Há dois anos, tive minha primeira e até agora única experiência com a edição de um livro. A obra é "O Boto do Reno", do jornalista-colega-primeiro chefe-gente boa Flavio Gomes. É uma coletânea de crônicas escritas pelo Flavio ao longo de quinze anos cobrindo Fórmula 1. Mas, atenção, não é um livro sobre Fórmula 1. É um livro de crônicas de viagem, com um texto primoroso, carregado de humor (às vezes bom, muitas vezes mau).
Leitores do Grande Prêmio, do GPTotal e do Blog do Gomes já conhecem o livro, mas achei que valia a pena dar uma amostra grátis para quem ainda não conhece. Quem quiser comprar o livro, em promoção, por sinal, é só entrar aqui.
Selecionei um dos meus capítulos preferidos. Leiam, comentem!
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Estatualândia
26/8/03
Tenho duas horas e vinte e oito minutos para escrever. É o que indica o mostrador da carga de bateria de meu novo laptop. Estou no avião. É uma experiência curiosa escrever dentro do avião. Nunca tinha feito isso antes, porque o computador antigo não aguentava, coitado. Aliás, tem sido um ano de grandes transformações em minha vida. Separei-me de dois velhos companheiros, o Acer, que ficou com a tela verde, e a mala cinza clara, que teve um problema técnico e a companhia aérea trocou por uma nova, à qual não me adaptei bem, devo confessar, mas agora Inês é morta, nunca mais vou ver minha mala antiga.Quando se viaja bastante, criam-se companheiros como o laptop, a mala, a nécessaire (onde diabos vão os acentos nessas palavras francesas?). Outro dia troquei a nécessaire, não por necessidade, por frescura, mesmo.
Destroquei depois de duas ou três corridas. Fiquei com pena da antiga, tão habituada a dias gloriosos, viagens pelo mundo, os melhores hotéis, de repente esquecida num armário debaixo da pia ao lado de minhas edições antigas da Playboy. A que eu prefiro é a da Carla Perez, já na versão de peitos turbinados.(Ainda tenho as mesmas duas horas e vinte e oito minutos para escrever, este laptop é foda, tem um sistema que economiza bateria diminuindo a luminosidade da tela. O outro, coitado, nem funcionava na bateria.)Do meu lado tem um viado. Acho que é, porque viaja com um monte de amigos e um deles está de camiseta regata com o sovaco depilado. Sovaco raspado é coisa de viado. São alemães, acho. O avião em que estou é suíço. Saiu de Zurique para São Paulo e Rio. Está cheio de putas, também. Não se espantem, eu não tenho nada contra putas e viados, nem me importo em dividir os passageiros em categorias. Vôo o bastante para ter o direito de classificar as pessoas como bem entender.Pois bem, o alemão do meu lado é viado (o certo é escrever "veado", como o animal, mas "viado" é mais legal) e todos os amigos dele também. E as putas estão voltando para levar dinheiro para o Brasil. Que mal há nisso? Elas vão para a Europa (digo "vão", e não "vêm", porque o mapa na tela de TV do avião indica: estamos sobre a África setentrional, estamos indo, e não vindo) ganhar dinheiro em moeda forte, dão para os europeus e voltam de vez em quando para levar o que ganharam para casa, sonhando em não ter de pegar o avião de novo, mas no fim pegam, e normalmente vêm nesses vôos que eu venho, os mais baratos. Cansei de viajar com putas. Sempre tem uma promoção de alguma companhia, agora é a Swiss que está barata, é na Swiss que elas vêm e os viados vão. O que será que essas bichas velhas vão fazer no Brasil? Não importa, problema deles.Faltam duas horas e quatorze agora para a bateria apitar. Dá tempo, escrevo rápido.Estou na poltrona 30G, corredor. Ninguém no assento ao lado, apenas o viado alemão na outra ponta da fileira. Tentou se esticar até meus domínios, mas consegui defender a poltrona à minha esquerda de seu chulé. Fica pra lá, viado. Venho da Hungria, onde não sei se tem muito viado, mas tem muita puta. Incrível como tem puta, e como elas são belas e provocantes. Estive na Hungria pela primeira vez em 1991. Gostei muito e aluguei um Lada. Hoje acho o país uma merda. (Não se espante, de novo, com a profusão de palavrões. Hoje decidi escrever como falo, e falo muitos palavrões. Falo algumas coisas que politicamente não são muito corretas, também, algumas até dariam cadeia se as leis fossem cumpridas no país, mas vou procurar me controlar.)Acho a Hungria uma merda porque estão acabando todos os resquícios do comunismo. Tenho uma mania que carrego há anos. Sempre que estou na rua, no trânsito, invento alguma coisa para contar. Por exemplo: do aeroporto até minha casa, quantas Kombis eu vejo. Estabeleço metas, dependendo do percurso. Duzentas Kombis. Se consigo contar duzentas Kombis, ganho um prêmio imaginário. Se não consigo, azar. É para passar o tempo, faço isso sempre, sou meio louco. Na Hungria, sempre conto Trabants. Se você não sabe o que é um Trabant, vá procurar saber, estou sem saco para explicar. Há anos que a meta é de 100 Trabants entre o hotel e o aeroporto no dia de ir embora. No ano passado tive de reduzir para 50. Contei 47 e perdi por pouco. Hoje contei só 16, fiquei longe do prêmio, mesmo sabendo onde procurá-los, nos estacionamentos dos conjuntos residenciais, imensos prédios cinzentos de apartamentos onde moram os pobres que têm Trabants, ou deveriam ter. Nesse ritmo, vão acabar os Trabants e, com eles, o que restou da Cortina de Ferro, do passado.Acho a Hungria uma merda porque depois que acabou o comunismo virou tudo uma putaria, os taxistas te roubam, os caras dos hotéis são mal-educados, os policiais vivem te achacando, a comida é ruim. Fui achacado em Budapeste por cinco anos seguidos até este ano, em que consegui passar ileso por todos os rendörség, é assim que se diz polícia em húngaro. Tenho muita raiva dos rendörség, por mim podiam tirar a corrida da Hungria e colocar na Bósnia que eu não iria reclamar. (Neste exato instante mudei-me para a poltrona mais central nesta fileira de quatro em que ocupava uma das extremidades, porque a mulher na minha frente abaixou o encosto de seu assento, batendo na tela do meu novo laptop. Vaca. Estou mais perto do alemão viado, que quer se esticar nos bancos. Mas se depender de mim vai ficar é torto e com torcicolo quando chegar ao Brasil.) Hoje pela manhã (na verdade ontem, pelo fuso hoje já foi, no avião a gente fica com o fuso confuso, puxa, que engraçado) fui fazer turismo em Budapeste. Tinha um folheto na recepção do hotel (merda de hotel, sem ar-condicionado e barulhento, cheio de turistas espanhóis) sobre um certo parque de estátuas, um lugar para onde levaram algumas daquelas enormes esculturas da escola realista-socialista (inventei essa escola agora) que se espalhavam por todas as cidades comunistas que se prezassem, imagens gigantescas de Lenin e Marx, ou de operários, ou de camponeses, ou de militares. Aquilo é que dava charme ao mundo, que perdeu totalmente a graça após a queda do Muro de Berlim e recebeu a pá de cal com o fim da produção do Fusca.Bem, tinha algumas horas até o avião sair, fui com um amigo ao parque das estátuas. O folheto estava em inglês, e mostrava algumas fotos do lugar. Vamos lá. Cara, que merda. Tinha o quê?, umas 20 imagens, talvez um pouco mais. Num descampado horrível, empoeirado, cheio de mato crescendo. Nenhuma placa decente identificando aquelas estátuas e esculturas, nenhuma explicação, de onde foram tiradas, quem as construiu, em que época, picas, alguns monumentos pichados. Um lixo, um descaso completo com a história, um engana-trouxa. Deu vontade de voltar lá de noite com um caminhão e roubar tudo, ninguém ia perceber.Pior: na entrada havia, há, um quiosque minúsculo para pagar a entrada, e com lembranças comunistas para vender. Eu queria umas camisetas, mas todas elas tiravam sarro do comunismo e dos comunistas, o que é isso, torcida brasileira? Camisetas esculhambando tudo, deu vontade de colocar fogo naquilo e entoar a Internacional Socialista com a mão no peito. Comprei uma só, que tinha um Traby estampado na frente (Traby é como eu chamo os Trabant). Comprei também um ímã de geladeira com as faces de Marx, Engels, Lenin e Stalin. E uma moeda de não sei quantos rublos, com CCCP escrito, a foice e o martelo estampados. Paguei mil forints nessa merda de moeda, espero que seja autêntica. Já me dei mal com lembranças comunistas em Berlim, comprei certa vez um relógio de parede que o vendedor me garantiu ter pertencido a um submarino soviético, não era porra nenhuma, parou de funcionar em uma semana.A gota d'água que me fez concluir que o comunismo acabou de vez foi, nesse mesmo quiosque, um CD à venda chamado "The Best of Comunism". Puta que pariu, como é que alguém tem coragem de dar tal título a uma coletânea de músicas compostas para louvar e propagar a única doutrina digna de todos os tempos? Porra, colocaram o comunismo no mesmo saco que a Madonna, o Elvis Presley, o U2 e o Willie Nelson! "The Best of Comunism", é demais, é para dar um tiro na cabeça. Na saída, fiz questão de assinar o livro de visitas. Coloquei meu nome, o país de onde vim, mas a caneta disponível não escrevia direito, e no espaço onde perguntavam do que mais gostei no parque, deixei em branco. No espaço para escrever do que menos gostei, escrevi "a caneta".Apesar de tudo, sou teimoso e turrão o bastante para incluir o parque das estátuas num roteiro para as futuras viagens que farei com meus filhos e a Thais, coitada, que vai odiar, claro, esse parque de merda. Já decidi que meus meninos jamais conhecerão Orlando e a Disneylândia, e por isso tenho de descobrir atrações alternativas como a agora batizada por mim de Estatualândia, em Budapeste. Já os levei ao Parque do Asterix em Paris (bem, houve uma breve uma passagem pela Disney de lá, também, mas foi por acaso, e eles nem lembram, gostaram muito mais do Asterix), a Lindóia, São Lourenço, Caxambu, Canela e Gramado. Farei de tudo para que nem saibam que existe um parque de diversões na Flórida. Se depender de mim, jamais, morte ao Mickey, ao Pateta (que é viado), àquele bando de órfãos mal-resolvidos sobrinhos do Pato Donald, ao porco capitalista Patinhas, à vagabunda da Margarida e a todos eles, tudo cria de outro porco dedo-duro macartista chamado Walt Disney, que o inferno o tenha.Disponho ainda uma hora e trinta e seis minutos de bateria, mas não se incomodem, estou ficando com sono.Já falei da Estatualândia, aonde mais posso levar meus filhos sem contaminá-los? Berlim. Lá tem o museu de Checkpoint Charlie (se não sabe o que é, descubra), ótimo lugar para contar histórias, talvez Aushwitz e Dachau, onde estive outro dia, Hiroshima, Nagasaki. Aliás, tenho contado muitas histórias de guerra para meus filhos dormirem. Aboli Cinderela, Três Porquinhos e Chapeuzinho Vermelho, que em algum momento de sua vida você acaba contando, para que eles durmam logo e você possa ir ver TV. Estão fora do repertório caseiro. São histórias nocivas, a madrasta da Cinderela era uma vaca e suas filhas, idem, e a Cinderela era uma galinha, saiu dando para o príncipe no primeiro dia, se fosse um plebeu qualquer, nem olhava na cara. Dos três pequenos suínos, dois eram bichinhas e o outro um assexuado pervertido que, isso eu vi numa fita, não é mentira minha, inventou uma mesa de tortura para colocar o lobo, aquele famélico e ridículo lobo que consegue enganar a cretina da Chapeuzinho, incapaz de distinguir uma avó de uma besta fera. Isso não é para meus filhos, lamento.Agora tenho contado histórias da Segunda Guerra, falo dos camicases e dos países do Eixo, de Hitler e Churchill, de Mussolini e De Gaule, dos aliados e da FEB, descrevo campos de prisioneiros, bombardeios, gueto de Varsóvia, combates sangrentos e ataques noturnos, explico o que é blecaute e gasogênio, falo também da guerra no Iraque e digo sem subterfúgios o que penso dos americanos. Não sei se têm idade para entender direito, um fez cinco anos agora, o outro vai fazer quatro, mas acham legal e dormem logo, também, especialmente o mais novo. O mais velho pergunta sempre quantos morreram nas guerras que conto, e um dia me falou, esse negócio de guerra é bem feio, né pai?, e eu disse que é feio pacas, mas que ele pode ficar tranquilo que no Brasil não tem. E quando fomos a Caxambu ele perguntou se em Caxambu tinha guerra, e eu disse que em Caxambu também não tem. Um pai tem de tranquilizar os filhos.Vou dormir, gosto de dormir no avião e sonhar que ele está caindo, para acordar e ver que não caiu.
Wednesday, February 28, 2007
Tuesday, February 27, 2007
Jogo de adivinhação
Façam suas apostas! Quem é favorito ao Mundial de Fórmula 1 de 2007? Meus palpites estão lá no GPTotal. Aguardo vocês!
Thursday, February 22, 2007
Pirambu
A possibilidade de o Corinthians ser desclassificado da Copa do Brasil por um time chamado Pirambu não é o problema em si. O Palmeiras já caiu diante do ASA de Arapiraca e não morreu por isso. O ASA, que ao lado da Inter de Limeira e do Manchester United ganhou um lugarzinho especial no meu coração alvi-negro, além de tudo encerra minhas iniciais - Alessandra de Souza Alves. Sou ASA, de fato, talvez por isso voe tanto, tanto devaneio.
Pirambu não é ruim por definição. Ruins são os trocadilhos - pirambeira, o mais óbvio - e todas as referências desagradáveis que se seguem a palavras terminadas em "u". Dããããã...
É um time de Sergipe, o elenco inteiro, incluindo o técnico, custa aos cofres do clube a soma de R$ 50 mil. Que deve ser o quê? Um Wilson, um Wellington? Valente Pirambu, ele não é o problema.
Vislumbro daqui alguns anos, eu olhando por cima dos ombros da minha velhice, e recordando o Pirambu. Naquele ponto do futuro, Pirambu será apenas uma foto na parede, mas como vai doer. Não por ser Pirambu, talvez pelo Saci. É atacante do Pirambu, o Saci, que também não é intrinsecamente ruim (um ser mitológico que atazana a vida da Cuca merece respeito).
O ruim no Saci, de novo, são as piadas que enseja. Saci pulou na área do Corinthians, Saci errou o gol porque não chutou com a perna boa. Saci tem perna boa? Dããããã...
Nem Pirambu, nem Saci. A foto que dói é esse time desconjuntado, um ajuntado de gente que eventualmente - alguns - jogam bola. Um catadão de homens paradoxais, fortes e desafiadores a um tempo, estirados no chão, cara de choro, no tempo seguinte.
Problema não é Pirambu, coisa-ruinzinha não é o Saci. Olhe para si, Corinthians.
Pirambu não é ruim por definição. Ruins são os trocadilhos - pirambeira, o mais óbvio - e todas as referências desagradáveis que se seguem a palavras terminadas em "u". Dããããã...
É um time de Sergipe, o elenco inteiro, incluindo o técnico, custa aos cofres do clube a soma de R$ 50 mil. Que deve ser o quê? Um Wilson, um Wellington? Valente Pirambu, ele não é o problema.
Vislumbro daqui alguns anos, eu olhando por cima dos ombros da minha velhice, e recordando o Pirambu. Naquele ponto do futuro, Pirambu será apenas uma foto na parede, mas como vai doer. Não por ser Pirambu, talvez pelo Saci. É atacante do Pirambu, o Saci, que também não é intrinsecamente ruim (um ser mitológico que atazana a vida da Cuca merece respeito).
O ruim no Saci, de novo, são as piadas que enseja. Saci pulou na área do Corinthians, Saci errou o gol porque não chutou com a perna boa. Saci tem perna boa? Dããããã...
Nem Pirambu, nem Saci. A foto que dói é esse time desconjuntado, um ajuntado de gente que eventualmente - alguns - jogam bola. Um catadão de homens paradoxais, fortes e desafiadores a um tempo, estirados no chão, cara de choro, no tempo seguinte.
Problema não é Pirambu, coisa-ruinzinha não é o Saci. Olhe para si, Corinthians.
Wednesday, February 21, 2007
Mitonaíma
"Feliz ano novo!", "Hoje, o ano começa", "2007 está começando agora"...
Três arghs! do âmago do meu ser para frases do gênero, ditas na quarta-feira de cinzas.
Mas, easy boy!, ainda ouviremos algumas delas na próxima segunda-feira, dia 26 de fevereiro, a primeira segunda-feira pós-Carnaval e, na opinião de alguns, o início real do ano.
Sinto engulhos com essa mania besta por dois motivos. Primeiro, porque definitivamente isso não vale para mim. Tirei uma semana de férias, entre os dias 6 e 13 de janeiro, e já trabalhei à beça desde então. Como meu trabalho pressupõe a atuação de várias outras pessoas - escrever e editar jornais e revistas não é, de maneira alguma, um trabalho solitário - concluo que muitos profissionais estavam trabalhando ao mesmo tempo que eu, em atividades correlatas.
Os clientes fornecendo informações e aprovando textos e layouts, os diagramadores criando páginas, os fotógrafos registrando imagens, os editores de arte finalizando publicações de todo tipo, o pessoal do suporte fechando CDs, os motoboys levando material daqui pra lá, os técnicos gerando provas heliográficas, o pessoal da gráfica rodando páginas. Juntos, fizemos isso várias vezes, entre o começo de janeiro e hoje, quarta-feira de cinzas, na qual já estou trabalhando, tendo a companhia de muitos deles, também já no batente.
O outro motivo que me leva à irritação com essas frases bobas é a perpetuação do mito. A preguiça ancestral de nosso povo. O Carnaval, a folia, o culto ao prazer. Vá à quadra de uma escola de samba, hoje, e pergunte lá se ninguém trabalhou ainda, este ano. E dê um pulinho no Olodum, no Timbalada, nas estruturas dos camarotes do circuito Barra-Ondina e pergunte lá se ninguém fez nada, ainda, este ano. Até para haver o culto pagão, há que trabalhar. E tudo o que se trabalhou na 25 de Março para vender fantasias, e nas agências de turismo, para garantir o pacote de Carnaval dos mais endinheirados, e nas lojas e barracas e junto aos ambulantes, na praia, para assegurar a cerveja gelada, o queijo de coalho na brasa, o chicabom que seu filho lambuzou na bochecha enquanto rolava na areia do Guarujá.
