Monday, December 31, 2018
ENTRE 2018 E 2019
- Tudo bem?
- Tudo bem menos o que está mal.
- E o que é que está mal?
- Porque me perguntas o que está mal e não me perguntas o que está bem? Preferes saber o que está mal ou o que está bem?
- Prefiro saber o que está bem ...
- Então porque perguntas o que é que está mal?
- Hum! Não sei. Hábitos ... O que é que está bem?
- Não sei ...Tu sabes?
- Hum! Não sei se sei.
- Mas sabes o que é que está mal?
- Sei, mas leva tempo a dizer. Telefonei para vos desejar Bom Ano, melhor que 2018.
- Bom Ano!!!!
NA CASA DO LOUVA-A-DEUS *
... eh!eh!eh!
... volto a dar conta, daqui deste lugar em que me encontro, do que ouço e
vejo e me põe o pelo em pé. Gostaria de vos trazer boas notícias, mas
lamento...
O outono ameno já lá
vai, chegou o inverno e com ele os dias de neblina, de chuva, de frio, de neve,
é tempo dos animais se refugiarem nas luras e os humanos temperarem a
agressividade do tempo com gestos de boa vontade, mais comunhão e menos
confronto, mais fraternidade e menos ódio, eh! eh! eh! Boas intenções e
muita conversa fiada à mistura, a espécie humana não é a mais hipócrita
das espécies porque é a única capaz de o ser. Vive e mata-se adorando e
ofendendo deuses, criados à sua imagem e semelhança, implorando-lhes favores,
desfavores para outros. Gostaria de imaginar um mundo futuro que removesse o
meu desalento e me insuflasse esperança, mas não tenho com quê. Sei que há
quem, mesmo nas mais remotas distâncias da esperança, consegue iludir-se e superar-se. Durmo
mal, porque dormito muito, e nas intermitências do meu sono sobressaltado
assaltam-me pesadelos que só não me destroem de vez por sobrecarga
emotiva porque não sei quem nem como tem tido a gentileza de apagar-mos da
memória.
Cá em casa continua a
viver-se em regime de prisão domiciliária, somos os mesmos seis nos
últimos dois anos e picos, contando comigo e os dois gatos. De vez em quando
aparece aí um casal, sem filhos, raramente entra uma criança para convivência
com as duas cá da casa. Quem vem regularmente umas quatro vezes por ano é uma
velhota que fica uma semana na casa, anda sempre a esquecer-se onde deixou a
caixa dos comprimidos, e depois desaparece até à próxima.
Ultimamente, as
garotas, que ficavam sempre encantadas quando alguma visita batia à porta, têm
vindo a mostrar-se irrequietas, indisciplinadas e pouco entusiasmadas com estas
visitas velhas que não lhes trazem gente das idades delas. A velhota bem tenta
manter relacionamento amigável contando-lhes histórias contadas vezes sem
conta, elas mantêm-se concentradas por algum tempo mas não tarda saltarem-lhe
para as costas, como faziam quando eram mais leves e a velhota menos velhota.
Há dias, a brincadeira terminou com a velha a praguejar em surdina quando viu,
com elas às costas, caírem e quebrarem-se os óculos no chão.
O dia-a-dia das
crianças, para mim monótono e sonolento, preenchido com o contar de histórias e
trabalhos manuais, sem actividades que lhes desperte e fortaleça os músculos e
os ossos, atormenta-lhes o corpo que pede relaxamento e distensão física que
este encarceramento não consente. Falo por mim, esta clausura, que me tolhe os
movimentos, está a tornar-me paralítico à medida que os anos passam. Não gemo
quando me levanto, como a velha da caixa dos comprimidos, por uma questão de
dignidade, mas apostaria que não me doem menos as articulações a mim que a
ela.
Entre mãe e filhas o
relacionamento é gomoso, reforçado pela repetição, a despropósito, que o pai é
mau, ele é mau, é mau, ele quer que elas frequentem a escola mas a escola é má,
quem sabe o que quer aprender são as crianças, a escola é má porque quer
ensinar o que as crianças não querem aprender... É verdade, é verdade, concorda
e abana a cabeça a velhota dos comprimidos. Ele é mau, o pai há muito que
agora é ele, os avós são maus, são, concorda e abana-se a velhota, os tios são
maus, os primos são maus... o que são avós? o que são tios? o que são primos?
