, considerando-o como "o espelho do país" e
caracterizando por andar "um bocado ao sabor dos interesses"; Em relação ao financiamento dos
partidos, Garcia dos Santos considera que, "por muitas leis que se façam,
continuará a existir por debaixo da mesa", referindo que este
financiamento se faz "através dos empreiteiros".
Na entrevista do Observador de 18 de Junho de 2014, Garcia dos Santos acusa o Presidente da República Cavaco Silva de ser cobarde e o principal culpado da situação do país. Num almoço comemorativo dos 40 anos
do 25 de abril, na sede da Associação 25 de abril, o general afirmou
que “Portugal anda sem rumo” e acusou Cavaco de ser “um cobarde e uma
nulidade completa”. Lembrando o percurso académico e político de Cavaco
Silva, Garcia dos Santos defendeu ainda que o Presidente “sabia
perfeitamente como devia pôr cobro à situação que o país atravessa”: há cinco
anos “devia ter dado dois murros na mesa” e chamado os partidos para se
entenderem a fim de resolver os problemas do país.
Na entrevista dada à revista Sábado, em 11 de agosto de 2019, Garcia dos Santos garante, em título não confirmei no texto completo, apenas disponível para assinantes, que “sempre
fui de resolver os problemas à facada”. Deixou Mário Soares de mão
estendida, disse a António Ramalho Eanes as queixas que tinha, deu ordem
de prisão a um general e a um amigo, usava a bofetada como disciplina. Uma
vez exoneraram-no, noutra bateu ele com a porta. Nunca deixou nada por dizer."
Na entrevista do Público, ontem, que transcrevo, afirmou que não gosta de Cavaco Silva nem pintado. "Disse-o mais do que uma vez. Houve uma vez, eu já estava na reserva, fui a uma
cerimónia fardado de propósito. E no fim da cerimónia havia a sessão dos
cumprimentos. O Presidente da República estende-me a mão para me cumprimentar e
eu fico a olhar para ele e ele de mão estendida. Aquilo foi um silêncio de
morte. O Presidente da República de mão estendida e eu a não ligar-lhe nenhuma.
A certa altura, faço direita volver e cumprimento o militar que estava lá. No
almoço a seguir discutiram se haviam de me mandar prender por desrespeito ao
Presidente da República."