Isso vale para você? Seu ano só começou agora?
Três arghs! do âmago do meu ser para frases do gênero, ditas na quarta-feira de cinzas.
Mas, easy boy!, ainda ouviremos algumas delas na próxima segunda-feira, dia 26 de fevereiro, a primeira segunda-feira pós-Carnaval e, na opinião de alguns, o início real do ano.
Sinto engulhos com essa mania besta por dois motivos. Primeiro, porque definitivamente isso não vale para mim. Tirei uma semana de férias, entre os dias 6 e 13 de janeiro, e já trabalhei à beça desde então. Como meu trabalho pressupõe a atuação de várias outras pessoas - escrever e editar jornais e revistas não é, de maneira alguma, um trabalho solitário - concluo que muitos profissionais estavam trabalhando ao mesmo tempo que eu, em atividades correlatas.
Os clientes fornecendo informações e aprovando textos e layouts, os diagramadores criando páginas, os fotógrafos registrando imagens, os editores de arte finalizando publicações de todo tipo, o pessoal do suporte fechando CDs, os motoboys levando material daqui pra lá, os técnicos gerando provas heliográficas, o pessoal da gráfica rodando páginas. Juntos, fizemos isso várias vezes, entre o começo de janeiro e hoje, quarta-feira de cinzas, na qual já estou trabalhando, tendo a companhia de muitos deles, também já no batente.
O outro motivo que me leva à irritação com essas frases bobas é a perpetuação do mito. A preguiça ancestral de nosso povo. O Carnaval, a folia, o culto ao prazer. Vá à quadra de uma escola de samba, hoje, e pergunte lá se ninguém trabalhou ainda, este ano. E dê um pulinho no Olodum, no Timbalada, nas estruturas dos camarotes do circuito Barra-Ondina e pergunte lá se ninguém fez nada, ainda, este ano. Até para haver o culto pagão, há que trabalhar. E tudo o que se trabalhou na 25 de Março para vender fantasias, e nas agências de turismo, para garantir o pacote de Carnaval dos mais endinheirados, e nas lojas e barracas e junto aos ambulantes, na praia, para assegurar a cerveja gelada, o queijo de coalho na brasa, o chicabom que seu filho lambuzou na bochecha enquanto rolava na areia do Guarujá.
Isso vale para você? Seu ano só começou agora?
Thursday, February 15, 2007
Nomes de nomes
Dia desses, entreguei um cartão de visita a um interlocutor, durante um evento, e nos pusemos a falar da origem de nossos nomes. Proferi a frase que resume minha sina – “Tenho nome de época e sobrenome de pobre.” Chama Alessandra? É do começo da década de 70, pode apostar. Alves, Souza, Silva, Santos, Pereira, Oliveira não são nem nomes. Isso é domínio público.
Uma vez, na época do vestibular, cheguei a fazer uma prova, na PUC, com uma classe inteira composta de Alessandras. Umas vinte e cinco defensoras da espécie humana, que é o significado do nome. Como se vê, fomos todas incompetentes, já que a humanidade está indo pelo ralo. Tomar emprestada tal origem é uma pequena licença poética. Alessandra é derivado de Alexandre, este sim o defensor dos homens. Pelo jeito, faltam Alexandres na praça.
Sou a primogênita e sempre tenho a impressão de que o filho mais velho carrega a expectativa de ser um varão. Minha mãe diz – e não tenho motivos para duvidar – que ela sempre sonhou em ter uma filha. Mas não tenho dúvidas de que a torcida por um XY era grande na família paterna. Sucedi outras duas primas naquele ramo familiar e meu pai, além do mais, era o único homem daquela geração. Ele nunca disse e eu também seria leviana de afirmar tal frustração, até porque o varão veio cinco anos depois, mas sempre deve restar aquela ponta de esperança de que alguém carregue o sobrenome gerações à frente. Grande coisa, um Alves...
Mas afinal cheguei ao mundo em uma quinta-feira pós-Carnaval, mostrando ao mundo o que a paulista tem. Os nomes estavam parcialmente definidos. Se fosse um menino, meu pai pensava em Sérgio Ricardo. O único que me vem à mente é o da violada na platéia, mas acho que a inspiração era mesmo a avalanche de nomes compostos daquele fim de anos 60. Tanto que, para menina, aventava-se a possibilidade de Ana Cláudia. Só que já havia uma Cláudia na família e minha mãe não queria que eu virasse Ana ou Aninha. Balançava por Vanessa, mas aí morava um problema.
Uma das minhas avós, a trasmontana metódica na cozinha, enrolava-se com Vanessa e acabava se referindo à futura neta como Valeska, que minha mãe definitivamente não apreciou. Eis que surge o príncipe, ele mesmo, Ronnie Von, apresentando sua filha ao mundo – Alessandra!
Minha mãe adorou o nome e bateu o martelo. Só que Alessandra são dez letras, com encontro consonantal e tudo, quase um trava-língua para outras crianças. Logo virei Lelê para os primos. Na infância, eu tinha ódio de morte se alguém se chamasse de Alexandra. Era quase uma ofensa, sei lá por que razão. Ainda hoje, acho estranho quando me perguntam o nome, na hora de preencher uma ficha, e tascam o xis no meio. Eu disse Alessandra, não Alexandra, pô! No fundo, acho que hoje até gostaria mais de me chamar Alexandra, menos comum, talvez menos datado.
Tive fases distintas, de preferir me chamar outra coisa que não Alessandra. Quando era criança, achava que o nome mais lindo do mundo era Beatriz, e creio que muitas das minhas contemporâneas pensavam o mesmo, porque tem uma pá de Beatrizes na faixa dos seis, sete anos, filhinhas de Alessandras, Adrianas, Andréas, Lucianas. De brincadeira, vestindo personagens para platéias seletíssimas, assumindo apelidos circunstanciais, já fui Maria do Carmo, Maria de Lourdes, Letícia, Camilinha, Monica. Ao fim e ao cabo, sou sempre Alessandra, datado e dotado de uma característica estapafúrdia: de trás para frente, vira Ardnassela, que pode não significar “o defensor da espécie humana”, mas é inegavelmente a descrição do que acontece com certa parte da anatomia humana quando se anda muito tempo a cavalo.
E você, qual é seu nome? Que história ele tem?
Uma vez, na época do vestibular, cheguei a fazer uma prova, na PUC, com uma classe inteira composta de Alessandras. Umas vinte e cinco defensoras da espécie humana, que é o significado do nome. Como se vê, fomos todas incompetentes, já que a humanidade está indo pelo ralo. Tomar emprestada tal origem é uma pequena licença poética. Alessandra é derivado de Alexandre, este sim o defensor dos homens. Pelo jeito, faltam Alexandres na praça.
Sou a primogênita e sempre tenho a impressão de que o filho mais velho carrega a expectativa de ser um varão. Minha mãe diz – e não tenho motivos para duvidar – que ela sempre sonhou em ter uma filha. Mas não tenho dúvidas de que a torcida por um XY era grande na família paterna. Sucedi outras duas primas naquele ramo familiar e meu pai, além do mais, era o único homem daquela geração. Ele nunca disse e eu também seria leviana de afirmar tal frustração, até porque o varão veio cinco anos depois, mas sempre deve restar aquela ponta de esperança de que alguém carregue o sobrenome gerações à frente. Grande coisa, um Alves...
Mas afinal cheguei ao mundo em uma quinta-feira pós-Carnaval, mostrando ao mundo o que a paulista tem. Os nomes estavam parcialmente definidos. Se fosse um menino, meu pai pensava em Sérgio Ricardo. O único que me vem à mente é o da violada na platéia, mas acho que a inspiração era mesmo a avalanche de nomes compostos daquele fim de anos 60. Tanto que, para menina, aventava-se a possibilidade de Ana Cláudia. Só que já havia uma Cláudia na família e minha mãe não queria que eu virasse Ana ou Aninha. Balançava por Vanessa, mas aí morava um problema.
Uma das minhas avós, a trasmontana metódica na cozinha, enrolava-se com Vanessa e acabava se referindo à futura neta como Valeska, que minha mãe definitivamente não apreciou. Eis que surge o príncipe, ele mesmo, Ronnie Von, apresentando sua filha ao mundo – Alessandra!
Minha mãe adorou o nome e bateu o martelo. Só que Alessandra são dez letras, com encontro consonantal e tudo, quase um trava-língua para outras crianças. Logo virei Lelê para os primos. Na infância, eu tinha ódio de morte se alguém se chamasse de Alexandra. Era quase uma ofensa, sei lá por que razão. Ainda hoje, acho estranho quando me perguntam o nome, na hora de preencher uma ficha, e tascam o xis no meio. Eu disse Alessandra, não Alexandra, pô! No fundo, acho que hoje até gostaria mais de me chamar Alexandra, menos comum, talvez menos datado.
Tive fases distintas, de preferir me chamar outra coisa que não Alessandra. Quando era criança, achava que o nome mais lindo do mundo era Beatriz, e creio que muitas das minhas contemporâneas pensavam o mesmo, porque tem uma pá de Beatrizes na faixa dos seis, sete anos, filhinhas de Alessandras, Adrianas, Andréas, Lucianas. De brincadeira, vestindo personagens para platéias seletíssimas, assumindo apelidos circunstanciais, já fui Maria do Carmo, Maria de Lourdes, Letícia, Camilinha, Monica. Ao fim e ao cabo, sou sempre Alessandra, datado e dotado de uma característica estapafúrdia: de trás para frente, vira Ardnassela, que pode não significar “o defensor da espécie humana”, mas é inegavelmente a descrição do que acontece com certa parte da anatomia humana quando se anda muito tempo a cavalo.
E você, qual é seu nome? Que história ele tem?
Wednesday, February 14, 2007
Homem primata
Ao vencedor as batatas? Vale tudo para ser vitorioso? No GPTotal, a reflexão sobre um personagem polêmico da Fórmula 1. Vai lá, vai...
Tuesday, February 13, 2007
Treze anos
O que me assombra não são os 37. Choca saber que em apenas 13 anos serão 50. Porque os últimos treze anos passaram assim, voando, o que me leva facilmente a concluir que os próximos serão ainda mais lépidos.
O tempo não parece passar mais rápido, passa mesmo. Pura questão de proporcionalidade. Quando se tem dez anos, um ano é um décimo de sua vida. A relação vai sempre diminuindo, e aos 50 esse consagrado período de doze meses é um cinquenta-avo da sua existência. Tão pouco...
O tempo talvez deixe de ser importante com o tempo. Nesses dias, tenho refletido sobre uma singela entrevista, que li na Contigo, de Dona Canô, mãe de Caetano e Bethânia. Se tudo continuar como está (toc-toc-toc), Dona Canô completa cem anos em setembro próximo. Disse que não fez planos ainda para a festa porque não pode planejar o que nem sabe se vai acontecer. E revelou que, nesses mais de quarenta anos desde a vinda para o sul, não passou um dia sequer sem que Bethânia lhe telefonasse duas vezes. Pode estar no Rio ou em qualquer cidade do mundo. Duas vezes por dia, liga para a mãe.
Eu aqui, achando que falta pouco tempo para os meus 50 anos, e Dona Canô nem tchuns para o próprio centenário. "Tempo, tempo, tempo, tempo/Entro num acordo contigo".(*)
Obrigada a todos que ligaram, mandaram e-mails, recados pelo Orkut!
(*) "Oração ao tempo", Caetano Veloso
Monday, February 12, 2007
Primeiro mundo, pero no mucho
Estava ouvindo o noticiário da manhã, pelo rádio, quando uma propaganda me chamou a atenção. Uma rede de postos de combustível sugeria que pessoas "apaixonadas por carro", desejosas de trabalhar em tal rede, cadastrassem seus currículos na página da empresa, na internet. Sempre que acontecem essas situações, olho para o aparelho de rádio como se ele pudesse me explicar algo mais com o olhar.
Sei que é uma tentativa de apenas concentrar melhor minha atenção, para ter certeza se entendi direito. Estamos falando de trabalhar como frentista de posto, certo? Não, já comecei mal. Assim como as empresas hoje não têm mais funcionários, muito menos empregados (ô boca suja!), mas "colaboradores", postos não têm mais frentistas. Inventaram um vasto sortimento de nomes para a função, até "auxiliar de pista". Então tá. Estamos falando de profissionais para encher o tanque do carro, verificar fluidos, lavar o vidro, calibrar os pneus? E precisa pedir para esse pessoal "cadastrar o currículo no site"? Não é demais?
Tudo bem. Vamos verificar a realidade do país. Hoje em dia, conectar-se à rede não é nenhuma tarefa hercúlea. Há trocentas lan houses em todo canto, as Casas Bahia vendem computador em dezenas de prestações fixas. Sejamos Pollyanna e não sejamos preconceituosos: por que só os universitários podem cadastrar seus currículos na web? Façamos o mesmo com os frentistas! Estamos todos plugados, viva a banda larga, uma salva de palmas para o e-mail. Acho que entramos para o Primeiro Mundo e não me informaram, vai ver foi isso.
Daí chego em casa do sacolão, vou pegar o carrinho de compras na garagem e me deparo com uma engonhoca nova. Os dois carrinhos do prédio estão presos à parede por um cabo de metal flexível. Para soltá-los, há que ter uma chavinha própria, com o número do apartamento. Assim, quem chegar para usar o carrinho e não encontrá-lo disponível vai saber, pela chavinha dedo-duro, quem cometeu o crime de retirá-lo e não o devolveu. Portanto, depois de descarregar as compras no apartamento, devo voltar à garagem para resgatar minha chavinha e salvaguardar minha reputação.
Ao contexto: moro em um prédio pequeno, com apenas dezoito apartamentos e um único andar de garagem. Não seria muito mais lógico que cada morador, ao usar o carrinho, deixasse-o de volta no elevador? Quem fosse usar o mesmo na seqüência simplesmente devolveria o carrinho à garagem e pronto. Eu usei, você tira. Você usou, eu tiro. Não cairia a mão de ninguém e, mais importante, eis o detalhe!!! Quem usou o carrinho pela última vez não iria fazer mais duas viagens de elevador, aumentando o consumo de energia e o desgaste do equipamento.
Acho espantoso o fato de que estamos todos preocupados com o meio ambiente e com o consumo de recursos naturais, mas não somos capazes de trazer isso para o dia-a-dia. Também me espanta o abismo entre o discurso de um povo metido a bacana, que quer ser civilizado, e sua prática. Porque o cidadão do mundo, que viaja para a Europa a bordo de seu pacote turístico pago em prestações, acha lindo o jeito como o gringo respeita o espaço do outro e aproveita melhor os recursos. Mas na hora de agir de fato como uma comunidade, Deus me livre.
Sei que é uma tentativa de apenas concentrar melhor minha atenção, para ter certeza se entendi direito. Estamos falando de trabalhar como frentista de posto, certo? Não, já comecei mal. Assim como as empresas hoje não têm mais funcionários, muito menos empregados (ô boca suja!), mas "colaboradores", postos não têm mais frentistas. Inventaram um vasto sortimento de nomes para a função, até "auxiliar de pista". Então tá. Estamos falando de profissionais para encher o tanque do carro, verificar fluidos, lavar o vidro, calibrar os pneus? E precisa pedir para esse pessoal "cadastrar o currículo no site"? Não é demais?
Tudo bem. Vamos verificar a realidade do país. Hoje em dia, conectar-se à rede não é nenhuma tarefa hercúlea. Há trocentas lan houses em todo canto, as Casas Bahia vendem computador em dezenas de prestações fixas. Sejamos Pollyanna e não sejamos preconceituosos: por que só os universitários podem cadastrar seus currículos na web? Façamos o mesmo com os frentistas! Estamos todos plugados, viva a banda larga, uma salva de palmas para o e-mail. Acho que entramos para o Primeiro Mundo e não me informaram, vai ver foi isso.
Daí chego em casa do sacolão, vou pegar o carrinho de compras na garagem e me deparo com uma engonhoca nova. Os dois carrinhos do prédio estão presos à parede por um cabo de metal flexível. Para soltá-los, há que ter uma chavinha própria, com o número do apartamento. Assim, quem chegar para usar o carrinho e não encontrá-lo disponível vai saber, pela chavinha dedo-duro, quem cometeu o crime de retirá-lo e não o devolveu. Portanto, depois de descarregar as compras no apartamento, devo voltar à garagem para resgatar minha chavinha e salvaguardar minha reputação.
Ao contexto: moro em um prédio pequeno, com apenas dezoito apartamentos e um único andar de garagem. Não seria muito mais lógico que cada morador, ao usar o carrinho, deixasse-o de volta no elevador? Quem fosse usar o mesmo na seqüência simplesmente devolveria o carrinho à garagem e pronto. Eu usei, você tira. Você usou, eu tiro. Não cairia a mão de ninguém e, mais importante, eis o detalhe!!! Quem usou o carrinho pela última vez não iria fazer mais duas viagens de elevador, aumentando o consumo de energia e o desgaste do equipamento.
Acho espantoso o fato de que estamos todos preocupados com o meio ambiente e com o consumo de recursos naturais, mas não somos capazes de trazer isso para o dia-a-dia. Também me espanta o abismo entre o discurso de um povo metido a bacana, que quer ser civilizado, e sua prática. Porque o cidadão do mundo, que viaja para a Europa a bordo de seu pacote turístico pago em prestações, acha lindo o jeito como o gringo respeita o espaço do outro e aproveita melhor os recursos. Mas na hora de agir de fato como uma comunidade, Deus me livre.
Thursday, February 08, 2007
Momento histórico
Aconteceu.
A notícia que eu esperava desde o primeiro ano da faculdade de jornalismo foi divulgada hoje e vem da Nova Zelândia.
Quando eu engrossava as fileiras de alunos da Escola de Comunicações e Artes da USP sempre ouvia de algum professor a seguinte definição: notícia não é quando o cachorro morde o homem, mas quando o homem morde o cachorro.
Notícia é inusitado. Pois hoje, finalmente, aconteceu. Reproduzo a notícia que saiu no Terra:
Homem morde cão em perseguição policial
Um homem que era perseguido sob suspeita de roubo de um armazém ao ser encurralado em beira de precipício por cachorro policial resolveu partir para o ataque e mordeu o animal na cidade de Napier, na Nova Zelândia. Eram dois homens. Um deles se jogou no declive e acabou caindo direto nas mãos de policiais que esperavam no local.