... O que são?, são maus! São todos maus, concorda e abana-se repetidamente a
velhota, que acrescenta, o mundo é mau, é mesmo muito mau. O que é mundo?
O mundo, explica a mãe e repete a velhota, o mundo é uma coisa má, mesmo muito
má, apagam-se os nomes e os rostos na memória das crianças, submergidos na
maldade generalizada.
À noite, não sei o
que se passa lá em cima de noite. No primeiro andar da casa há quatro quartos
mas mãe e filhas dormem juntas na cama que antes foi cama do casal. Ouço-as a
rirem-se, talvez estejam a fazer cócegas umas às outras, porque o riso
solta-se em crescendo até ao esgotamento que as sossega. Que tara, que
desejos, que carências, que aberrações incitam esta mãe a esta colagem que não
a despega das filhas por um instante sequer?
Forçado a dormitar de dia, passo as noites meio a dormir meio acordado até o
sol nascer e a vontade de ir à rua para a mijinha matinal me acordar de vez e
me contorcer o corpo em sofrimento.
Antes, quando o pai das crianças habitava na casa e saía cedo para trabalhar, levava-me à rua a horas convenientes, agora tenho que aguentar que mãe e filhas desçam coladas do andar de cima, geralmente duas horas mais tarde que antes da saída do homem da casa.
Se, enquanto espero e desespero que desçam, passa um amigo meu na rua, um daqueles que encontro durante a volta antes do almoço, e lhe envio um sinal de cumprimentos, ui!ui!, o que tu fizeste! aqui só abres a boca para bocejar e comer ..., impera lei da rolha, se a violas, por mais discreto que sejas, levas um berro de fazer tremer a casa de alto a baixo e um pano encharcado por cima do lombo.
Antes, quando o pai das crianças habitava na casa e saía cedo para trabalhar, levava-me à rua a horas convenientes, agora tenho que aguentar que mãe e filhas desçam coladas do andar de cima, geralmente duas horas mais tarde que antes da saída do homem da casa.
Se, enquanto espero e desespero que desçam, passa um amigo meu na rua, um daqueles que encontro durante a volta antes do almoço, e lhe envio um sinal de cumprimentos, ui!ui!, o que tu fizeste! aqui só abres a boca para bocejar e comer ..., impera lei da rolha, se a violas, por mais discreto que sejas, levas um berro de fazer tremer a casa de alto a baixo e um pano encharcado por cima do lombo.
Se, por acaso que
penso ser muito improvável, o que aqui se diz chegasse ao conhecimento da
carcereira seria, calculo eu, condenado a solitária, na cave, onde, aliás,
nunca me foi consentido meter as patas, sem luz nem aquecimento, quase
certamente sem paparoca, a verdade é muitas vezes inacreditável e perigosa. Mas
manda a verdade que aqui se diga que certa noite ouvi entre a velha e a mulher
que nos tem encarcerados uma conversa daquelas para acreditar quem quiser:
falavam de vidas passadas, as crianças, todas as crianças são, até ao momento
do nascimento, um repositório de conhecimento que se apaga quando inspiram o
primeiro oxigénio, a sua alma é superior à dos adultos, o tamanho aumenta em
cada reencarnação, daí que sejam, as crianças, entenda-se bem, mais capazes de
decidirem sobre elas do que os adultos por elas e, daí, ser uma violência
obrigá-las a frequentar a escola. Na mesma ocasião ouvi, pasmem!, se ainda não
fecharam a boca de espanto, que alguém, mas não entendi quem, teria consultado
uma vidente para conhecer quem fora seu antepassado. O resultado compensara o
custo, em vida passada o consulente tinha sido não menos que Luís XVI.
Esperançada, recorreu a esposa à mesma vidente, sem informar com quem era
casada, e saiu-lhe a Maria Antonieta na rifa. Foi um delicioso delírio até ao
momento em que, numa altura de confidências, souberam que a tão consultada
vidente tinha atribuído a mesma antecedência a um casal amigo.