O outro, que estava armado com uma faca, resolveu morder Edge, um pastor alemão. "Ele mordeu o cão antes", disse o sargento John McGregor.
"Eu acho que ele sabia que ia ser mordido, então ele mordeu antes", contou o policial, ressaltando que o cachorro venceu a briga e o suspeito saiu com duas lacerações. Os dois homens foram presos e acusados de assalto com lesão por roubo a armazém na última terça-feira, em que o dono foi esfaqueado.
Edge, o cão, já passou por uma cirurgia ao ser atingido no peito por facada durante uma perseguição policial em junho de 2006. Após a cirurgia, com transfusão de sangue, ele se recuperou totalmente.
AP
A notícia que eu esperava desde o primeiro ano da faculdade de jornalismo foi divulgada hoje e vem da Nova Zelândia.
Quando eu engrossava as fileiras de alunos da Escola de Comunicações e Artes da USP sempre ouvia de algum professor a seguinte definição: notícia não é quando o cachorro morde o homem, mas quando o homem morde o cachorro.
Notícia é inusitado. Pois hoje, finalmente, aconteceu. Reproduzo a notícia que saiu no Terra:
Homem morde cão em perseguição policial
Um homem que era perseguido sob suspeita de roubo de um armazém ao ser encurralado em beira de precipício por cachorro policial resolveu partir para o ataque e mordeu o animal na cidade de Napier, na Nova Zelândia. Eram dois homens. Um deles se jogou no declive e acabou caindo direto nas mãos de policiais que esperavam no local.
O outro, que estava armado com uma faca, resolveu morder Edge, um pastor alemão. "Ele mordeu o cão antes", disse o sargento John McGregor.
"Eu acho que ele sabia que ia ser mordido, então ele mordeu antes", contou o policial, ressaltando que o cachorro venceu a briga e o suspeito saiu com duas lacerações. Os dois homens foram presos e acusados de assalto com lesão por roubo a armazém na última terça-feira, em que o dono foi esfaqueado.
Edge, o cão, já passou por uma cirurgia ao ser atingido no peito por facada durante uma perseguição policial em junho de 2006. Após a cirurgia, com transfusão de sangue, ele se recuperou totalmente.
AP
Wednesday, February 07, 2007
Alguém precisa detê-lo
.
É de se desconfiar. Sujeito quando vira nome de era, alguma séria aprontou. Era Vargas, Era Napoleão, Era Hitler. Foi, aliás, na Era Collor que ele mereceu a sua. Péssimo sinal. Depois, vá lá, recuperou-se, assumiu a braçadeira de capitão, ergueu a taça. Não que tenha aprendido a ser craque, impossível ir contra a genética. Mas virou símbolo de determinação, braços tesos, punhos cerrados, como se chamasse para a briga na esquina. De fato, não mudou. Mudamos nós, aos poucos engolindo a lógica de que o importante é vencer, meio a zero, futebol de resultados, essas coisas que nos fizeram esquecer da beleza.
Chegou a técnico da seleção brasileira sem nunca ter treinado nenhum time antes. Tudo bem. Releve-se. O problema não era jamais ter visto Dunga nesse cargo. O terrível foi ver, pela primeira vez, Dunga sem uniforme de jogador. Ele teria sido perdoado de tudo se cristalizasse sua imagem em nossas retinas com o amarelo da camisa, o azul do calção e a taça de 1994 sobre a cabeça. Mas não. Ele primeiro apareceu com isso:
Nossa Senhora de Coco Chanel, me dê forças. Respiro fundo. Sim, já superei meu trauma de paletó ou blazer à beira do gramado. Quando Luxemburgo começou com isso, primeiro eu ri, achando que um técnico de futebol de terno, à beira do gramado, era a mesma coisa que um noivo, à beira do altar, de sunga. É esquisito, mas digerível (o técnico, não o noivo de sunga). Então, aceitei o blazer de Dunga, a gola rulê. Jogo na Europa, fazia frio, afinal. Por mais que me apegasse a meu protetor, São Christian Dior, não dava para ignorar aquela coisa vermelha, parecendo o lencinho de um maitre de churrascaria, escapando pelo bolsinho do blazer. Ah, era uma gravata, explicou o dândi depois. Claro, tudo resolvido. Mas alguém pode me dizer onde ele ia enfiar uma gravata naquele suéter de gola rulê?!
Não, não respondam.
Ontem, na Inglaterra, um amistoso entre Brasil e Portugal. Frio a ponto de alguns jogadores entrarem em campo usando luva e cachecol. Pois o maneco resolve desfilar, à beira da verde grama, usando apenas uma camisa. Ou melhor, isso:
Dunga eternizou-se como um jogador duro, que parava o adversário, detinha o ataque contrário. Agora me respondam, por Santo Yves Saint-Laurent, quem pode detê-lo?
É de se desconfiar. Sujeito quando vira nome de era, alguma séria aprontou. Era Vargas, Era Napoleão, Era Hitler. Foi, aliás, na Era Collor que ele mereceu a sua. Péssimo sinal. Depois, vá lá, recuperou-se, assumiu a braçadeira de capitão, ergueu a taça. Não que tenha aprendido a ser craque, impossível ir contra a genética. Mas virou símbolo de determinação, braços tesos, punhos cerrados, como se chamasse para a briga na esquina. De fato, não mudou. Mudamos nós, aos poucos engolindo a lógica de que o importante é vencer, meio a zero, futebol de resultados, essas coisas que nos fizeram esquecer da beleza.
Chegou a técnico da seleção brasileira sem nunca ter treinado nenhum time antes. Tudo bem. Releve-se. O problema não era jamais ter visto Dunga nesse cargo. O terrível foi ver, pela primeira vez, Dunga sem uniforme de jogador. Ele teria sido perdoado de tudo se cristalizasse sua imagem em nossas retinas com o amarelo da camisa, o azul do calção e a taça de 1994 sobre a cabeça. Mas não. Ele primeiro apareceu com isso:
Nossa Senhora de Coco Chanel, me dê forças. Respiro fundo. Sim, já superei meu trauma de paletó ou blazer à beira do gramado. Quando Luxemburgo começou com isso, primeiro eu ri, achando que um técnico de futebol de terno, à beira do gramado, era a mesma coisa que um noivo, à beira do altar, de sunga. É esquisito, mas digerível (o técnico, não o noivo de sunga). Então, aceitei o blazer de Dunga, a gola rulê. Jogo na Europa, fazia frio, afinal. Por mais que me apegasse a meu protetor, São Christian Dior, não dava para ignorar aquela coisa vermelha, parecendo o lencinho de um maitre de churrascaria, escapando pelo bolsinho do blazer. Ah, era uma gravata, explicou o dândi depois. Claro, tudo resolvido. Mas alguém pode me dizer onde ele ia enfiar uma gravata naquele suéter de gola rulê?!
Não, não respondam.
Ontem, na Inglaterra, um amistoso entre Brasil e Portugal. Frio a ponto de alguns jogadores entrarem em campo usando luva e cachecol. Pois o maneco resolve desfilar, à beira da verde grama, usando apenas uma camisa. Ou melhor, isso:
Dunga eternizou-se como um jogador duro, que parava o adversário, detinha o ataque contrário. Agora me respondam, por Santo Yves Saint-Laurent, quem pode detê-lo?
Tuesday, January 30, 2007
Feliz Aniversário (ou Distrações de uma blogueira)
Desculpem a omissão, o esquecimento, a terrível pisada na bola, mas no dia 29 de janeiro, este blog completou um ano e eu, a dona da pensão, simplesmente esqueci de fazer o registro.
Agradeço a todos pela companhia até aqui, convido a ficar por muito tempo ainda e sugiro a leitura do primeiro post deste blog, "A parábola do tremoço", no menu ao lado, em January 2006, para quem ainda não o fez.
Agradeço a todos pela companhia até aqui, convido a ficar por muito tempo ainda e sugiro a leitura do primeiro post deste blog, "A parábola do tremoço", no menu ao lado, em January 2006, para quem ainda não o fez.
Monday, January 29, 2007
Tim Randolph não gosta de GrandPrix
Já está no ar minha mais recente coluna no GPTotal, sobre um misterioso piloto que não gosta do maior filme de corrida de todos os tempo. Que será? Vai lá!
Saturday, January 27, 2007
Alguém anotou a placa?
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Não foi bem que Serena Williams venceu Maria Sharapova na final do Aberto da Austrália. O mais exato seria dizer que a norte-americana derrubou, atropelou e depois pisou em cima da russa. Uma hora e três minutos foram suficientes para Serena fazer dois sets a zero, com acachapantes parciais de 6-1 e 6-2. Serena, que entrou na competição como a número 81 do ranking, fez strogonoff da número 1. Sharapova está tão fime no topo da classificação feminina mundial que a derrota fragorosa não lhe fez nem cócegas. Segue em primeiro. Já Serena, que terminou 2006 em 95º lugar, vai aparecer na próxima lista em 14º.
Tenho grande simpatia por Serena, desde que ela venceu meu maior desafeto no tênis mundial de todos os tempos, a suíça Martina Hingis, na final do US Open de 1999. Serena tinha 18 anos na época e ainda era mais a irmã caçula de Venus Williams do que propriamente uma estrela. Naquela noite, em Flushing Meadows, ela fez com a desprezível Hingis mais ou menos o que aprontou com Sharapova neste final de semana. No entanto, a reação da russa à derrota, hoje em Melbourne, foi totalmente diferente do ataque de nervos da suíça, naquele já longínquo 1999. Enquanto a russa, neste sábado, posou feliz com a companheira vencedora e ao lado de seu troféu de vice-campeã, Martina ficou tão fula da vida naquela final do US Open que foi literalmente chorar no colo da mamãe depois de vencida.
Eu adoraria dizer que Serena está de volta à velha forma, mas não apostaria nem um dólar furado nisso. Apesar de ter acabado de conquistar seu terceiro título no Australian Open (os outros foram em 2003 e 2005), Serena parece viver uma espécie de esquizofrenia esportiva. Alterna exibições impecáveis, como a de hoje, com períodos de contusões sérias que a deixam fora de combate por vários meses. A fase atual revela um pouco dessa instabilidade. No ano passado, uma lesão no joelho impediu que ela realizasse a temporada completa no circuito profissional, disputando apenas quatro torneios. Está visivelmente acima do seu peso ideal. Serena surgiu para o mundo do tênis como uma atleta de músculos avantajados, sempre foi espantosamente forte, mas a forma atual está longe de ser uma celebração ao chamado "peso magro".
O mal que parece acometer Serena Williams é o mesmo que tem rondado diversas estrelas do tênis mundial, a começar pelo brasileiro Gustavo Kuerten. Ela, sua irmã Venus, Guga, Andy Roddick, Rafael Nadal, entre outros, têm enfrentado lesões recorrentes em articulações como joelhos, tornozelos, ombros e quadris. A força do tênis atual é muito grande. O impacto da bola, assustador. Para responder à altura, dá-lhe musculação. Excesso de carga mais impacto... Uma hora, a corda arrebenta mesmo.
Grandes jogadores jamais serão super-heróis, porque felizmente continuarão sendo humanos. Cedo ou tarde, o corpo grita.
Não foi bem que Serena Williams venceu Maria Sharapova na final do Aberto da Austrália. O mais exato seria dizer que a norte-americana derrubou, atropelou e depois pisou em cima da russa. Uma hora e três minutos foram suficientes para Serena fazer dois sets a zero, com acachapantes parciais de 6-1 e 6-2. Serena, que entrou na competição como a número 81 do ranking, fez strogonoff da número 1. Sharapova está tão fime no topo da classificação feminina mundial que a derrota fragorosa não lhe fez nem cócegas. Segue em primeiro. Já Serena, que terminou 2006 em 95º lugar, vai aparecer na próxima lista em 14º.
Tenho grande simpatia por Serena, desde que ela venceu meu maior desafeto no tênis mundial de todos os tempos, a suíça Martina Hingis, na final do US Open de 1999. Serena tinha 18 anos na época e ainda era mais a irmã caçula de Venus Williams do que propriamente uma estrela. Naquela noite, em Flushing Meadows, ela fez com a desprezível Hingis mais ou menos o que aprontou com Sharapova neste final de semana. No entanto, a reação da russa à derrota, hoje em Melbourne, foi totalmente diferente do ataque de nervos da suíça, naquele já longínquo 1999. Enquanto a russa, neste sábado, posou feliz com a companheira vencedora e ao lado de seu troféu de vice-campeã, Martina ficou tão fula da vida naquela final do US Open que foi literalmente chorar no colo da mamãe depois de vencida.
Eu adoraria dizer que Serena está de volta à velha forma, mas não apostaria nem um dólar furado nisso. Apesar de ter acabado de conquistar seu terceiro título no Australian Open (os outros foram em 2003 e 2005), Serena parece viver uma espécie de esquizofrenia esportiva. Alterna exibições impecáveis, como a de hoje, com períodos de contusões sérias que a deixam fora de combate por vários meses. A fase atual revela um pouco dessa instabilidade. No ano passado, uma lesão no joelho impediu que ela realizasse a temporada completa no circuito profissional, disputando apenas quatro torneios. Está visivelmente acima do seu peso ideal. Serena surgiu para o mundo do tênis como uma atleta de músculos avantajados, sempre foi espantosamente forte, mas a forma atual está longe de ser uma celebração ao chamado "peso magro".
O mal que parece acometer Serena Williams é o mesmo que tem rondado diversas estrelas do tênis mundial, a começar pelo brasileiro Gustavo Kuerten. Ela, sua irmã Venus, Guga, Andy Roddick, Rafael Nadal, entre outros, têm enfrentado lesões recorrentes em articulações como joelhos, tornozelos, ombros e quadris. A força do tênis atual é muito grande. O impacto da bola, assustador. Para responder à altura, dá-lhe musculação. Excesso de carga mais impacto... Uma hora, a corda arrebenta mesmo.
Grandes jogadores jamais serão super-heróis, porque felizmente continuarão sendo humanos. Cedo ou tarde, o corpo grita.
Friday, January 26, 2007
Maceió, o que Deus deu, o que o homem não dá
Devo ser mesmo alguém bem chata. Não que eu deteste viajar, gosto. Mas logo sinto falta da minha cama, do meu travesseiro, dos meus hábitos bestas. Estar de frente para o mar é um processo que atravessa três fases. Nos primeiros momentos, o deslumbramento. “Ah, que natureza linda, que paisagem privilegiada!” No segundo, a descompressão. “Puxa, quase nem pensei em trabalho, faz tanto tempo que não ligo o computador...” No terceiro, ai, que saco!!! Quem colocou toda essa areia aqui?!?!
O surto contra a vida selvagem até que demorou, desta vez. Me agüentei firme por vários dias, sinceramente envolvida pela beleza natural de Maceió. (Também, quando o chilique veio, sobrou para todo mundo: para a indefectível areia, para as algas, para o anoitecer precoce e, Oscar de melhor atuação destas férias, para o vento, diacho de vento inesgotável dessa terra!). Outra coisa que vai me tirando do sério nas férias é a hipocrisia do biquíni. Um instante, maestro: alguém já parou para pensar na porção de falsidade contida naquelas duas peças? À análise, pois.
A maioria das mulheres que veste biquíni jamais andaria de calcinha e sutiã pela casa, fecharia as janelas, cortinas e frestas sob a perspectiva de ser observada pela vizinhança em trajes íntimos. E, no entanto, vestem biquínis que recobrem menos seus corpos que suas enormes calcinhas de cintura alta e dispositivo de compressão na barriga. O que cria o salvo conduto do biquíni? É o tecido que limpa a barra ou as mulheres se deixam inebriar pela mistura insana de areia, maresia e vento, andando pela faixa de areia de uma maneira que não fariam dentro da própria casa? Enfim, em frente...
Como isso não se trata de uma reportagem turística, vou ser curta e grossa em minha faceta guia de viagem. Maceió é uma capital de linda orla, com praias paradisíacas a relativamente pouca distância do centro. Andando trinta ou quarenta quilômetros, para o sul ou para o norte, chega-se a recantos belos, locais quase rústicos onde a natureza é, de fato, privilegiada.
A questão é que meu encantamento com a natureza tem vida curta. Devo ser como aquele cantor chatinho que diz se encantar mais com a rede que com o mar. Mea culpa, mea maxima culpa, mas sou encantada com realizações, com transformações, com a capacidade do homem de progredir. A natureza bela esteve aí desde que o mundo é mundo, ninguém precisou criar nada. Bonito, para mim, é ver o homem interagir de maneira inteligente com esse mundo de Deus e deixar sua marca, criar o belo, não apenas admirá-lo.
Ano passado, fui para Salvador pela primeira vez. Amei a cidade, me encantei com tantos monumentos e locais históricos, tive a sensação de sempre ter estado lá. Não é sensação de vidas passadas, não, é o aflorar de tantas informações que crescemos ouvindo, seja nas aulas de história, nos romances, nas poesias, nas letras de música. (Ainda que eu tenha levado um choque imenso ao ver a tal escadaria do Senhor do Bonfim. Escadaria, baiana, pára com isso! Aquilo são três degraus!!!) Salvador e Maceió, como de resto todo esse nosso miserável país, são cidades que escoam pobreza por todo lado, o que dá uma tristeza quase permanente estando lá (lá e aqui, né?!). A natureza, em Maceió, é mais selvagem, menos urbanizada que em Salvador. Para quem gosta de praia, Maceió. A cidade de Salvador, por sua vez, é história, é folclore, é poesia, é música, é arquitetura colonial, é opulência do ouro. Para quem gosta de cidade, Salvador.
A sensação que tive, ao percorrer as ruas e a estrada costeira da capital alagoana, foi de que a cidade tem só o que Deus deu. O homem ali, até agora, não foi capaz de fazer muito. A natureza farta chocou meus olhos. Em toda a orla, coqueiros, coqueiros, coqueiros. Cocos e mais cocos apodrecendo no pé. Ninguém plantou aquilo, ninguém também vai colher. Não achei ninguém que me dissesse, mas não duvido que a voz corrente seja algo como: “o coco daqui não presta, não”. E eu não entenderia tal assertiva como insolência pura. Pode ser o fruto de uma tradição que opõe a posse e o poder, de um lado, e a pobreza e a subserviência, de outro.