E a mim, que vida
passada me tramou?
Perguntei
insistentemente à velhota da caixa dos comprimidos quando a apanhei a jeito,
mas, como a outra, ela não ouviu o meu olhar.
Continuo a passar os
dias e as noites sentado ou deitado no capacho, num canto da sala, se me
levanto é para três saídas à rua, uma de manhã, outra à noite para alçar a
perna, muito breves, tão breves que quando volto para o capacho sinto uma
vontade intensa de voltar logo lá fora por não ter despejado quanto devia. É
durante a saída, antes de almoço, para um giro nas redondezas que alço a perna
à vontade ou encurvo as costas para fazer força no sítio devido.
Depois dormito, se me
levanto não ultrapasso aquela linha imaginária que circunscreve o território,
uns quatro metros quadrados, em que posso dar meia volta e voltar ao capacho.
Uma linha imaginária que se, por inocente distracção, a toco, desencadeio um
berro dela capaz de acordar um morto. A primeira vez, logo no dia em que entrei
cá em casa, o impacto do grito saído de um silêncio estranho, estranho
para quem deixara há poucas horas o sol, o mar, a vozearia nas ruas cheias de gente
a qualquer hora, atravessou-me a espinha como um raio. E disse-lhe, com calma,
não com medo, porque grita tão alto estando eu aqui tão perto? Mas ela não me
ouviu, não compreendeu. Temos formas de expressão diferentes, a dela e os da
espécie dela pelo som, geralmente em tom baixo, ela, comigo, pelo berro,
só não ouve quem não tiver bom ouvido, a minha, a da nossa espécie, lê-se
nos nossos olhos, e ela não repara, nunca reparou no meu olhar.
Hoje, dez anos
depois, reconheço que fui tanso quando não respondi à estridência bruta daquele
electrocutante primeiro grito com uma resposta à medida. Talvez ela me tivesse
devolvido à procedência e eu estaria agora a regalar-me com o calor do sol e
a maresia do lugar onde fui parido e cresci até ser trazido para esta casa.
Talvez tivesse, nesse caso, que fazer pela vida, mordiscar o que aparecesse,
dado ou roubado, e não apodrecer neste capacho à espera que a bruta me faça
sinal mudo para me aproximar da tigela apenas uma vez por dia. Primeiro come
ela e as filhas, depois eu. Nada a reclamar se eu pudesse avançar logo que a
tigela é colocada junto da linha invisível, normalmente meia hora depois de
terminado o almoço delas. Mas não senhor, a tigela está ali a uns dois metros
do meu faro esgalgado, contorço-me no capacho, sigo-lhe ansioso todos os
movimentos, e só após uma longa espera sou autorizado a avançar. Tanta fome,
recordo que não me entra pitada na goela há um dia, precipita-me para o tacho
e, de vez em quando, o tacho tomba.
E lá vem o grito
assustador pelo crime cometido pela larica, sem atenuantes. Pior que isso é
ficar a tigela vazia, o chão sujo, de onde ela não me consente comer, limpa
tudo para o lixo, e a fica-me a barriga a dar mais vinte e quatro horas em
vazio.
Ponham-se no meu
lugar: imaginem-se sentados a uma mesa para almoçar onde todos, naturalmente,
começam a comer logo que a comida chegue e o dono da casa diz bom proveito!
mas, tu não. A comida está à tua frente, tens tanta ou mais vontade comer que
os outros, já não petiscas nada há pelo menos um dia, mas não podes começar a
comer enquanto os outros não terminam e não tiveres permissão para comer. Não é
a mesma coisa? Por que não? Somos diferentes, pois somos, mas todos somos
animais que para viver precisam de comer. Ou não? Qual a diferença no funcionamento
dos sistemas básicos entre os humanos e os outros animais?
E não se fica
a tortura da espera pela tigela da paparoca. De manhã, quando ela se
decide a colocar-me a coleira para a saída da mijinha matinal, já estou torcido
e contorcido de tanto aguentar a apertar, um dia destes, a velhice trás destas
coisas e eu agora já não sou assim novo, ainda mijo no capacho, e não sei,
nesse caso, o que me possa acontecer, talvez lhe dê uma dentada bem ferrada se
ela se atrever a ir além do grito histérico, e seja o que Deus quiser.
Durante o passeio
antes do almoço assalta-me sempre a ideia de aproveitar a oportunidade de, nos
breves momentos que ela me solta a corda, pôr-me ao fresco, dizer-lhe adeus de
longe, passe bem que eu vou à minha vida, mas seria uma tentativa frustrada em
poucas horas, porque quando aqui cheguei meteram-me debaixo do pelo uma coisa
que depois vim a saber se chama chip, uma espécie de bufo que informa a
polícia, a fuga é possível mas seria inconsequente, e lá volto eu para o
capacho.
E assim
continuo sequestrado nesta sala, sentado ou deitado no capacho quase todo
o dia de todos os dias. Um sequestro que me obriga a ver e ouvir o que me
revolta sobretudo nesta época do ano quando, durante a curta saída diária vejo
os sons, as luzes, o encanto estampado no rosto das pessoas pela celebração em
família do milagre do nascimento, e me assaltam mais intensamente saudades dos
meus irmãos, que será feito deles a estas horas, estarão também condenados a
uma vida vegetativa, a servir de bibelots vivos em regime de
sequestro? Para que sirvo eu, aqui, condenado em prisão perpétua a
envelhecer neste capacho, neste canto da sala, a ver a entrar e sair os dois
gatos pela gateira, também eles condenados a clausura, mas menos sofrida,
perpétua mas menos sofrida, porque têm licença de saída para as traseiras e a
vaguear por toda a casa, e ser a clausura doméstica mais conforme à sua
natureza independente mas aconchegada? Em tempos idos, os gatos caçavam ratos,
agora a caça ao rato pode matar o gato que se regale a comer um rato semi morto
por envenenamento, já não se passeia pelos telhados a miar por amor, brinca com
o que calha quando é juvenil, come o que lhe põem na taça, e dorme a sono
desprendido quando é adulto e velho, quer dizer, também não presta para nada.
De frio ou calor em
casa, não me queixo. Não sei o que pensam os gatos, a arrastar a barriga da
velhice ou mais a dormir que acordados no poleiro, já tenho tentado entendê-los
pelos olhares, cada vez mais embaciados, inexpressivos, quem sabe se já
quase cegos, e não lhes descortino senão tédio cristalizado pelo conforto, pela
papinha e uma inutilidade sem limites que só lhes exige submissão em troca.
Bibelots vivos, ou meio vivos, como eu, que gozo, que prazer, que interesse,
desfrutam os carcereiros da posse destes prisioneiros castrados sem crimes cometidos?
Se vissem o que eu
vejo, manteriam os gatos aquele ar de múmia se sentissem o que eu sinto? Somos
diferentes, não é por eles estarem velhos, meios cegos e surdos, que estes
gatos sentados no poleiro não mexem um pelo, insensíveis ao que se passa na
sala à frente dos seus bigodes. Não a mim, contorço-me no capacho,
revolvem-se-me os interiores, apertam-se-me as meninges, por ver o estendal de
perversidade que testemunho sem poder depor.
Quando, durante algum
tempo acompanhei o Urs e a Cherry, o Urs parava a conversar com quem se cruzava
nos nossos passeios matinais. Com um discutia política internacional, com
outro economia doméstica, com outro o mérito da homeopatia, com outro as
potencialidades da parapsicologia, com outro curiosidades e aberrações da
natureza, neste caso, do mundo animal.
Como a Cherry não era
o meu tipo nem eu o dela, não havia conversas entre nós e eu ouvia o que dizia
o Urs.
Foi por ele que
fiquei a saber que há bichos fêmeas que matam e comem o macho depois que,
truca-truca, os dois fizeram filhos, um tema que desencadeou uma discussão
longa acerca da culpa e do livre-arbítrio, se sabem de que se trata, ainda bem
porque a mim escapam-me.
Para o Urs o
canibalismo sexual de alguns bichos fêmeas não é uma aberração da
natureza mas uma consequência da evolução das suas espécies ao longo de muitos
milhões de anos. É assim e não há nada que demova a fêmea canibal a deixar de
ser.