Do sul maravilha, a bordo de meu pacote turístico pago em prestações, saí de Maceió com uma sensação incômoda, e não era a areia, esse meu antigo desafeto. Era a tristeza de ver como segue pobre e ao deus dará esse nosso Brasil.
O surto contra a vida selvagem até que demorou, desta vez. Me agüentei firme por vários dias, sinceramente envolvida pela beleza natural de Maceió. (Também, quando o chilique veio, sobrou para todo mundo: para a indefectível areia, para as algas, para o anoitecer precoce e, Oscar de melhor atuação destas férias, para o vento, diacho de vento inesgotável dessa terra!). Outra coisa que vai me tirando do sério nas férias é a hipocrisia do biquíni. Um instante, maestro: alguém já parou para pensar na porção de falsidade contida naquelas duas peças? À análise, pois.
A maioria das mulheres que veste biquíni jamais andaria de calcinha e sutiã pela casa, fecharia as janelas, cortinas e frestas sob a perspectiva de ser observada pela vizinhança em trajes íntimos. E, no entanto, vestem biquínis que recobrem menos seus corpos que suas enormes calcinhas de cintura alta e dispositivo de compressão na barriga. O que cria o salvo conduto do biquíni? É o tecido que limpa a barra ou as mulheres se deixam inebriar pela mistura insana de areia, maresia e vento, andando pela faixa de areia de uma maneira que não fariam dentro da própria casa? Enfim, em frente...
Como isso não se trata de uma reportagem turística, vou ser curta e grossa em minha faceta guia de viagem. Maceió é uma capital de linda orla, com praias paradisíacas a relativamente pouca distância do centro. Andando trinta ou quarenta quilômetros, para o sul ou para o norte, chega-se a recantos belos, locais quase rústicos onde a natureza é, de fato, privilegiada.
A questão é que meu encantamento com a natureza tem vida curta. Devo ser como aquele cantor chatinho que diz se encantar mais com a rede que com o mar. Mea culpa, mea maxima culpa, mas sou encantada com realizações, com transformações, com a capacidade do homem de progredir. A natureza bela esteve aí desde que o mundo é mundo, ninguém precisou criar nada. Bonito, para mim, é ver o homem interagir de maneira inteligente com esse mundo de Deus e deixar sua marca, criar o belo, não apenas admirá-lo.
Ano passado, fui para Salvador pela primeira vez. Amei a cidade, me encantei com tantos monumentos e locais históricos, tive a sensação de sempre ter estado lá. Não é sensação de vidas passadas, não, é o aflorar de tantas informações que crescemos ouvindo, seja nas aulas de história, nos romances, nas poesias, nas letras de música. (Ainda que eu tenha levado um choque imenso ao ver a tal escadaria do Senhor do Bonfim. Escadaria, baiana, pára com isso! Aquilo são três degraus!!!) Salvador e Maceió, como de resto todo esse nosso miserável país, são cidades que escoam pobreza por todo lado, o que dá uma tristeza quase permanente estando lá (lá e aqui, né?!). A natureza, em Maceió, é mais selvagem, menos urbanizada que em Salvador. Para quem gosta de praia, Maceió. A cidade de Salvador, por sua vez, é história, é folclore, é poesia, é música, é arquitetura colonial, é opulência do ouro. Para quem gosta de cidade, Salvador.
A sensação que tive, ao percorrer as ruas e a estrada costeira da capital alagoana, foi de que a cidade tem só o que Deus deu. O homem ali, até agora, não foi capaz de fazer muito. A natureza farta chocou meus olhos. Em toda a orla, coqueiros, coqueiros, coqueiros. Cocos e mais cocos apodrecendo no pé. Ninguém plantou aquilo, ninguém também vai colher. Não achei ninguém que me dissesse, mas não duvido que a voz corrente seja algo como: “o coco daqui não presta, não”. E eu não entenderia tal assertiva como insolência pura. Pode ser o fruto de uma tradição que opõe a posse e o poder, de um lado, e a pobreza e a subserviência, de outro.
Do sul maravilha, a bordo de meu pacote turístico pago em prestações, saí de Maceió com uma sensação incômoda, e não era a areia, esse meu antigo desafeto. Era a tristeza de ver como segue pobre e ao deus dará esse nosso Brasil.
Friday, January 19, 2007
25 anos sem ela
Tuesday, January 02, 2007
São Silvestre
Há sete anos, em uma festa familiar de Reveillon, um dos convivas exibia feliz sua medalha da Corrida de São Silvestre. Grávida de três meses e sem nenhum histórico atlético, externei meu objetivo de, um dia, correr essa prova. Meu irmão riu e desdenhou. Imagina, você correr a São Silvestre... Não me tomei de brios, nunca acreditei no desdém. Desde aquele 31 de dezembro de 1999, as palavras dele se mantiveram como um estímulo heterodoxo.
///
A frase da camiseta
Poucos dias antes do Natal, meu filho me pregou um susto. Passou dois dias internado com algo que depois se confirmou como uma virose. Até fechado o diagnóstico, muito apreensão. Depois do susto, o alívio. Voltando para casa, na saída do hospital, decidi a frase da camiseta: “Gracias a la vida”. Uma inscrição que continha vários significados. Um óbvio: graças por sua recuperação e pela pouca gravidade da ocorrência. Era também uma forma de homenagear minha cantora preferida, Elis Regina, que gravou música com este título no disco “Falso brilhante”. Elis, cuja morte completa 25 anos em 19 de janeiro próximo. E o fato de ser uma canção forte, composta pela chilena Violeta Parra, um dos ícones da música latino-americana “engajada”, traduz minha perene esperança de ver nosso pobre continente unido e pujante. Meu hábito de correr sempre com o boné branco e azul do Racing Club, que era do meu pai, somado à frase em espanhol, levantou-me a hipótese de que me identificassem como argentina. Não foi para apagar essa impressão, que não me ofende em nada, que decidi a frase das costas da camiseta.
“Viva o povo brasileiro”, acompanhada de uma bandeira do Brasil estilizada, era a homenagem ao povo que, desde o começo, eu havia imaginado. Nasceu da inspiração sugerida pelos leitores e foi, ao longo do percurso, a frase que mais suscitou comentários dos espectadores, nas ruas. Recebi vivas e palmas por várias vezes e fiquei sinceramente orgulhosa da escolha. Na avenida Rio Branco, em especial, algo me chamou a atenção: entre os olhares à margem da pista, o “povo brasileiro” por mim homenageado tinha eventualmente as feições andinas típicas de bolivianos e peruanos. Gente que tem desembarcado em São Paulo, nos últimos tempos, em busca de trabalho quase sempre mal pago e sacrificado, fugindo de coisa pior em seus próprios países. E, de repente, as frases da frente e a das costas pareceram traduzir a mesma esperança de um povo latino-americano mais feliz.
///
A corrida
Foi minha primeira São Silvestre e eu não sabia de fato o que esperar. Primeiro, achava que teria muita dificuldade na mítica subida da Brigadeiro. Depois, tranqüilizada por meu treinador em relação a esse item, voltei atenção para algo que ele considerava mais penoso – o percurso pelas ruas do Centro da cidade. Ruas estreitas, abafadas, com calor forte, um suplício. Atentei para o que os amigos veteranos Tales Torraga e Luiz Dias falaram, para poupar no início, guardar energias para o final. E nunca olhar para cima na Brigadeiro, para não desanimar. E também para a dose certa de hidratação: pegar um copinho de água em todos os postos, mas não beber em demasia. Molhar a boca, jogar água na nuca e nos pulsos, molhar o corpo se muito quente. Escolhi a bermuda que não tinha elástico frouxo nem que apertasse demais, certifiquei-me quanto aos cadarços bem atados, fui para a Paulista sem lenço e sem documento, para não me preocupar em segurar nada nem em deixar o que quer que fosse no guarda-volumes. 15h15, dada a largada.
Habituada a correr provas menos tradicionais, mas já atraentes para atletas amadores, me espantei com uma característica inesperada da São Silvestre. Não me deparei com aquele bolo de gente que costuma atrapalhar o ritmo de corrida nos primeiros quilômetros. A prova feminina da São Silvestre é consideravelmente menos cheia de atletas que, por exemplo, as provas da Corpore. Outro detalhe me chamou a atenção ainda na Paulista, repleta de espectadores nas laterais da avenida. Palmas, tantas e tão entusiasmadas, que cheguei a procurar no meu entorno para ver se havia “alguém conhecido”. Demorei a perceber que as palmas eram para nós mesmas, as tais “atletas amadoras que fazem a festa na Paulista, neste último dia do ano, mostrando sua disposição e blá-blá-blá”, na fala do locutor televisivo. Deve ser a mesma sensação de quem desfila pela primeira vez em uma escola de samba. O que essa gente está aplaudindo? Você, lesada!
Tudo bem na Paulista, tudo melhor da Consolação, desce o morro. Com a orientação de segurar o ritmo no começo, não desembestei na ladeira. Na boa, na manha, completei os dois primeiro quilômetros em dez minutos. Beleza. Uma média alta na comparação com os treinos, mas uma boa perspectiva. Desde o início, não me fixei em fazer necessariamente um bom tempo. Queria mesmo era terminar bem, e correndo o tempo todo, os 15 km.
Na avenida Ipiranga, o céu já estava negro. Sempre que corro naquele pedaço, como na prova do Centro Histórico, me vem à mente a óbvia “Sampa”, porque logo a seguir se entra na São João. Fiquei com a música de Caetano na cabeça por um bom tempo. Até então, era “Gracias a la vida” tocando na mente. “Gracias a la vida que me ha dado tanto/ Me ha dado la risa y me ha dado el llanto/ Así yo distingo dicha de quebranto/ los dos materiales que forman mi canto,/ y el canto de ustedes que es el mismo canto/ y el canto de todos, que es mi propio canto”.
Na São João, o primeiro posto de água. Peguei um copinho. Molha o bico, molha o corpo, joga o copinho de lado. E sobe a alça de acesso do Minhocão. Boa subida, a mais íngreme da prova, mas curtíssima. Em cima do elevado, as manifestações da rua partiam somente dos prédios residenciais. Prédios que já foram bacanas e hoje, bem decadentes, abrigam famílias numerosas e, em grande parte, bem animadas. Estímulos o tempo todo, e uma bandeira do Corinthians em uma das janelas. Ao aceno dos moradores, gritei “Viva o Timão!” e arranquei aplausos ainda mais entusiasmados. No fim do Minhocão, sem prédios ao redor, um silêncio solitário, quase triste. E as nuvens de um negrume renitente. O dia ficou noite. Quando virei no Largo Padre Péricles, ela chegou. Grossa e quente, uma chuva-benção. Veio em boa hora, mas logo lembrei de um detalhe que sempre me preocupa em pista molhada: as manchas de óleo que fazem escorregar. Atenção na passada, vamos em direção à Barra Funda.
Metade da prova, e a chuva só apertava. No avenida Norma Pieruccini Gianotti, uma tempestade. Os pingos grossos e quentes deram lugar a sopapos aquáticos que chegavam a doer nos braços e no peito. O tênis começou a pesar como seu eu carregasse duas caneleiras de dois quilos. E o vento era contra. Mas, como sou do contra também, segui. Os óculos de sol, que mantive apesar da ausência de tanta luz, começaram a embaçar. Aí veio a “minha” subida da Brigadeiro.
///
O imponderável
No viaduto que liga as avenidas Rudge e Rio Branco, segurando os óculos, notei que algo entrou no meu olho direito. Pisquei freneticamente para ver se saía. Não saiu. Cocei o olho, nada. Subi e desci o elevado com o olho direito fechado. Incomodava, raspava e ardia. Completamente encharcada, puxei a camiseta e esfreguei o tecido no olho. Melhorou. Ainda incomodava, mas pelo menos já conseguia mantê-lo aberto. Um retão me aguardava e lá fui pela Rio Branco inteira, passando pela Praça Princesa Isabel, aquela que tem o Duque de Caxias.
No final da longa reta, uma lanchonete com a televisão em altíssimo volume registrava a premiação das vencedoras. Ouvi o Hino Nacional Brasileiro e comentei com as outras atletas ao lado: “Uma brasileira ganhou!”. Braços para o alto, vivas ao Brasil. Elas já estavam no pódio e eu ainda tinha três quilômetros pela frente. E a Brigadeiro.
Estranhamente, a diferença entre as profissionais e eu não me desestimulou. Pensei que estava no quinto final da prova e que ainda estava muito bem, sem dor, com coração e pulmão sobrando e então aumentei o ritmo. O trecho final, no Centro, não foi penoso como me sugeriu o técnico. Pudera, não tinha nada do abafamento esperado com tanta chuva, que ainda caía, impiedosa. Foi, na verdade, bem agradável passar em frente ao Teatro Municipal, percorrer o Viaduto do Chá e me deparar com o Hotel Othon, onde meus pais passaram sua noite de núpcias, lugar que sempre me enternece. Uma boa subidinha na Líbero Badaró, em direção ao Largo São Francisco, e uma descida providencial para encarar a tinhosa, a inominável, a danada. “Ai, meu Deus, chegamos na Brigadeiro...”. A colega ao lado, altona pra burro, soltou a frase com um fio de voz incompatível com seu talhe gigantesco. “Quem é a Brigadeiro perto de você, mulher, vambora!”, eu disse e fui.
///
Megera domada
Tendo conferido a altimetria da prova, sabia que, naqueles dois quilômetros finais, subiríamos quase tudo o que tínhamos descido antes. Mas eu também tinha visto que o trecho inicial era plano. Com o gás à toda, dei um bom sprint nos primeiros quatrocentos metros, até notar a subida se acentuando. Daí pra frente, baixei a cabeça, cadenciei o passo e fui subindo. Dava duzentas passadas, cerca de duzentos e poucos metros, calculados nos treinos de esteira, e uma olhadinha para frente. A multidão era significativa no ladeirão, quase todos abrigados da chuva em bares e lanchonetes. Um sujeito gordalhão gritou: “Podem parar, vocês já perderam mesmo!”. Pra quê?! A mulherada se enfureceu. Algumas xingaram. Só respondi: “Já ganhamos, já ganhamos!” Palmas: êêêêê!!! O povo me adora!!!
Quando cruzei a Treze de Maio, a placa dos 14 km. Puta que pariu! (desculpe, escapou) Seriam trezentos metros no planalto na Paulista, o que significava que tínhamos só mais 700 metros de subida. Menos de duas voltas na pista de atletismo do clube. Menos de duas! Apertei o ritmo novamente e fui reconhecendo muito do meu “quintal”. Como meu escritório e academia ficam na região, correr ali era como estar em casa. Na véspera, fui à minha loja preferida de roupas, na esquina da Brigadeiro com a São Carlos do Pinhal e disse às meninas: “Amanhã, vou estar aqui de novo e, quando enxergar a fachada da loja, vou estar muito feliz”. Ao alcançar a tal esquina, eu já tinha “aplainado” a Brigadeiro. Ali, já não tinha subida. Mais uns quatrocentos metros e pronto.
Virar a esquina e avistar a Paulista, embaçada com tanta chuva, foi uma das visões mais reconfortantes que tive na vida. Era um chegar em casa depois de um dia exaustivo de trabalho. Era encontrar a cama pronta para o sono, era sopinha quente em noite de inverno, era chuveiro morno, abraço de alguém querido que estava distante, colo de mãe.
O relógio oficial marcava 1 hora e 24 minutos cravados. O meu cronômetro eu zerei com 1 hora, 22 minutos e 53 segundos. Bem acima da média de treinos, um pouco acima da média de 5 minutos por quilômetro, mas não me aborreci. A classificação final me deixou muito satisfeita. Terminei em 360º lugar na classificação geral, 61º na minha faixa etária. Nessas horas, é difícil escapar ao chavão karetê kid de que sua conquista vale o esforço, de que é preciso acreditar em si mesmo, de que a superação é uma mistura de disciplina e auto-confiança.
Feliz, muito feliz, realizei um objetivo antigo. O riso do meu irmão hoje tem forma. Virou uma medalha dourada com um atleta estilizado e grafismos vermelho e laranja. Tem nome também – 82ª São Silvestre.
///
A bravura dos grandes navegantes
No dia seguinte à empreitada, enquanto escrevo este relato, lembrando de cada detalhe, nem tudo me parece real. Na tarde deste dia 1º de janeiro de 2007, passeamos de carro pela cidade e fiz questão de percorrer alguns trechos do percurso. Andar na Rio Branco de ponta a ponta me fez incrédula. Corri mesmo tudo isso?
Correr a São Silvestre pela primeira vez reeditou em mim uma sensação que só tinha tido uma vez, após o parto do meu filho. A percepção de ter vivido algo grandioso e único, com uma necessidade premente de registrar o maior número possível de impressões, com medo de perdê-las nos desvãos da memória, retendo-as como se para vivenciá-las novamente. Ou, como lembro de ter escrito ao meu médico nos dias seguintes ao parto, como se tivesse vivido o último dia de aulas do último ano do curso: aquela certeza de que podem vir ocasiões igualmente importantes e marcantes, mas que nenhuma será como aquela. De forma bastante pretensiosa, acho que era assim que os desbravadores se sentiam, quando se lançavam ao mar e chegavam a algum lugar nunca visitado antes. De maneira ainda mais cabotina, chego a pensar que meu assombro ainda é maior, posto que nem sempre os navegantes tinham consciência de suas próprias façanhas.
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Gracias a usted!
Um registro final, na forma de agradecimento ao meu treinador, Zé Eduardo Pompeo, da Equipe Conexão. As planilhas enviadas quinzenalmente pelo Zé me prepararam para a prova, mas um detalhe foi fundamental nesta etapa. Certa vez, durante um treino, ele mandou que eu parasse a esteira e me mostrou como eu pisava errado. Notou que eu, bem mais leve que ele, fazia mais barulho ao “aterrissar”. Ensinou o jeito certo de dar a passada. De um dia para o outro, nunca mais tive bolhas nos pés. Minhas dores “de dia seguinte” também diminuíram drasticamente e meu tempo melhorou. Obrigada também ao professor Alexandre Cepeda, da Musculação da Runner. Junto com o Zé, ele venceu minha resistência inicial. Os dois traçaram um plano pelo qual eu dedicava dois dias da semana apenas à musculação, sem corrida. Eu não me conformava com a idéia de sair “seca” da sala, sem o suor típico dos treinos aeróbicos. Pois eles me dobraram e eu logo notei a melhora nos resultados. Por fim, mas não menos importante, um agradecimento a três pessoas: meu amigo Tales, que na semana anterior da prova me estimulou muito via MSN Messenger, e meus queridos “meninos” lá de casa, pelo apoio incondicional.