E o bicho homem, o
maior predador de todas as espécies, e, sobretudo, da sua, que culpa tem dos
actos que pratica se o caminho do livre arbítrio o conduz para a prática de
tantas atrocidades? perguntou-lhe o outro.
O livre arbítrio é
uma armadilha em que cada um pode cair consoante a fórmula dinâmica gerada no
instante da concepção e das circunstâncias que defronta uma vez lançado no lago
amniótico e depois no mar exterior. O homem, só em parte é um ser racional
porque nunca se livra de alguns instintos primitivos comuns a todos os bichos.
A alienação parental, por exemplo ...
... A quê?, perguntou
o outro, um sujeito idoso, meio surdo, ao mesmo tempo que ajustava sintonia das
orelhas e eu espevitava as minhas.
Alienação parental é
o aprisionamento dos filhos de um casal por um dos seus progenitores, quase
sempre a mãe, impossibilitando o pai de conviver com os filhos de ambos.
É possível? É legal?
É ilegal mas a
justiça é lenta e a sequestradora aproveita a morosidade para fazer
esquecer aos filhos que o pai existe e sofre com a perversidade montada pela
mãe. É uma fórmula de canibalismo sexual feminino, que difere da do
escorpião ou do louva-a-deus porque a deglutição da fêmea humana canibal é
muito mais prolongada que a de outras fêmeas canibais. Se a espécie humana
evoluiu para formas de comportamento diferentes das outras espécies foi porque,
no ramo da árvore de evolução das espécies subiu a patamares
superiores de minimização de funcionamento dos seus instintos mais primitivos.
Percebo o que dizes,
Urs, mas considero exagerada a comparação ...
E é, aparentemente,
é, mas porquê? Porque a humanidade evoluiu sociologicamente e a fêmea canibal
humana não mata o pai dos filhos porque o homicídio é crime pesadamente
penalizado, mas, ao recusar a convivência dos filhos com o pai,
pretende matá-lo pela angústia da ausência e esquecimento dos filhos. As acções
são diferentes mas os instintos que as comandam são os mesmos. Curioso é que o
comportamento da fêmea canibal humana imita bem o do louva-a-deus que, em
permanente oração, parece incapaz de matar uma mosca mas mata o parceiro sexual
após copular com ele.
Queres dizer que
poderíamos confirmar a validade da tua comparação se o homicídio e o
canibalismo não fossem punidos? Que, nesse caso, a fêmea humana mataria e
comeria o macho?
Que te parece?
Hum! ... Não sei. De
entre um incontável número de espécies de seres vivos apenas um reduzidíssimo
número mata e come o parceiro sexual...
... mas também apenas
um reduzidíssimo de humanos, homens e mulheres, mas sobretudo mulheres, rejeita
o parceiro sexual e rapta os filhos de ambos.
A rejeição do
parceiro não é condenável...
Não, é óbvio que não,
aliás, a ninguém pode ser imposto o martírio de viver com quem deixou de
querer continuar a viver. Mas o rapto dos filhos é um crime, salvo motivo
reconhecidamente grave, que só os meandros da justiça consentem que subsista
traumatizando profundamente o pai, ou a mãe, e os filhos envolvidos no
sequestro. É um crime motivado por instintos perversos do sequestrador.
Por quê?
O perverso
alimenta-se da dor provocada às suas vítimas.
Incluindo os filhos?
Não é possível.
Pois não. O perverso
inverte os efeitos perniciosos da perversão, neste caso sobre os filhos,
invocando benefícios dos meios que lhe justificam os fins. A felicidade do
perverso está no gozo da infelicidade das suas vítimas.
E esta conversa ficou
por ali.
Recordo-me também que
um dia, não sei a que propósito, o Urs demorou um tempão a convencer com quem
conversava que os cães têm capacidades de telepatia que lhes permitem entender
à distância o pensamento do seu acompanhante. Talvez o Urs tenha razão, mas
nunca me pareceu que houvesse entre ele e a Cherry algum canal de comunicação
telepática, a Cherry era de temperamento desobediente. Quando agora me recordo
dessa revelação do Urs, fixo, por períodos longos, o meu olhar nos gatos
tentando estabelecer com a mente deles uma comunicação de pensamento mas, ou os
emissores estão apagados ou as linhas de comunicação não se ligam, não recebo
qualquer sinal daquelas cabeças duras.
Curiosamente, leio
com estranha precisão o que passa pela cabeça da nossa carcereira. Estranha
precisão porque, como tenho dito e redito, um velho repete-se muito, não existe
entre mim e aquela mulher, agora ali a três ou quatro metros à minha frente, a
mínima vibração de empatia. E pergunto-me se leio por telepatia ou por
inevitável conhecimento da extrema previsibilidade comportamental dela. Aliás,
esta foi a diferença que separou a opinião do Urs, que andava a ler tudo sobre
telepatia, da do amigo, que disse não haver evidências científicas de
transmissão de pensamentos sem utilização dos cinco sentidos, reconhecendo, no
entanto, sem dificuldade que a acuidade de cada um deles varia muito de espécie
para espécie.
A mim, cá em
casa, cheira-me sempre a esturro, mas não é pelo faro que chego lá
...
E o que é que vai na
mente desta carcereira na véspera deste Natal?
Nada de novo.
Em tempo oportuno
comprou o quadro do advento, um abeto, velas finas de cera branca, que vai
acender esta noite de véspera de Natal, depois senta-se com as filhas à volta
da árvore, cantam as canções da época, de louvor ao Senhor, a mim vêm-me as
lágrimas a ver tanta solidão quando o momento deveria ser de comunhão de
alegria pela celebração do milagre do nascimento. Os gatos dormitam, como
sempre, não há alegrias nem tristezas alheias que os comovam.
Não estará pai, nem
os avós, nem os tios, nem os primos das filhas da carcereira. Só elas três.
Há dias passou por
aqui a velhota, visita habitual da casa duas ou três vezes por ano, que se
esqueceu cá, aqui debaixo do sofá a caixa dos comprimidos, a não mais que um
metro da borda do capacho. Telefonou no dia seguinte a perguntar se, por acaso,
não tinha sido encontrada a sua caixa dos comprimidos. Estava preocupada, não
por causa dos comprimidos, já tinha comprado outros, mas porque poderiam ser
encontrados pelas crianças, receava que elas pudessem, por curiosidade,
provar-lhes o gosto. Disparate! As miúdas não eram bebés, sabiam bastante bem o
que era e o que não era bom para elas, melhor que os adultos.
É verdade, é verdade,
respondeu a velha do outro lado, e ninguém mais pensou na caixa dos
comprimidos. Ali mesmo, ao meu alcance, reparei eu uns dias depois.
Hoje, depois dos
cânticos do trio ao mesmo tempo que se extinguiam as velas, e a casa ficar às
escuras, estendi a mão direita e puxei a caixa dos comprimidos para o capacho.
Ao puxar a caixa, não sei que jeito lhe dei, saltaram os comprimidos.
Cheirei-os, gostei do cheiro, provei um ou dois, não eram desagradáveis, para
evitar problemas devolvi a caixa à procedência e os comprimidos à solta.
Horas
depois, não sei quantas nem como estava a muitas milhas dali, entre familiares
e amigos que não via há tanto tempo. Estavam os meus pais, os meus sobrinhos,
os meus tios, estavam os meus amigos, além de outros que eu não conhecia.
Estavam também os meus irmãos vendidos e embarcados há mais de dez anos. Não os
via desde o dia em que nos encontrámos numa reunião de convívio de indivíduos
da nossa espécie. Todos me gabaram o pelo sedoso e a graciosidade máscula das
minhas orelhas. Corremos atrás uns dos outros, nunca corri tanto em toda a
minha vida, desforrei-me de anos de atrofia e tédio sem que os músculos, os
ossos ou o coração reclamassem. Foram horas e horas a encher o papo de
brincadeira, e ninguém estava exausto. Só não foi uma paródia infindável porque
me ocorreu perguntar aos meus irmãos imigrantes como lhes corria a vida. Nada
mal, depreendi, estavam em casa de gente cordata, que os estimavam, eram, se
assim se pode exagerar, tratados como fazendo parte das famílias.
E a ti, perguntou-me um deles, como te
tratam?