E para o pessoal do blog, nada? Claro que também agradeço por todas as manifestações de apoio, sugestões de frase e desejos de boa sorte. E espero incentivar pelo menos mais alguém a entrar para o time dos corredores de rua desta cidade e de qualquer parte do planeta. Corre, gente, corre!
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A frase da camiseta
Poucos dias antes do Natal, meu filho me pregou um susto. Passou dois dias internado com algo que depois se confirmou como uma virose. Até fechado o diagnóstico, muito apreensão. Depois do susto, o alívio. Voltando para casa, na saída do hospital, decidi a frase da camiseta: “Gracias a la vida”. Uma inscrição que continha vários significados. Um óbvio: graças por sua recuperação e pela pouca gravidade da ocorrência. Era também uma forma de homenagear minha cantora preferida, Elis Regina, que gravou música com este título no disco “Falso brilhante”. Elis, cuja morte completa 25 anos em 19 de janeiro próximo. E o fato de ser uma canção forte, composta pela chilena Violeta Parra, um dos ícones da música latino-americana “engajada”, traduz minha perene esperança de ver nosso pobre continente unido e pujante. Meu hábito de correr sempre com o boné branco e azul do Racing Club, que era do meu pai, somado à frase em espanhol, levantou-me a hipótese de que me identificassem como argentina. Não foi para apagar essa impressão, que não me ofende em nada, que decidi a frase das costas da camiseta.
“Viva o povo brasileiro”, acompanhada de uma bandeira do Brasil estilizada, era a homenagem ao povo que, desde o começo, eu havia imaginado. Nasceu da inspiração sugerida pelos leitores e foi, ao longo do percurso, a frase que mais suscitou comentários dos espectadores, nas ruas. Recebi vivas e palmas por várias vezes e fiquei sinceramente orgulhosa da escolha. Na avenida Rio Branco, em especial, algo me chamou a atenção: entre os olhares à margem da pista, o “povo brasileiro” por mim homenageado tinha eventualmente as feições andinas típicas de bolivianos e peruanos. Gente que tem desembarcado em São Paulo, nos últimos tempos, em busca de trabalho quase sempre mal pago e sacrificado, fugindo de coisa pior em seus próprios países. E, de repente, as frases da frente e a das costas pareceram traduzir a mesma esperança de um povo latino-americano mais feliz.
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A corrida
Foi minha primeira São Silvestre e eu não sabia de fato o que esperar. Primeiro, achava que teria muita dificuldade na mítica subida da Brigadeiro. Depois, tranqüilizada por meu treinador em relação a esse item, voltei atenção para algo que ele considerava mais penoso – o percurso pelas ruas do Centro da cidade. Ruas estreitas, abafadas, com calor forte, um suplício. Atentei para o que os amigos veteranos Tales Torraga e Luiz Dias falaram, para poupar no início, guardar energias para o final. E nunca olhar para cima na Brigadeiro, para não desanimar. E também para a dose certa de hidratação: pegar um copinho de água em todos os postos, mas não beber em demasia. Molhar a boca, jogar água na nuca e nos pulsos, molhar o corpo se muito quente. Escolhi a bermuda que não tinha elástico frouxo nem que apertasse demais, certifiquei-me quanto aos cadarços bem atados, fui para a Paulista sem lenço e sem documento, para não me preocupar em segurar nada nem em deixar o que quer que fosse no guarda-volumes. 15h15, dada a largada.
Habituada a correr provas menos tradicionais, mas já atraentes para atletas amadores, me espantei com uma característica inesperada da São Silvestre. Não me deparei com aquele bolo de gente que costuma atrapalhar o ritmo de corrida nos primeiros quilômetros. A prova feminina da São Silvestre é consideravelmente menos cheia de atletas que, por exemplo, as provas da Corpore. Outro detalhe me chamou a atenção ainda na Paulista, repleta de espectadores nas laterais da avenida. Palmas, tantas e tão entusiasmadas, que cheguei a procurar no meu entorno para ver se havia “alguém conhecido”. Demorei a perceber que as palmas eram para nós mesmas, as tais “atletas amadoras que fazem a festa na Paulista, neste último dia do ano, mostrando sua disposição e blá-blá-blá”, na fala do locutor televisivo. Deve ser a mesma sensação de quem desfila pela primeira vez em uma escola de samba. O que essa gente está aplaudindo? Você, lesada!
Tudo bem na Paulista, tudo melhor da Consolação, desce o morro. Com a orientação de segurar o ritmo no começo, não desembestei na ladeira. Na boa, na manha, completei os dois primeiro quilômetros em dez minutos. Beleza. Uma média alta na comparação com os treinos, mas uma boa perspectiva. Desde o início, não me fixei em fazer necessariamente um bom tempo. Queria mesmo era terminar bem, e correndo o tempo todo, os 15 km.
Na avenida Ipiranga, o céu já estava negro. Sempre que corro naquele pedaço, como na prova do Centro Histórico, me vem à mente a óbvia “Sampa”, porque logo a seguir se entra na São João. Fiquei com a música de Caetano na cabeça por um bom tempo. Até então, era “Gracias a la vida” tocando na mente. “Gracias a la vida que me ha dado tanto/ Me ha dado la risa y me ha dado el llanto/ Así yo distingo dicha de quebranto/ los dos materiales que forman mi canto,/ y el canto de ustedes que es el mismo canto/ y el canto de todos, que es mi propio canto”.
Na São João, o primeiro posto de água. Peguei um copinho. Molha o bico, molha o corpo, joga o copinho de lado. E sobe a alça de acesso do Minhocão. Boa subida, a mais íngreme da prova, mas curtíssima. Em cima do elevado, as manifestações da rua partiam somente dos prédios residenciais. Prédios que já foram bacanas e hoje, bem decadentes, abrigam famílias numerosas e, em grande parte, bem animadas. Estímulos o tempo todo, e uma bandeira do Corinthians em uma das janelas. Ao aceno dos moradores, gritei “Viva o Timão!” e arranquei aplausos ainda mais entusiasmados. No fim do Minhocão, sem prédios ao redor, um silêncio solitário, quase triste. E as nuvens de um negrume renitente. O dia ficou noite. Quando virei no Largo Padre Péricles, ela chegou. Grossa e quente, uma chuva-benção. Veio em boa hora, mas logo lembrei de um detalhe que sempre me preocupa em pista molhada: as manchas de óleo que fazem escorregar. Atenção na passada, vamos em direção à Barra Funda.
Metade da prova, e a chuva só apertava. No avenida Norma Pieruccini Gianotti, uma tempestade. Os pingos grossos e quentes deram lugar a sopapos aquáticos que chegavam a doer nos braços e no peito. O tênis começou a pesar como seu eu carregasse duas caneleiras de dois quilos. E o vento era contra. Mas, como sou do contra também, segui. Os óculos de sol, que mantive apesar da ausência de tanta luz, começaram a embaçar. Aí veio a “minha” subida da Brigadeiro.
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O imponderável
No viaduto que liga as avenidas Rudge e Rio Branco, segurando os óculos, notei que algo entrou no meu olho direito. Pisquei freneticamente para ver se saía. Não saiu. Cocei o olho, nada. Subi e desci o elevado com o olho direito fechado. Incomodava, raspava e ardia. Completamente encharcada, puxei a camiseta e esfreguei o tecido no olho. Melhorou. Ainda incomodava, mas pelo menos já conseguia mantê-lo aberto. Um retão me aguardava e lá fui pela Rio Branco inteira, passando pela Praça Princesa Isabel, aquela que tem o Duque de Caxias.
No final da longa reta, uma lanchonete com a televisão em altíssimo volume registrava a premiação das vencedoras. Ouvi o Hino Nacional Brasileiro e comentei com as outras atletas ao lado: “Uma brasileira ganhou!”. Braços para o alto, vivas ao Brasil. Elas já estavam no pódio e eu ainda tinha três quilômetros pela frente. E a Brigadeiro.
Estranhamente, a diferença entre as profissionais e eu não me desestimulou. Pensei que estava no quinto final da prova e que ainda estava muito bem, sem dor, com coração e pulmão sobrando e então aumentei o ritmo. O trecho final, no Centro, não foi penoso como me sugeriu o técnico. Pudera, não tinha nada do abafamento esperado com tanta chuva, que ainda caía, impiedosa. Foi, na verdade, bem agradável passar em frente ao Teatro Municipal, percorrer o Viaduto do Chá e me deparar com o Hotel Othon, onde meus pais passaram sua noite de núpcias, lugar que sempre me enternece. Uma boa subidinha na Líbero Badaró, em direção ao Largo São Francisco, e uma descida providencial para encarar a tinhosa, a inominável, a danada. “Ai, meu Deus, chegamos na Brigadeiro...”. A colega ao lado, altona pra burro, soltou a frase com um fio de voz incompatível com seu talhe gigantesco. “Quem é a Brigadeiro perto de você, mulher, vambora!”, eu disse e fui.
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Megera domada
Tendo conferido a altimetria da prova, sabia que, naqueles dois quilômetros finais, subiríamos quase tudo o que tínhamos descido antes. Mas eu também tinha visto que o trecho inicial era plano. Com o gás à toda, dei um bom sprint nos primeiros quatrocentos metros, até notar a subida se acentuando. Daí pra frente, baixei a cabeça, cadenciei o passo e fui subindo. Dava duzentas passadas, cerca de duzentos e poucos metros, calculados nos treinos de esteira, e uma olhadinha para frente. A multidão era significativa no ladeirão, quase todos abrigados da chuva em bares e lanchonetes. Um sujeito gordalhão gritou: “Podem parar, vocês já perderam mesmo!”. Pra quê?! A mulherada se enfureceu. Algumas xingaram. Só respondi: “Já ganhamos, já ganhamos!” Palmas: êêêêê!!! O povo me adora!!!
Quando cruzei a Treze de Maio, a placa dos 14 km. Puta que pariu! (desculpe, escapou) Seriam trezentos metros no planalto na Paulista, o que significava que tínhamos só mais 700 metros de subida. Menos de duas voltas na pista de atletismo do clube. Menos de duas! Apertei o ritmo novamente e fui reconhecendo muito do meu “quintal”. Como meu escritório e academia ficam na região, correr ali era como estar em casa. Na véspera, fui à minha loja preferida de roupas, na esquina da Brigadeiro com a São Carlos do Pinhal e disse às meninas: “Amanhã, vou estar aqui de novo e, quando enxergar a fachada da loja, vou estar muito feliz”. Ao alcançar a tal esquina, eu já tinha “aplainado” a Brigadeiro. Ali, já não tinha subida. Mais uns quatrocentos metros e pronto.
Virar a esquina e avistar a Paulista, embaçada com tanta chuva, foi uma das visões mais reconfortantes que tive na vida. Era um chegar em casa depois de um dia exaustivo de trabalho. Era encontrar a cama pronta para o sono, era sopinha quente em noite de inverno, era chuveiro morno, abraço de alguém querido que estava distante, colo de mãe.
O relógio oficial marcava 1 hora e 24 minutos cravados. O meu cronômetro eu zerei com 1 hora, 22 minutos e 53 segundos. Bem acima da média de treinos, um pouco acima da média de 5 minutos por quilômetro, mas não me aborreci. A classificação final me deixou muito satisfeita. Terminei em 360º lugar na classificação geral, 61º na minha faixa etária. Nessas horas, é difícil escapar ao chavão karetê kid de que sua conquista vale o esforço, de que é preciso acreditar em si mesmo, de que a superação é uma mistura de disciplina e auto-confiança.
Feliz, muito feliz, realizei um objetivo antigo. O riso do meu irmão hoje tem forma. Virou uma medalha dourada com um atleta estilizado e grafismos vermelho e laranja. Tem nome também – 82ª São Silvestre.
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A bravura dos grandes navegantes
No dia seguinte à empreitada, enquanto escrevo este relato, lembrando de cada detalhe, nem tudo me parece real. Na tarde deste dia 1º de janeiro de 2007, passeamos de carro pela cidade e fiz questão de percorrer alguns trechos do percurso. Andar na Rio Branco de ponta a ponta me fez incrédula. Corri mesmo tudo isso?
Correr a São Silvestre pela primeira vez reeditou em mim uma sensação que só tinha tido uma vez, após o parto do meu filho. A percepção de ter vivido algo grandioso e único, com uma necessidade premente de registrar o maior número possível de impressões, com medo de perdê-las nos desvãos da memória, retendo-as como se para vivenciá-las novamente. Ou, como lembro de ter escrito ao meu médico nos dias seguintes ao parto, como se tivesse vivido o último dia de aulas do último ano do curso: aquela certeza de que podem vir ocasiões igualmente importantes e marcantes, mas que nenhuma será como aquela. De forma bastante pretensiosa, acho que era assim que os desbravadores se sentiam, quando se lançavam ao mar e chegavam a algum lugar nunca visitado antes. De maneira ainda mais cabotina, chego a pensar que meu assombro ainda é maior, posto que nem sempre os navegantes tinham consciência de suas próprias façanhas.
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Gracias a usted!
Um registro final, na forma de agradecimento ao meu treinador, Zé Eduardo Pompeo, da Equipe Conexão. As planilhas enviadas quinzenalmente pelo Zé me prepararam para a prova, mas um detalhe foi fundamental nesta etapa. Certa vez, durante um treino, ele mandou que eu parasse a esteira e me mostrou como eu pisava errado. Notou que eu, bem mais leve que ele, fazia mais barulho ao “aterrissar”. Ensinou o jeito certo de dar a passada. De um dia para o outro, nunca mais tive bolhas nos pés. Minhas dores “de dia seguinte” também diminuíram drasticamente e meu tempo melhorou. Obrigada também ao professor Alexandre Cepeda, da Musculação da Runner. Junto com o Zé, ele venceu minha resistência inicial. Os dois traçaram um plano pelo qual eu dedicava dois dias da semana apenas à musculação, sem corrida. Eu não me conformava com a idéia de sair “seca” da sala, sem o suor típico dos treinos aeróbicos. Pois eles me dobraram e eu logo notei a melhora nos resultados. Por fim, mas não menos importante, um agradecimento a três pessoas: meu amigo Tales, que na semana anterior da prova me estimulou muito via MSN Messenger, e meus queridos “meninos” lá de casa, pelo apoio incondicional.
E para o pessoal do blog, nada? Claro que também agradeço por todas as manifestações de apoio, sugestões de frase e desejos de boa sorte. E espero incentivar pelo menos mais alguém a entrar para o time dos corredores de rua desta cidade e de qualquer parte do planeta. Corre, gente, corre!
Sunday, December 31, 2006
Feliz 2007!
Amigos deste despretensioso blog,
Aproveito este último dia do ano para agradecer pela companhia ao longo deste 2006. Como a estréia do blog foi no início de 2006, tivemos praticamente um ano inteiro de convivência. É puro prazer e diletantismo escrever e debater neste blog, para todos aqui, o que me leva a concluir que há mais gente como eu, interessada em troca de experiências e conversas sem vínculo profissional ou caráter financeiro de qualquer natureza. E isso é muito alentador para mim.
Na terça, dia 2, volto com o relato da São Silvestre, agradecendo desde já pelo entusiasmo e pelas manifestações de boa sorte. Prometo contar tudo depois.
Desejo um excelente 2007 para todos e espero continuar com a companhia de vocês.
Por fim, encerro as postagens de 2006 com uma homenagem à aniversariante do dia, Rita Lee, 59 anos hoje.
Aproveito este último dia do ano para agradecer pela companhia ao longo deste 2006. Como a estréia do blog foi no início de 2006, tivemos praticamente um ano inteiro de convivência. É puro prazer e diletantismo escrever e debater neste blog, para todos aqui, o que me leva a concluir que há mais gente como eu, interessada em troca de experiências e conversas sem vínculo profissional ou caráter financeiro de qualquer natureza. E isso é muito alentador para mim.
Na terça, dia 2, volto com o relato da São Silvestre, agradecendo desde já pelo entusiasmo e pelas manifestações de boa sorte. Prometo contar tudo depois.
Desejo um excelente 2007 para todos e espero continuar com a companhia de vocês.
Por fim, encerro as postagens de 2006 com uma homenagem à aniversariante do dia, Rita Lee, 59 anos hoje.
Thursday, December 28, 2006
A segunda morte do LP
Era começo de 1985 e eu estava ouvindo o “Programa do Zuza”, pela rádio Jovem Pan AM. O crítico musical, pesquisador, jornalista e escritor Zuza Homem de Mello é uma figura fundamental na minha vida e um dia ainda volto a esse tema. Às quartas-feiras, Zuza transformava o programa em um “Dia do Ouvinte”, respondendo cartas e tocando músicas pedidas pela audiência. Naquele dia, Zuza comentou uma carta que abordava o tema do CD. Eu nunca tinha ouvido falar naquilo e me espantei com o prognóstico do apresentador, que estimava em mais cinco anos o período necessário para o CD superar o formato LP.
Na mosca. No começo da década de 90, o CD já dominava amplamente o mercado. Recebi aquela previsão do meu mestre Zuza com certa apreensão: eu já tinha uma considerável coleção de discos de vinil e não pensava em me apartar dela. Com o toque visionário dos aquarianos, ou com a inquietude típica dos ansiosos, localizei meu temor em algo aparentemente fútil – haverá toca-discos de vinil no futuro? Manterei meus LPs para sempre, mas terei onde ouvi-los?
Esta primeira morte do LP representou basicamente uma mudança de formato e de equipamentos necessários para escutar música. Trouxe vantagens, claro, como a menor fragilidade dos CDs em relação aos velhos bolachões, fora a redução de espaço necessário para armazená-los. Mas o cerne da questão – o ato de criação artística – permaneceu inalterado. Antes, o artista reunia repertório para gravar um LP e continuou fazendo o mesmo para gravar um CD.
O produto disco – LP ou CD – nasceu de uma sacada mercadológica, uma artimanha da indústria do disco para otimizar seus recursos. Antes do formato LP, o artista criava suas músicas sob o signo da inspiração, eventualmente respeitando a sazonalidade – músicas para o Carnaval, para as Festas Juninas, para o Natal – ou atendendo a pedidos de intérpretes. Os compositores de outrora não se preocupavam em criar um lote de 12, 13, 14 músicas para formar um LP. Não existia LP.
As gravadoras perceberam a vantagem de encapsular o trabalho do artista em um produto maior que os antigos compactos. É fácil entender: antes, cada vez que Carmen Miranda ou Orlando Silva entrava em um estúdio para gravar duas músicas, prensadas a toque de caixa e distribuídas em seguida, mobilizava-se uma estrutura relativamente grande, que incluía conjunto, orquestra, técnicos etc. Ao criar o formato LP, as gravadoras continuavam dispondo da mesma estrutura, mas para lançar no mercado, de uma só vez, um número bem maior de composições. E, claro, podiam cobrar bem mais por um produto com uma dúzia de músicas do que o faziam por um single.
As gerações de artistas que se sucederam, após o advento do LP, já chegaram ao mercado sob a concepção desse formato. O que não quer dizer que todos, sempre, tiveram facilidade em reunir um número mínimo de composições para formar um LP. Afinal, o processo de criação não é produção industrial, depende de inspiração e transpiração. Diante da exigência contratual de lançar um disco novo a cada ano, muitos bons artistas lançaram mão de regravar composições do passado ou de outros compositores, ou simplesmente de encaixar “qualquer coisa” para completar lado A e lado B de seus bolachões.
Essa dinâmica mantém-se praticamente a mesma com o surgimento do CD. Não tem mais lado A ou lado B, mas continua a necessidade de se preencherem 12, 13, 14 músicas no disquinho. A grande ruptura desse modus operandi parece estar sendo estabelecida pelo ambiente musical virtual. O ato de baixar músicas da internet, trocar arquivos de mp3, “queimar” CDs apenas com as músicas preferidas reverte de uma vez por todas o formato encapsulado que as gravadoras venderam por mais de meio século. A música, criação única e com fim em si mesmo, ganha a liberdade de ser ela mesma, não a faixa 2 do disco tal. É, de certa forma, uma retomada do processo de divulgação pré-Segunda Guerra.
É, sem dúvida, uma terrível fonte de dor de cabeça para as gravadoras, que em breve já não terão na pirataria seu alvo preferencial de vilania. A internet e outros veículos, como o celular, estão institucionalizando o livre acesso à música e as gravadoras talvez estejam percebendo que perderam a grande oportunidade de mudar sua forma de ganhar dinheiro, quando esnobaram o ambiente virtual há alguns anos. Esse movimento paralelo talvez explique alguns fenômenos aparentemente contraditórios, como o que está acontecendo no Brasil atualmente, com registro de queda na venda de CDs, paralelo ao aumento da arrecadação de direitos autorais. Será que a indústria do disco perdeu mesmo o bonde da história?
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Em que pese o LP ter sido um produto vantajoso para as gravadoras, não se pode tirar o mérito de artistas que criaram sob esse formato. A música popular está repleta de intérpretes e compositores que souberam fazer de cada LP uma obra com conceito, personalidade, começo, meio e fim. The Beatles, por exemplo. Especialmente a partir de Rubber Soul, os LPs do grupo passaram a ser fortemente conceituais, concebidos a partir de uma temática ou de uma sonoridade muito próprias. Rubber Soul é diferente de Revolver, que é completamente diferente de Sgt. Peppers, que é absolutamente diferente do álbum branco, que não tem nada a ver com Abbey Road etc.
No Brasil, Elis Regina – especialmente em sua fase de parceria com César Camargo Mariano – produziu sob esse mesmo foco. Os dois concebiam cada LP de uma forma semelhante, no processo de criação. Partiam de um ou dois compositores (ou dupla de compositores) e tinham ali a espinha dorsal do disco. Completavam o repertório com obras que falavam a mesma língua dessa base, ou que a complementassem de algum modo. Gravavam todo o LP com a mesma formação de músicos, seguindo arranjos que se harmonizavam entre si, priorizando a mesma sonoridade. Ao fim, nascia um LP literalmente redondo, com uma cara própria, diferente do anterior e do seguinte. A concepção artística de Elis e César Mariano era completa. Disco e espetáculo eram praticamente uma única obra. “Falso Brilhante”, “Transversal do Tempo” e “Saudade do Brasil” são LPs nascidos a partir de shows. Em outras ocasiões, o LP produzido rendeu em seguida o espetáculo.
Ouvir, por exemplo, “Saudade do Brasil”, vinte e seis anos após sua criação, é absorver uma obra completa. Contexto: o Brasil da abertura, a esperança de dias melhores, o sonho do fim da ditadura militar. O show (e o disco) abre com um pout-pourri de sucessos de Elis nos anos 60 – tempos em que ela era representante de primeira linha de uma música engajada, politizada, pós-Bossa Nova. Não por acaso, essa introdução termina com os sugestivos versos de “Terra de Ninguém”: “(...) mas, o dia vai chegar, que o mundo vai saber, não se vive sem se dar/ quem trabalha é que tem direito de viver, pois a terra é de ninguém.” Dada a senha para se falar abertamente do país.
Todas as músicas do disco falam de um Brasil tenso, pronto e ansioso para viver sua liberdade. A sugestão nada velada de reforma agrária da introdução vai se espalhando pelas demais letras. Da aparentemente inofensiva “Agora tá” (Tunai e Sergio Natureza): “Já que ta aí, pela metade mas tá, melhor cuidar, pra peteca não cair(...)”. Da realista “O primeiro jornal” (Sueli Costa e Abel Silva): “(...) para que saias com alguma alegria bem normal/ que dure pelo menos até você comprar e ler/ o primeiro jornal.” Da debochada “Alô, alô marciano” (Rita Lee e Roberto de Carvalho): “A crise tá virando zona, Cada um por si, todo mundo na lona (...), A coisa tá ficando ruça, Muita patrulha, muita bagunça, o muro começou a pixar(...)”. Da melancólica “Maria Maria” (Milton Nascimento e Fernando Brant): “(...) uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas agüenta.” Da auto-confessional “Aos nossos filhos” (Ivan Lins e Vitor Martins): “(...) perdoem por tantos perigos, perdoem a falta de amigos, os dias eram assim (...)”. Da seqüência violenta de “Onze fitas” (Fátima Guedes) e “Menino” (Milton e Brant, novamente). A primeira diz: “Por engano, vingança ou cortesia/ Tava lá morto e posto um desregrado(...)”. A segunda arremata: “Quem cala sobre teu corpo/ Consente na tua morte(...)”.
O disco/show vai se encaminhando para um final de esperança, criando um Brasil idílico e que acredita no futuro. Surgem as paisagens tropicais e hedonistas de “Marambaia”, carimba-se o passaporte de volta com “Sabiá” (Tom e Chico), reafirma-se o otimismo algo culpado de Gonzaguinha em “Mundo Novo, Vida Nova” e se reforça com “O que foi feito deverá”, com a inequívoca esperança renovada dos versos: “Falo por acreditar que é cobrando o que fomos/ Que nós iremos crescer/ Outros outubros virão/ Outras manhãs plenas de sol e de luz.” Termina com outra de Gonzaguinha, a francamente otimista "Redescobrir": "(...) entender que tudo é nosso, sempre esteve em nós, somos a semente, ato, mente e voz/ não tenha medo, meu menino povo, tudo principia na própria pessoa, vai como a criança que não teme o tempo(...)".
Lançado originalmente em dois LPs, “Saudade do Brasil” foi lançado em CD duplo reunindo toda a íntegra do show. Nos dias de hoje, é certamente possível baixar só algumas dessas músicas, pinçando-as ao gosto pessoal. O que não é ruim, viva a liberdade. Mas que esfacela uma obra íntegra, uma história, um conceito. Felizmente, a criação artística não se engessa nos formatos e, neste instante, os criadores do século 21 já estão aprendendo a lidar com as muitas possibilidades do ambiente virtual.
Monday, December 18, 2006
Mutante
Conheci Dinho Leme há cerca de quinze anos, quando eu trabalhava na editoria de Esporte da Folha de S. Paulo e ele era assessor de imprensa de alguns pilotos, entre eles, Rubens Barrichello. Assim que recebi os primeiros releases assinados por ele, perguntei a meu então editor, Flavio Gomes, se aquele Dinho Leme por acaso era o baterista dos Mutantes. “Ele mesmo, é irmão do Reginaldo.” Então conheci o Dinho pessoalmente, passei a cruzar com ele nas corridas, viramos chapas. Dinho trabalhava com Fátima Paiva, outra habitué dos autódromos. Uma noite, saímos para bater papo, eu, Luiz Alberto Pandini, então repórter do Jornal da Tarde, Dinho e Fátima, e só então, alguns meses depois de conhecê-lo, tive coragem de levar um vinil dos Mutantes para que ele autografasse. Era estranho fazer isso, não exatamente por constrangimento, mas porque eu não conseguia ver o Dinho como um Mutante, mas como um assessor de imprensa amigo, companheiro de pistas e salas de imprensa. “Mutantes e seus Cometas no País dos Baurets” ganhou a assinatura do baterista em uma das mesas do Ritz, barzinho bacana dos Jardins, em São Paulo. Ta lá na contracapa: “vinte anos depois, que barato”.
Trinta e cinco anos depois, um barato em meio. Dinho Leme está de volta aos Mutantes. Ou melhor, os Mutantes estão de volta. Em um dos primeiros posts deste blog, saudei a volta dos Mutantes às prateleiras, com seus CDs originais remasterizados. Poucos meses depois, os “velhos” resolveram se juntar de verdade, reeditando a formação quase original, para um show em Londres. Dinho acumulou as funções de assessor de imprensa com as de artista pé na estrada. Depois da Inglaterra, os Estados Unidos. E eu na fila para vê-lo pessoalmente, depois de quase dois anos de nosso último encontro. E finalmente aconteceu na última quarta-feira, em um almoço de quatro horas e exatas quatro garrafas de vinho. Reeditamos o encontro do Ritz, desta vez no Café Journal e acrescido da companhia de outro querido amigo, o também jornalista Luiz Fernando Ramos, o Ico, que como eu não tem idade para ter visto os Mutantes originais, mas com a sorte de ter presenciado a volta histórica do grupo em Londres. No dia seguinte, comentei com o Ico como essa conversa com o Dinho Leme baterista dos Mutantes foi diferente de todas as que tive com ele antes. Ico registrou o mesmo estranhamento no show do Barbican. Não parecia o Dinho que a gente conhece, era outro. Em suma, um mutante.
Algumas passagens deste almoço recente estão relatadas a seguir. A conversa não foi gravada, mas Dinho entendeu meu interesse de amiga jornalista e me brindou com histórias e reminiscências. Foi um daqueles encontros inesquecíveis e justamente por misturar tantos fatos e emoções, não relato com o viés frio de repórter que só observa. Sente-se, encha o copo e deixe o som rolar.
///
Não pergunte datas para Dinho Leme. É mais fácil que um fã saiba precisar a ordem dos discos gravados pelos Mutantes, os anos das apresentações nos festivais do que esperar do baterista do grupo qualquer exatidão do gênero. Isso costuma acontecer também com os atletas e tem uma explicação lógica: para o fã, aquela apresentação, aquele jogo xis é um marco histórico; para o artista, ou o atleta, é como um dia a mais de trabalho. Você não se lembra de todos os seus dias no escritório, lembra? Então, não se meta a achar que o artista tem de lembrar.
Mas ele é capaz de lembrar a gênese de seu interesse por música. O pai. Tocava uma gaita complicadíssima em Rancharia, interior de São Paulo, onde Dinho, nascido em Campo Grande, cresceu. Menino, Dinho ouvia o pai tirar standards consagrados pela orquestra de Glen Miller em sua gaita. E ouvia discos do mesmo estilo em casa. A influência do pai se manifestou no primeiro instrumento escolhido, um de sopro – trompete. “Eu comia goiaba verde para ajudar a calejar o lábio.” Os primeiros discos comprados por conta própria eram sucessos da parada. Um, em especial, foi mais marcante – Earl Grant.
A afinidade com a bateria começou, veja só, com a Bossa Nova. Bateria tocada com escovinha, logo despontando os primeiros ídolos – Rubinho, do Zimbo Trio, e o carioca Edison Machado. Um salto no tempo. Final dos anos 60, começo dos 70, sei lá, Dinho não se liga em datas, lembra? A Rede Globo convida bateristas de várias idades e estilos diferentes para um especial.
O baterista dos Mutantes chega para a gravação e dá de cara com Edison Machado. A emoção de tocar com o ídolo logo perdeu terreno para a preocupação. Edison não estava bem, parecia alterado, não tocou legal. Acabado o programa, cada um para um lado, e Edison lá, meio caído, meio esquecido, bem mal. Dinho colocou-o no carro, cruzou o Rio de Janeiro de algum ponto longínquo da Zona Oeste, local da gravação, até a casa do velho mestre, na Zona Sul. Literalmente, carregou-o até chegar ao apartamento, deixou-o deitado e foi embora, ainda duvidando que tinha levado nos ombros Edison Machado, seu ídolo.
Outro salto no tempo. Dinho e o pai, litoral norte de São Paulo. Um mercadinho para abastecer a casa da praia. O vendeiro vai embrulhando mercadorias com jornais velhos e Dinho se vê diante de uma notícia bruta, ali no balcão. Morre Edison Machado. “Voltei com meu pai para Paúba, ele ia falando no carro, não consegui prestar atenção. Só lembrava no Edison Machado morto, e do dia que carreguei o cara até sua casa.”
Mas então, peraí, como foi que um admirador de Bossa Nova se tornou baterista do grupo de rock mais famoso da história do Brasil? Ah, mas aí vieram os bailes, e os Beatles. Antes de vir para São Paulo, Dinho começou a tocar em bailes no interior, já devidamente acomodado no fundo do palco, porque a história do trompete, nem com muita goiaba verde, foi para frente. E em baile, a gente sabe, toca-se de tudo. Quando chegou à capital, Dinho já tinha larga experiência em um repertório variado, por isso acabou escalado para acompanhar Ronnie Von, o “príncipe” daqueles anos 60 da TV Record. A ponte foi direta e curta: Ronnie foi quem “inventou” o nome Mutantes, inspirado em um livro de ficção científica que estava lendo na época e que ele achou bem interessante para o trio formado pelos dois irmãos Batista e por Rita Lee. Dinho não foi imediatamente incorporado ao grupo, tanto que não tocou na histórica apresentação dos Mutantes junto com Gilberto Gil, no III Festival da Record, com “Domingo no Parque”. Logo depois, no entanto, virou um mutante.
A volta dos Mutantes, apesar de festejada pelo público e badalada pela mídia, tem criado situações complicadas para Dinho, Arnaldo e Sergio. Porque falar da volta dos Mutantes passa forçosamente pelo fim dos Mutantes, pela saída de Rita Lee do grupo, pelas feridas abertas por tudo isso. Passa pelas recentes declarações desagradáveis de Rita Lee em relação ao revival, e remonta às tentativas anteriores, que não deram certo. Uma delas, inclusive, capitaneada pela própria Rita, que um dia ligou para Dinho, ficou cinqüenta minutos no telefone falando do projeto, que não rolou.
Dinho não se recusa a falar do tema, mas diz que, mais de trinta anos depois, de fato não sabe bem o que aconteceu. Rita passou anos dizendo que tinha sido expulsa dos Mutantes. Os Mutantes sempre negaram. Até que um dia, no presente vivíssimo dessa volta, Arnaldo disse que falou mesmo para ela sair, pegando Dinho e Sergio no contrapé durante uma das muitas entrevistas concedidas na época do lançamento do DVD. “Acho que foi briga de marido e mulher, apimentada por executivo de gravadora que já queria lançar a Rita como artista solo, e porque o grupo, uma hora, ia mesmo acabar.”
Acabou e acabou mesmo para Dinho. Ele ainda tocou em algumas produções, começou a virar produtor de eventos, lançou um jornal sobre automobilismo, tornou-se assessor de imprensa e nunca, nunca, nunca mais tocou bateria. A filha Joana, de 25 anos, nunca tinha visto Dinho tocar. Na trepidante volta dos Mutantes, a Câmara dos Vereadores de São Paulo, por iniciativa do vereador Carlos Giannazi, do Psol, homenageou Arnaldo, Sergio e Dinho pela relevância artística e histórica do grupo. O público foi tanto que uma sala não bastou para acomodar a multidão de seguidores. Fãs de outrora reverenciavam o trio, devidamente engravatado para a ocasião solene, enquanto uma concentração expressiva de jovens se aglomerava para conhecer os gurus ao vivo.
Sergio, o maior porta-voz do grupo e, no fundo, o curador da obra dos Mutantes, diz e repete que foi a concordância de Dinho Leme a responsável pela volta do grupo. Nas primeiras conversas, ainda reticente, Dinho alegava o longo afastamento da música como razão para continuar distante. Mas Sergio insistiu e chamou Dinho para tocar em sua casa, na Granja Viana (grande São Paulo). Na primeira vez, Dinho foi, achou legal, mas não quis tocar. “Por quê?” Sei lá, nada a ver. Voltou lá algumas vezes e resolveu encarar. “Tudo bem, eu topo, mas não sei até onde vou, vamos ver.” Sergio literalmente diz: “Quando o Dinho topou, eu senti que os Mutantes tinham voltado.”
Dinho não sabe explicar porque desta vez deu certo, e não das outras. “Mágica, agora tinha que ser, algo assim.” O assessor de imprensa voltou a praticar bateria. Com fones de ouvido, gasta horas estudando os arranjos, reinventando o fraseado da bateria, reconstituindo algumas coisas, criando outras. A bateria está no escritório, o mesmo de onde atende seus clientes pilotos, faz a assessoria de imprensa da Fórmula Truck e onde funciona a redação do anuário AutoMotor, que ele edita com o irmão Reginaldo Leme.
Joana nunca tinha visto o pai tocar, viu no mesmo dia da homenagem na Câmara dos Vereadores. Seu filho Tiê, de dois anos, gostou do brinquedo novo do avô. Subiu no banquinho e desceu o braço, com um estilo heavy metal que ninguém sabe de onde veio. Genes adormecidos, talvez.
Sunday, December 10, 2006
A lata
Eu li a notícia hoje, cara. Um navio cargueiro foi interceptado pela Marinha Mercante do Rio. Estava cheio de bagulho no barco, velho, da melhor qualidade. Parece que era da Holanda. Dá pra acreditar? O mais incrível você ainda não sabe. Jogaram a mercadoria toda no mar, cara, tudo numas latas enormes. Pensou o que vai acontecer com isso? Já, eu já pensei, bicho. Se uma dessas latas vem parar aqui na praia...