Para
não fazer figura de pouca sorte do grupo, engoli em seco as minhas
angústias, os dias e as noites passadas no capacho e o espaço limitado
pela linha invisível que não me permite ir além de dois metros fora dele, a
tortura da espera das horas da mijinha e da tigela à frente de tanta fome sem
pode comer, dos berros que me arrepiam o sistema nervoso, do chip que não me
permite evadir-me do cárcere, daquilo que vejo e me tortura sem poder
denunciar.
Hum!
Acabou-se a paródia, está a nascer o sol ...
E,
oh! diabos a levem, mijei no capacho... E agora?
Se
ela me berra, leva uma dentada! Algum dia teria que ser. E talvez me entregue
no canil... Mal por mal prefiro o canil.
E,
já que tenho que esperar que desçam ao rés-do-chão, vou apanhar e esconder os
comprimidos que sobraram.
NATAL 2018
Sintra, 17 de dezembro de 2018
Querida R.M.,
Querida D.F.,
O Natal é já de hoje a uma
semana.
Lamentavelmente, há mais de dois
anos que continuamos sem poder ver-vos e, pela mesma incompreensível razão, não
vamos poder estar convosco durante este Natal, que, para toda a gente de boa
vontade, é a festa da família, aquela que reúne os pais, os filhos, os netos,
os tios, os primos.
Queridas netas: também vocês,
para além da vossa mãe, têm um pai que vos ama e suporta uma tristeza imensa
por não vos ver, avós que muito vos adoram, tios que muito gostariam de vos
abraçar, primos que adorariam brincar com vocês. Mas, mais uma vez, o vosso
Natal não será uma festa de família e o nosso Natal estará profundamente
magoado pela vossa ausência.
Não vamos alongar mais esta
mensagem que, muito provavelmente, não vos será entregue e muito menos lida mas
permanecerá viva nas nossas memórias, arquivada nas nossas lembranças e nos
nossos registos. Um dia, temos muita esperança, vocês saberão onde poderão
lê-la.
Enviamos umas pequenas
recordações, de valor simbólico, como costumamos fazer todos os anos. E
continuaremos enquanto vivermos, magoados mas esperançosos num futuro menos
carregado de saudades de vos ver.
Muitos beijinhos
Avó I.
Avô R.
Saturday, December 22, 2018
PARA UMA ANTOLOGIA DA PULHICE JURÍDICA EM PORTUGAL
Quando, um dia, alguém editar uma antologia da pulhice jurídica em Portugal vai, seguramente, incluir um texto de opinião do Prof. Freitas do Amaral, BES e GES – Um só responsável? Novos ataques a Ricardo Salgado, publicado aqui no dia 19 deste mês.
A anteceder a leitura daquela peça de antologia, e para orientação no contexto, sugere-se que se preste atenção ao artigo de João Miguel Tavares, Freitas do Amaral loves Ricardo Salgado, publicado aqui.
Wednesday, December 12, 2018
Saturday, December 08, 2018
RETROVISOR DOS PRÉDIOS DEGRADADOS
Câmaras desprezam
arma para combater prédios devolutos (vd. aqui)
São poucas as
câmaras municipais que agravam o IMI nos prédios devolutos. Orçamento do Estado
para 2019 prevê penalização adicional.
O recurso ao agravamento do Imposto Municipal de Imóveis (IMI) como
instrumento para a promoção da reabilitação urbana e combate aos imóveis
degradados e devolutos não é nova e aparece na proposta de Orçamento de Estado
pela quarta vez consecutiva. A novidade na proposta para 2019 é que o Governo
prevê uma espécie de agravamento do agravamento: se até aqui as autarquias
poderiam cobrar o triplo das taxas de IMI (que variam entre 0,3% e 0,45%,
dependendo do município) nos prédios devolutos, em 2019, e de acordo com a
proposta do Governo, esse agravamento pode chegar até ao sêxtuplo.
Falta ainda regulamentar a forma como estes mecanismos vão ser aplicados,
uma vez que o que foi votado na Assembleia foi a autorização legislativa que dá
ao Governo carta-branca para avançar nesta questão. Mas, de acordo com o que o
Governo já deixou transparecer no relatório que acompanha o Orçamento de
Estado, a intenção é acrescentar às áreas inscritas como Áreas de Reconversão
urbanística previamente definidas pelas câmaras municipais a possibilidade de
definir um novo conceito de “zona de pressão urbanística”.
De acordo
com informação recolhida pelo PÚBLICO junto do Ministério das Finanças, no ano
de 2015 apenas 18 dos 308 municípios existentes usaram esta ferramenta. Nos
anos seguintes o número não se alterou substancialmente: em 2016 foram 20
câmaras e no ano seguinte foram 21. Os dados do ano de 2018 ainda não estão
fechados, mas, pelas indicações recebidas em Abril, altura em que surgem as
primeiras facturas do IMI, o número de municípios subiu para 54 (17,5% do
total). Continua, ainda assim, longe de ser uma ferramenta de utilização
generalizada.
Lisboa, Faro, Coimbra, Leiria, Lagos e Setúbal, Palmela e Tondela são
alguns dos exemplos de municípios que sempre accionaram este recurso.
Os indícios de desocupação dos imóveis baseiam-se na inexistência de
contratos em vigor com empresas de telecomunicações e de fornecimento de água,
gás e electricidade (ou na inexistência de facturação relativa a esses
consumos). A taxa agravada já poderia ser aplicada em prédios inseridos em
áreas de reconversão urbanística que estivessem devolutos há mais de um ano. No
caso dos imóveis em áreas de pressão urbanística, a penalização tributária pode
acontecer nos casos em que os prédios estão devolutos há mais de dois anos.
Os indicadores objectivos que vão definir a área de pressão urbanística
ainda estão por determinar, mas devem ter em consideração os preços do mercado
habitacional e os rendimentos das famílias ou as carências habitacionais. A
ideia defendida pelo Governo é que os municípios possam começar por agravar a
taxa de IMI em seis vezes e fazer um aumento adicional de 10% em cada ano
subsequente. O limite máximo autorizado é cobrar 12 vezes a taxa de IMI.
Sendo as receitas das autarquias, de modo a estas financiarem as suas
políticas municipais de habitação, a verdade é que, até agora, elas têm sido
usadas com alguma parcimónia. E nem quando as empresas de fornecimento de água
e electricidade passaram a estar obrigadas a facultar dados de consumo aos
municípios, a partir de 2016, se notou uma adesão maior a este instrumento que
acaba por ser uma fonte de receita do município.
Para fazerem a cobrança, estes municípios só têm de identificar os imóveis
e notificar a Autoridade Tributária de que se trata de um prédio devoluto. As
Finanças limitam-se a receber a comunicação dos edifícios e têm-se recusado a
participar na qualificação dos imóveis como devolutos e a fazer qualquer tipo
de verificação.
É esta postura, por exemplo, que tem impedido a Câmara do Porto de avançar
com a penalização dos imóveis degradados, optando por não o fazer pelo menos
até ao ano de 2017.
Cinco mil proprietários
O último levantamento feito aos prédios devolutos em Portugal apontava para
450 mil imóveis, como identificou a Confederação da Construção e do
Imobiliário, a associação do sector em Portugal.
O número de prédios identificados não corresponde ao número de
proprietários que foram taxados a triplicar.
No ano de 2017 apenas 5132 proprietários foram notificados pelas Finanças
para pagar um IMI agravado nos prédios que estavam devolutos. E, de acordo com
os dados disponibilizados pelo Ministério das Finanças ao PÚBLICO, este número
de proprietários tinha na sua posse um total de 10.125 prédios.
Foi um número de imóveis ainda mais baixo do que aqueles que foram
tributados de forma agravada no ano de 2016 e de 2015: respectivamente, 12.075
e 11.789. Em 2016 foram penalizados 6237 proprietários e em 2015 foram
penalizados 5960 proprietários.O número de proprietários não corresponde ao número de prédios uma vez que
o mesmo sujeito passivo pode ser proprietário de mais do que um prédio devoluto
ou em ruínas. Por outro lado, um prédio em ruínas pode ter vários
comproprietários e havendo compropriedade apenas é contabilizado um prédio,
esclareceu as Finanças.
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