Elvis se levantou, sacudiu o corpo inteiro, sacudiu o pêlo, abanou o rabo. Quando o cara começava a viajar desse jeito, falando com ele como se fosse gente, era sinal de que ia cair no sono. A praia de Paúba era quase selvagem nessa época, dava mesmo pra dormir legal. Elvis ficou por ali, meio de guarda, o cara embarcou. Teve o sonho recorrente de que voltara a tocar. Era engraçado, porque ele nunca pensava nisso acordado, fazia anos não via os caras, mas sempre sonhava com a bateria, com solos e tambores e pratos e o sonho terminava sempre igual, quando um dos caras, o irmão mais velho, lhe tomava as baquetas e furava o tambor da batera alugada.
Acordava dando risada. Que louco esse cara, que loucos todos nós. Mas naquele dia não chegou no tambor furado, acordou antes com os latidos do Elvis. O bicho estava quase no mar, latindo para alguma coisa que vinha boiando. Sentou, sacudiu a areia e o sono, focou os olhos. A coisa brilhava. Era metal. Um cilindro de metal. Era uma lata. A lata. Uma fé estranha o arrebatou. Não tinha sido à toa a notícia da manhã. Navio, Rio, Paúba, litoral norte. Ela tinha chegado até ele, era ela. Elvis tinha o pêlo molhado, parecia querer alcançá-la para ele. O cara levantou, tirou a camiseta, correu até a arrebentação, nadou em direção à lata. Quando estava a uma braçada da coisa, sentiu o hálito canino muito perto. Elvis roçou-lhe o pêlo e ele agora sim acordou. Um bode infernal, a cabeça pesando chumbo presa à areia. Custou a levantar e a acreditar. Só sonho, então.
Elvis o seguiu no passo lento. A cabeça começava a entrar no eixo de novo, sem perder o foco na lata. Era fim de tarde e a fé ainda o guiava. Foi até os barcos, conversa jogada fora com os pescadores de sempre. A bermuda amarrotada guardava uma nota, presente aos homens do mar. Se encontrarem alguma coisa parecida com o que eu falei... Promessa de ganho em dobro, redobraram a atenção.
Subiu a serra de volta, outra semana de selva cinza à espera das verdes ondas, céu azul e o prateado da lata. Os jornais davam seqüência da história, as latas se perdiam e se achavam em praias cada vez mais improváveis, e ele pensava se uma delas chegaria lá. O mundo da velocidade era seu dia, pilotos, corridas, notícias para a imprensa, mas à noite ele se transmutava, se teletransportava para a orla, deixava de ser urbano, mutante virado em caiçara, pensava no mar. A sexta-feira chegou e ele chegou a acreditar que os olhos de Elvis lhe diziam algo. Não tinha sol, talvez nem descesse. Elvis engoliu um latido triste. Desceu.
Sim, Elvis tinha razão, os homens do mar encontraram. A lata. Era a mais exemplar, pura, eficaz e perfumada porção de nirvana que ele já tinha provado com todos os seus sentidos. Naqueles dias, teve até vontade de ligar para os caras, aquilo valia um revival. Nem tinha como. O mais novo vivia num sítio, o mais velho, parece, estava em Minas, a mina, essa não estava nem aí. Desculpe, babe, essa lata eu vou guardar. Candidamente, acomodou-a numa mala de viagem e lá ela ficou por meses, sendo sorvida aos poucos, iguaria fina e rara.
A velocidade o levou para bem longe de Paúba, mares do norte, céus mediterrâneos. Com ele, um jovem e loiro piloto, acompanhado do pai. E a mala. Vida de assessor de imprensa tem dessas coisas. O menino tinha talento mesmo, um bom patrocinador, fazia sua estréia nas pistas da Europa, depois de uma carreira fulminante de sucessos por aqui. Tinha que ter assessor de imprensa, e lá estava o cara, com a mala que antes abrigara a lata. Na Itália, aeroporto, alfândega, passaporte, visto, bagagem, perguntas de praxe, o menino tinha nome italiano, oriundi, capice? Tudo certo com os papéis, nada de errado com os nomes, só não se entende esse pastor alemão, policial canino farejando sofregamente a bagagem. Não toda a bagagem. A mala, aquela mala. Pai e piloto impacientes. O que há com essa mala? Esvazia a mala, nada de errado com ela. Não há nada de podre na mala. Não há nem nunca houve. Houve uma vez, não podre. Fina iguaria. Uma lata. A lata.
Elvis se levantou, sacudiu o corpo inteiro, sacudiu o pêlo, abanou o rabo. Quando o cara começava a viajar desse jeito, falando com ele como se fosse gente, era sinal de que ia cair no sono. A praia de Paúba era quase selvagem nessa época, dava mesmo pra dormir legal. Elvis ficou por ali, meio de guarda, o cara embarcou. Teve o sonho recorrente de que voltara a tocar. Era engraçado, porque ele nunca pensava nisso acordado, fazia anos não via os caras, mas sempre sonhava com a bateria, com solos e tambores e pratos e o sonho terminava sempre igual, quando um dos caras, o irmão mais velho, lhe tomava as baquetas e furava o tambor da batera alugada.
Acordava dando risada. Que louco esse cara, que loucos todos nós. Mas naquele dia não chegou no tambor furado, acordou antes com os latidos do Elvis. O bicho estava quase no mar, latindo para alguma coisa que vinha boiando. Sentou, sacudiu a areia e o sono, focou os olhos. A coisa brilhava. Era metal. Um cilindro de metal. Era uma lata. A lata. Uma fé estranha o arrebatou. Não tinha sido à toa a notícia da manhã. Navio, Rio, Paúba, litoral norte. Ela tinha chegado até ele, era ela. Elvis tinha o pêlo molhado, parecia querer alcançá-la para ele. O cara levantou, tirou a camiseta, correu até a arrebentação, nadou em direção à lata. Quando estava a uma braçada da coisa, sentiu o hálito canino muito perto. Elvis roçou-lhe o pêlo e ele agora sim acordou. Um bode infernal, a cabeça pesando chumbo presa à areia. Custou a levantar e a acreditar. Só sonho, então.
Elvis o seguiu no passo lento. A cabeça começava a entrar no eixo de novo, sem perder o foco na lata. Era fim de tarde e a fé ainda o guiava. Foi até os barcos, conversa jogada fora com os pescadores de sempre. A bermuda amarrotada guardava uma nota, presente aos homens do mar. Se encontrarem alguma coisa parecida com o que eu falei... Promessa de ganho em dobro, redobraram a atenção.
Subiu a serra de volta, outra semana de selva cinza à espera das verdes ondas, céu azul e o prateado da lata. Os jornais davam seqüência da história, as latas se perdiam e se achavam em praias cada vez mais improváveis, e ele pensava se uma delas chegaria lá. O mundo da velocidade era seu dia, pilotos, corridas, notícias para a imprensa, mas à noite ele se transmutava, se teletransportava para a orla, deixava de ser urbano, mutante virado em caiçara, pensava no mar. A sexta-feira chegou e ele chegou a acreditar que os olhos de Elvis lhe diziam algo. Não tinha sol, talvez nem descesse. Elvis engoliu um latido triste. Desceu.
Sim, Elvis tinha razão, os homens do mar encontraram. A lata. Era a mais exemplar, pura, eficaz e perfumada porção de nirvana que ele já tinha provado com todos os seus sentidos. Naqueles dias, teve até vontade de ligar para os caras, aquilo valia um revival. Nem tinha como. O mais novo vivia num sítio, o mais velho, parece, estava em Minas, a mina, essa não estava nem aí. Desculpe, babe, essa lata eu vou guardar. Candidamente, acomodou-a numa mala de viagem e lá ela ficou por meses, sendo sorvida aos poucos, iguaria fina e rara.
A velocidade o levou para bem longe de Paúba, mares do norte, céus mediterrâneos. Com ele, um jovem e loiro piloto, acompanhado do pai. E a mala. Vida de assessor de imprensa tem dessas coisas. O menino tinha talento mesmo, um bom patrocinador, fazia sua estréia nas pistas da Europa, depois de uma carreira fulminante de sucessos por aqui. Tinha que ter assessor de imprensa, e lá estava o cara, com a mala que antes abrigara a lata. Na Itália, aeroporto, alfândega, passaporte, visto, bagagem, perguntas de praxe, o menino tinha nome italiano, oriundi, capice? Tudo certo com os papéis, nada de errado com os nomes, só não se entende esse pastor alemão, policial canino farejando sofregamente a bagagem. Não toda a bagagem. A mala, aquela mala. Pai e piloto impacientes. O que há com essa mala? Esvazia a mala, nada de errado com ela. Não há nada de podre na mala. Não há nem nunca houve. Houve uma vez, não podre. Fina iguaria. Uma lata. A lata.
Monday, December 04, 2006
Com que roupa?
Amigos, a hora se aproxima. No dia 31 de dezembro, vou correr minha primeira São Silvestre. Já corri dezenas de provas, mas nunca a mais tradicional da minha cidade. Quase sempre, viajava no final do ano. Desta vez, deu certo, estarei na capital paulista na virada do ano e já estou inscrita. É uma prova difícil, cheia de gente, um calor do Saara, um suplício no centro abafado da cidade, um terror na subida da Brigadeiro, mas vou. Muita gente que faz a São Silvestre não se anima a fazer a segunda. É tipo "once in a lifetime", aquelas coisas que a gente faz uma vez na vida.
Por tudo o que essa prova representa, quero corrê-la usando uma camiseta com alguma inscrição significativa. Estou abrindo a caixa de comentários para sugestões. Quem se habilita?
Em tempo: sem palavrões e termos ofensivos, certo?
Por tudo o que essa prova representa, quero corrê-la usando uma camiseta com alguma inscrição significativa. Estou abrindo a caixa de comentários para sugestões. Quem se habilita?
Em tempo: sem palavrões e termos ofensivos, certo?
Tuesday, November 28, 2006
Ainda sobre a Segundona, por quem sabe
O post anterior, acerca de um fato verídico, ensejou boa discussão sobre as divisões "de acesso" do futebol. Meu citado amigo, o jornalista Celso Unzelte, atendeu ao meu apelo e veio em nosso socorro, dando uma aula sobre o tema. Aproveitem, é de graça. Eis o texto que o Celso me mandou via e-mail:
"Realmente, é tudo uma questão de nomenclatura, ou, antes disso, de eufemismo, mesmo. Daí eu sempre escrever Série B (em caixa alta e baixa, porque é o nome oficial) e segunda divisão (caixa baixa, porque não é nome oficial, mas é a ordenação
das divisões, assim como a Série A é a primeira divisão e a Série C, a
terceira divisão).
Repare que não estamos "nomeando" essas divisões, apenas contando: primeira, segunda, terceira... Sejam quais forem os nomes de plantão que ganhem ao longo do tempo. É mais ou menos como usar os termos "alvinegro" ou "alviverde" em caixa baixa - não é apelido, mas simplesmente sinônimo de "time preto e branco" ou "time verde e branco" (nesses casos, não iria em caixa alta e baixa, certo?). Tudo bem que alguns adjetivos referentes às cores acabaram virando apelidos de fato, como Tricolor ou Colorado, mas isso já é outra história...
Voltando às nomenclaturas oficiais da segundona: como o próprio futebol brasileiro, essa história tem origem nos estaduais. Em São Paulo, em 1948, surgiu o primeiro Campeonato da Segunda Divisão de Acesso, que depois virou Divisão Intermediária (por estar entre a primeira e a terceira). Houve tempo, até, em que a primeira divisão paulista chamava-se Divisão Especial, a segunda se chamava Divisão Intermediária e a terceira divisão se chamava... Primeira (!) Divisão. Hoje, em São Paulo, tem Série A1 (primeira), Série A2 (segunda), Série A3 (terceira) e Segunda Divisão (que, como você pode ver, na realidade é a quarta, apesar de ser chamada de segunda).
No Brasileiro, a primeira vez que teve segunda divisão foi também no primeiro ano em que teve a primeira, em 1971 (chamava-se primeira divisão, porque a primeira, de verdade, era Campeonato Nacional). Ganhou o Villa Nova, de Minas, que não levou, porque não havia nem acesso nem descenso. O mesmo aconteceu no ano seguinte, 1972, com o Sampaio Corrêa, do Maranhão.
De 1973 a 1979 ninguém se preocupou com segunda divisão do Brasileiro. Ela só volta a ser disputa em 1980, com um nome que duraria até 1984: Taça de Prata (porque a Taça de Ouro era a primeira, e a Taça de Bronze, a terceira). E isso dá a maior confusão histórica, porque em seu último ano, 1970, o Robertão, aquele antecessor do Campeonato Brasileiro da primeira divisão, também foi chamado de... Taça de Prata!
Foi essa Taça de Prata, a menos gloriosa, que o Corinthians jogou em 1982, um dos anos em que se permitia o acesso de quatro equipes para a Taça de Ouro no mesmo ano. Os que não se classificavam (portanto, de quinto a oitavo) continuavam na disputa do título da segundona, que valia vaga na primeira do Brasileiro, mas só do ano seguinte.
A segunda divisão também foi chamada de Módulo Amarelo (em 1986 e em 1987), Campeonato Brasileiro da Divisão Especial (1988 e 1989), assumidamente de Segunda Divisão (aí sim em caixa alta e baixa, de 1990 a 1994) e finalmente de Série B, como a conhecemos hoje, desde 1995. Espero ter ajudado, apesar de tanta confusão!"
Celso Unzelte é provavelmente o jornalista que mais conhece a história do futebol no Brasil. Temos a honra de fazer parte de "famílias amigas". Celso e a jornalista Patrícia Rodrigues estão entre os habitués lá de casa (e nós da deles!). Celso foi chefe do meu marido, Patrícia foi minha caloura na faculdade. Sempre que nos encontramos, há ocasião para velhas histórias de redação, além de facilitarmos apresentações musicais improváveis de nossas crianças, com repertório que vai de clássicos de Adoniram Barbosa ao hino da Portuguesa Carioca.
Obrigada, fiel companheiro!
"Realmente, é tudo uma questão de nomenclatura, ou, antes disso, de eufemismo, mesmo. Daí eu sempre escrever Série B (em caixa alta e baixa, porque é o nome oficial) e segunda divisão (caixa baixa, porque não é nome oficial, mas é a ordenação
das divisões, assim como a Série A é a primeira divisão e a Série C, a
terceira divisão).
Repare que não estamos "nomeando" essas divisões, apenas contando: primeira, segunda, terceira... Sejam quais forem os nomes de plantão que ganhem ao longo do tempo. É mais ou menos como usar os termos "alvinegro" ou "alviverde" em caixa baixa - não é apelido, mas simplesmente sinônimo de "time preto e branco" ou "time verde e branco" (nesses casos, não iria em caixa alta e baixa, certo?). Tudo bem que alguns adjetivos referentes às cores acabaram virando apelidos de fato, como Tricolor ou Colorado, mas isso já é outra história...
Voltando às nomenclaturas oficiais da segundona: como o próprio futebol brasileiro, essa história tem origem nos estaduais. Em São Paulo, em 1948, surgiu o primeiro Campeonato da Segunda Divisão de Acesso, que depois virou Divisão Intermediária (por estar entre a primeira e a terceira). Houve tempo, até, em que a primeira divisão paulista chamava-se Divisão Especial, a segunda se chamava Divisão Intermediária e a terceira divisão se chamava... Primeira (!) Divisão. Hoje, em São Paulo, tem Série A1 (primeira), Série A2 (segunda), Série A3 (terceira) e Segunda Divisão (que, como você pode ver, na realidade é a quarta, apesar de ser chamada de segunda).
No Brasileiro, a primeira vez que teve segunda divisão foi também no primeiro ano em que teve a primeira, em 1971 (chamava-se primeira divisão, porque a primeira, de verdade, era Campeonato Nacional). Ganhou o Villa Nova, de Minas, que não levou, porque não havia nem acesso nem descenso. O mesmo aconteceu no ano seguinte, 1972, com o Sampaio Corrêa, do Maranhão.
De 1973 a 1979 ninguém se preocupou com segunda divisão do Brasileiro. Ela só volta a ser disputa em 1980, com um nome que duraria até 1984: Taça de Prata (porque a Taça de Ouro era a primeira, e a Taça de Bronze, a terceira). E isso dá a maior confusão histórica, porque em seu último ano, 1970, o Robertão, aquele antecessor do Campeonato Brasileiro da primeira divisão, também foi chamado de... Taça de Prata!
Foi essa Taça de Prata, a menos gloriosa, que o Corinthians jogou em 1982, um dos anos em que se permitia o acesso de quatro equipes para a Taça de Ouro no mesmo ano. Os que não se classificavam (portanto, de quinto a oitavo) continuavam na disputa do título da segundona, que valia vaga na primeira do Brasileiro, mas só do ano seguinte.
A segunda divisão também foi chamada de Módulo Amarelo (em 1986 e em 1987), Campeonato Brasileiro da Divisão Especial (1988 e 1989), assumidamente de Segunda Divisão (aí sim em caixa alta e baixa, de 1990 a 1994) e finalmente de Série B, como a conhecemos hoje, desde 1995. Espero ter ajudado, apesar de tanta confusão!"
Celso Unzelte é provavelmente o jornalista que mais conhece a história do futebol no Brasil. Temos a honra de fazer parte de "famílias amigas". Celso e a jornalista Patrícia Rodrigues estão entre os habitués lá de casa (e nós da deles!). Celso foi chefe do meu marido, Patrícia foi minha caloura na faculdade. Sempre que nos encontramos, há ocasião para velhas histórias de redação, além de facilitarmos apresentações musicais improváveis de nossas crianças, com repertório que vai de clássicos de Adoniram Barbosa ao hino da Portuguesa Carioca.
Obrigada, fiel companheiro!
Thursday, November 23, 2006
Tucanaram a Segundona
O colunista José Simão, da Folha, há vários anos cunhou as expressões tucanar, tucanês, entre outras variações, em referência ao hábito de "falar difícil", genericamente associado ao partido dos tucanos, o PSDB. Foi o governo tucano, por exemplo, que massificou no país o termo "agência", para designar instâncias controladoras de setores da economia. Zé Simão esmera-se por coletar e divulgar exemplos do que ele chama de anti-tucanês, expressões bem "ao pé da letra".
Esta é o contrário e me foi contada pelo meu dentista e querido amigo, dr. Marcelo Poloniato. Antes, cumpre um pequeno parêntesis: quem me conhece sabe do meu encanto pelo futebol. Torço, mas sobretudo amo futebol, de assistir Pocinhos do Rio Verde versus São Popó do Maculelê de sábado à tarde, via UHF, em preto e branco. Mas, convenhamos, sou quase uma aberração. Mulheres, em geral, não gostam de futebol e gostam de dizer que não gostam de futebol. Algumas até se entusiasmam quando chegam as finais, mas daí inventaram o campeonato de pontos corridos e não tem mais final. Aí é que as moças de enroscam mesmo. Lembro claramente da última rodada, ano passado, quando o meu Corinthians conquistou o Troféu Luiz Sveiter, ops!, quer dizer, o Campeonato Brasileiro, jogando contra o Goiás. Foi difícil explicar às outras mulheres presentes na sala que o Corinthians estava perdendo mas ia ser campeão assim mesmo.
Então, Marcelo me conta que uma paciente estava em Belo Horizonte no fim de semana passado, pegou um táxi e estranhou a movimentação atípica na cidade. Perguntou ao motorista do que se tratava e o homem, todo cheio, comentou que era a festa da torcida atleticana, comemorando o título brasileiro. A moça não entendeu e inquiriu: "Mas, pelo que eu estava sabendo, não era o São Paulo que já era quase campeão?". O chofer explicou que o São Paulo era da Série A. O glorioso Atlético Mineiro tinha acabado de ser campeão da Série B.
"Ah, Série B é a Segunda Divisão?"
Pra quê...
O homem encostou o táxi na guia, virou-se para trás, dedo em riste e decretou: "Não é Segunda Divisão, é Série B!"
Meus amigos historiadores de futebol, como o imbatível Celso Unzelte, poderiam vir em meu auxílio para contar desde quando a Segundona se chama Série B. O que me parece evidente é que ela só passou a ser chamada com esse orgulho pelo nome verdadeiro depois que grandes times como Palmeiras, Grêmio e Atlético fizeram estágio por lá. Antes, quando ela era reduto dos habituais sobe-desce, como Sport, Santa Cruz, Náutico, Guarani, Ponte Preta, Coritiba, ninguém se importava de chamá-la de Segundona.
É sempre o dedo da elite: basta um time grande despencar que já tucanaram a segundona. (Por favor, leiam esta última frase com o modo irônico ligado.)
Esta é o contrário e me foi contada pelo meu dentista e querido amigo, dr. Marcelo Poloniato. Antes, cumpre um pequeno parêntesis: quem me conhece sabe do meu encanto pelo futebol. Torço, mas sobretudo amo futebol, de assistir Pocinhos do Rio Verde versus São Popó do Maculelê de sábado à tarde, via UHF, em preto e branco. Mas, convenhamos, sou quase uma aberração. Mulheres, em geral, não gostam de futebol e gostam de dizer que não gostam de futebol. Algumas até se entusiasmam quando chegam as finais, mas daí inventaram o campeonato de pontos corridos e não tem mais final. Aí é que as moças de enroscam mesmo. Lembro claramente da última rodada, ano passado, quando o meu Corinthians conquistou o Troféu Luiz Sveiter, ops!, quer dizer, o Campeonato Brasileiro, jogando contra o Goiás. Foi difícil explicar às outras mulheres presentes na sala que o Corinthians estava perdendo mas ia ser campeão assim mesmo.
Então, Marcelo me conta que uma paciente estava em Belo Horizonte no fim de semana passado, pegou um táxi e estranhou a movimentação atípica na cidade. Perguntou ao motorista do que se tratava e o homem, todo cheio, comentou que era a festa da torcida atleticana, comemorando o título brasileiro. A moça não entendeu e inquiriu: "Mas, pelo que eu estava sabendo, não era o São Paulo que já era quase campeão?". O chofer explicou que o São Paulo era da Série A. O glorioso Atlético Mineiro tinha acabado de ser campeão da Série B.
"Ah, Série B é a Segunda Divisão?"
Pra quê...
O homem encostou o táxi na guia, virou-se para trás, dedo em riste e decretou: "Não é Segunda Divisão, é Série B!"
Meus amigos historiadores de futebol, como o imbatível Celso Unzelte, poderiam vir em meu auxílio para contar desde quando a Segundona se chama Série B. O que me parece evidente é que ela só passou a ser chamada com esse orgulho pelo nome verdadeiro depois que grandes times como Palmeiras, Grêmio e Atlético fizeram estágio por lá. Antes, quando ela era reduto dos habituais sobe-desce, como Sport, Santa Cruz, Náutico, Guarani, Ponte Preta, Coritiba, ninguém se importava de chamá-la de Segundona.
É sempre o dedo da elite: basta um time grande despencar que já tucanaram a segundona. (Por favor, leiam esta última frase com o modo irônico ligado.)
Monday, November 20, 2006
Ana Carolina
Ela conseguiu. É capa de todas as revistas semanais no Brasil. Imagino quantas vezes, no interior de São Paulo ou nos cafundós do Japão, sonhou acordada com a fama, a celebridade, ser capa de revista. Pena não estar viva para ver.
Há alguns anos, meu trabalho eventualmente incluía a tarefa de fazer “casting”. Fazer casting é escolher modelos para eventos ou algum outro tipo de produção. Fui uma vez a uma agência e me espantei com o espetáculo armado para um só espectador – eu. As meninas desfilavam sobre uma passarela de verdade e eu tinha de escolher, entre umas vinte, as quatro que ia contratar. A moça da agência fazia observações pertinentes: essa tem perna boa, longa; essa é linda, mas nunca sorri: se você precisa de simpatia, não a chame; essa negra é sensacional, olha, é sempre bacana colocar uma negra entre elas, viu?! Blá-blá-blá: navio negreiro, foi assim mesmo que me senti, em um mercado de escravos.
Pena, pena, não senti naquele dia e continuo não sentindo. Só segue carreira de modelo quem quer. Todo mundo sabe que é um ambiente hostil, focado só na aparência física e, portanto, superficial e afeito ao descarte. Quem quer ser tratado como escravo ou como animal premiado, sendo avaliado pelos dentes, pela coxa ou pelos peitos, que seja modelo.
Sentir pena das moças por essa vida que levam é como ser tomado de compaixão por quem participa do Big Brother. “Ah, coitados, parecem animais enjaulados...”. Estão lá porque querem e, em paralelo óbvio com as modelos esquálidas, também “se sacrificam” em busca de fama, de ser capa de revista.
Só não digo que fico totalmente indiferente a essas jovens porque me causa leve indignação a posição de suas famílias. Permitir que uma adolescente de 13 anos se mude de mala, cuia e sem dinheiro no bolso para o Japão me parece muito estranho. Omissão ou promessa de enriquecimento, sei lá, também sou mãe e sei como às vezes custa dizer um não inflexível a um filho. E talvez a raiz dessa impotência dos pais seja o irresistível culto à beleza e à juventude que paira nesses dias como uma espada de remorso sobre a cabeça da sociedade. Dá-lhe capa de revista, dá-lhe mea culpa dos próprios veículos que, para seus editoriais de moda, selecionam no “casting” modelos cujas pernas têm a espessura de um braço, e em seus editoriais entrevistam especialistas em anorexia, bulimia e outros distúrbios alimentares. Dá-lhe contradição.
Sim, a culpa é da sociedade. Somos culpados por modelos que morrem de fome. Também somos culpados por crianças e adolescentes obesos que se entopem de gordura trans nos fast foods dos shoppings ou na frente da TV. Somos culpados pelos que comem demais e pelos que não comem. Isso não é ironia: as raízes dos problemas do ser humano estão nele mesmo, em sua forma de viver e se organizar em grupos, mas convido a uma reflexão ampliada.
A primeira vez que ouvi falar em anorexia foi após a morte da cantora Karen Carpenter, em 1983. Fiquei chocada com a manchete na capa de uma revista: “A cantora que morreu de fome”. O sensacionalismo da publicação serviu para que eu entendesse que ela não tinha morrido por falta de dinheiro para comprar comida, como acontece com tanta gente no mundo, mas devido a um distúrbio psicológico que a fazia recusar alimentos. A coisa, portanto, não é de hoje.
Recentemente, após a morte da modelo Ana Carolina, li uma reportagem com uma pesquisadora do Hospital das Clínicas, de São Paulo, cuja tese apoiou-se no estudo histórico da anorexia. Está lá: há registros da doença que remontam ao século 8. O perfil do paciente, desde aquela época, é semelhante ao de agora: na maioria, mulheres jovens, de famílias bem sucedidas, com traços de timidez. A diferença entre os eventos do passado e os de hoje é a motivação. Antes, a sublimação do corpo tinha origem na busca pela santificação, enquanto hoje é reflexo de um padrão estético.
Sempre que os temas anorexia e magreza excessiva ganham destaque na mídia, surgem aqui e ali textos bem humorados de cronistas machos louvando a beleza de mulheres que se fartam à mesa e exibem despudoradas suas coxas roliças, suas ancas carnudas, seus peitos volumosos. Pois eu digo: tais crônicas podem ser engraçadinhas, mas são inócuas em termos de doutrinação. É só puxar pelo exemplo histórico. Se pacientes com esse perfil já manifestavam seus distúrbios em tempos de culto às formas roliças, como nos séculos passados, não são os bem intencionados cronistas do século 21 que as farão mudar de idéia hoje. Porque o problema não se relaciona à imagem que o outro faça dela, mas à sua própria auto-imagem. A moça recém-tragada pela anorexia disse ter consciência de nutrir uma visão distorcida sobre si mesma. As de ontem e as de hoje não são apenas produto do meio: são pessoas doentes.
Cabe, sim, à sociedade, avaliar seu grau de culpa no caso. Por que essas moças se tornam anoréxicas e chegam à morte, em alguns casos? É nosso apelo ao belo e ao jovem? Pode haver, sim, essa parcela de responsabilidade. Mas cada um responde à pressão do meio de acordo com suas possibilidades e sua vontade. O mundo valoriza mulheres magras, sim, a mídia as estampa em todos os cantos. Mas o mundo também nos enche de apelos irresistíveis por batatinhas fritas, hambúrgueres, nuggets, sorvetes, chocolates. A depender só das influências externas, a mim caberia apenas ser anoréxica ou obesa mórbida.
Diante do paradoxo entre “seja magra” e “se encha de besteiras”, tornar-se uma pessoa que se alimenta de forma saudável e equilibrada é algo que depende de mim, da influência que tenho da minha família. Não precisamos ser sempre vítimas da sociedade, se nos dispusermos a responder com firmeza e responsabilidade às pressões que sempre teremos. E aquele ser mais frágil, mais susceptível a sucumbir há de ter o apoio e a atenção da família, o que não deixa de ser a mesma firmeza e responsabilidade que se deve ter consigo mesmo.
Há alguns anos, meu trabalho eventualmente incluía a tarefa de fazer “casting”. Fazer casting é escolher modelos para eventos ou algum outro tipo de produção. Fui uma vez a uma agência e me espantei com o espetáculo armado para um só espectador – eu. As meninas desfilavam sobre uma passarela de verdade e eu tinha de escolher, entre umas vinte, as quatro que ia contratar. A moça da agência fazia observações pertinentes: essa tem perna boa, longa; essa é linda, mas nunca sorri: se você precisa de simpatia, não a chame; essa negra é sensacional, olha, é sempre bacana colocar uma negra entre elas, viu?! Blá-blá-blá: navio negreiro, foi assim mesmo que me senti, em um mercado de escravos.
Pena, pena, não senti naquele dia e continuo não sentindo. Só segue carreira de modelo quem quer. Todo mundo sabe que é um ambiente hostil, focado só na aparência física e, portanto, superficial e afeito ao descarte. Quem quer ser tratado como escravo ou como animal premiado, sendo avaliado pelos dentes, pela coxa ou pelos peitos, que seja modelo.
Sentir pena das moças por essa vida que levam é como ser tomado de compaixão por quem participa do Big Brother. “Ah, coitados, parecem animais enjaulados...”. Estão lá porque querem e, em paralelo óbvio com as modelos esquálidas, também “se sacrificam” em busca de fama, de ser capa de revista.
Só não digo que fico totalmente indiferente a essas jovens porque me causa leve indignação a posição de suas famílias. Permitir que uma adolescente de 13 anos se mude de mala, cuia e sem dinheiro no bolso para o Japão me parece muito estranho. Omissão ou promessa de enriquecimento, sei lá, também sou mãe e sei como às vezes custa dizer um não inflexível a um filho. E talvez a raiz dessa impotência dos pais seja o irresistível culto à beleza e à juventude que paira nesses dias como uma espada de remorso sobre a cabeça da sociedade. Dá-lhe capa de revista, dá-lhe mea culpa dos próprios veículos que, para seus editoriais de moda, selecionam no “casting” modelos cujas pernas têm a espessura de um braço, e em seus editoriais entrevistam especialistas em anorexia, bulimia e outros distúrbios alimentares. Dá-lhe contradição.
Sim, a culpa é da sociedade. Somos culpados por modelos que morrem de fome. Também somos culpados por crianças e adolescentes obesos que se entopem de gordura trans nos fast foods dos shoppings ou na frente da TV. Somos culpados pelos que comem demais e pelos que não comem. Isso não é ironia: as raízes dos problemas do ser humano estão nele mesmo, em sua forma de viver e se organizar em grupos, mas convido a uma reflexão ampliada.
A primeira vez que ouvi falar em anorexia foi após a morte da cantora Karen Carpenter, em 1983. Fiquei chocada com a manchete na capa de uma revista: “A cantora que morreu de fome”. O sensacionalismo da publicação serviu para que eu entendesse que ela não tinha morrido por falta de dinheiro para comprar comida, como acontece com tanta gente no mundo, mas devido a um distúrbio psicológico que a fazia recusar alimentos. A coisa, portanto, não é de hoje.
Recentemente, após a morte da modelo Ana Carolina, li uma reportagem com uma pesquisadora do Hospital das Clínicas, de São Paulo, cuja tese apoiou-se no estudo histórico da anorexia. Está lá: há registros da doença que remontam ao século 8. O perfil do paciente, desde aquela época, é semelhante ao de agora: na maioria, mulheres jovens, de famílias bem sucedidas, com traços de timidez. A diferença entre os eventos do passado e os de hoje é a motivação. Antes, a sublimação do corpo tinha origem na busca pela santificação, enquanto hoje é reflexo de um padrão estético.
Sempre que os temas anorexia e magreza excessiva ganham destaque na mídia, surgem aqui e ali textos bem humorados de cronistas machos louvando a beleza de mulheres que se fartam à mesa e exibem despudoradas suas coxas roliças, suas ancas carnudas, seus peitos volumosos. Pois eu digo: tais crônicas podem ser engraçadinhas, mas são inócuas em termos de doutrinação. É só puxar pelo exemplo histórico. Se pacientes com esse perfil já manifestavam seus distúrbios em tempos de culto às formas roliças, como nos séculos passados, não são os bem intencionados cronistas do século 21 que as farão mudar de idéia hoje. Porque o problema não se relaciona à imagem que o outro faça dela, mas à sua própria auto-imagem. A moça recém-tragada pela anorexia disse ter consciência de nutrir uma visão distorcida sobre si mesma. As de ontem e as de hoje não são apenas produto do meio: são pessoas doentes.
Cabe, sim, à sociedade, avaliar seu grau de culpa no caso. Por que essas moças se tornam anoréxicas e chegam à morte, em alguns casos? É nosso apelo ao belo e ao jovem? Pode haver, sim, essa parcela de responsabilidade. Mas cada um responde à pressão do meio de acordo com suas possibilidades e sua vontade. O mundo valoriza mulheres magras, sim, a mídia as estampa em todos os cantos. Mas o mundo também nos enche de apelos irresistíveis por batatinhas fritas, hambúrgueres, nuggets, sorvetes, chocolates. A depender só das influências externas, a mim caberia apenas ser anoréxica ou obesa mórbida.
Diante do paradoxo entre “seja magra” e “se encha de besteiras”, tornar-se uma pessoa que se alimenta de forma saudável e equilibrada é algo que depende de mim, da influência que tenho da minha família. Não precisamos ser sempre vítimas da sociedade, se nos dispusermos a responder com firmeza e responsabilidade às pressões que sempre teremos. E aquele ser mais frágil, mais susceptível a sucumbir há de ter o apoio e a atenção da família, o que não deixa de ser a mesma firmeza e responsabilidade que se deve ter consigo mesmo.
Friday, November 17, 2006
Dom Fernando I
O novo rei da Fórmula 1? No GPTotal, digo o que penso sobre Fernando Alonso e sua perspectiva para 2007. Vai lá!
Thursday, November 16, 2006
Como nossos pais
Felipe anda encantado por tuning, drift e reaggae. Tirando o terceiro, dos outros pouco ou nada eu sabia. E só captei as paixões recentes do rapaz graças ao MSN Messenger. Felipe começou a pipocar no canto direito da minha tela, quase sempre no fim da tarde, com frases alusivas a esses termos.
Eu sabia que tuning é a versão moderna de “envenenar” os carros, mais ou menos o que a juventude transviada já fazia nos anos 60 e 70. Fico meio abestalhada quando sei que um sujeito é capaz de gastar 30 mil dinheiros em um carro e atulhá-lo com equipamentos e soluções que, juntos, somam outros 30 mil. E acho que não entendo o que falam quando mencionam coisas como caranga socada e nitro, mas assim é a vida, vamos aprendendo, nem que para isso a fonte de informação seja o cinema, mais exatamente o filme “Velozes e Furiosos”, que parece ter espalhado pelo mundo a febre do tuning.
Reggae eu conhecia, claro. Música jamaicana, Bob Marley, no woman, no cry, Gilberto Gil, Jimmy Cliff. Conhecia as obviedades, óbvio, mas não sabia que a juventude do século 21 tinha se encantado pelo reggae e que o ritmo tinha voltado com força. Desculpem, sou bem alienada mesmo, meus discos são de outrora, meus programas de TV, compilações de seriados já extintos, alguns em DVD e outros, ainda, em fita de VHS. Mas não posso dizer que não sabia o que era raggae quando Felipe pulou outro dia, no cantinho da tela, com uma frase de devoção ao Natiruts que descobri ser o must da moçada reggaera destes tempos.
O que me entortou mesmo foi o drift. Esse eu nunca tinha ouvido falar.
Felipe tem dezessete anos e é o filho mais velho da minha prima Debora. Quando nasceu, tive pela primeira vez a sensação de que os bebês são muito, muito pequenos. Hoje, sei lá, deve ter quase um metro e noventa, e fica trazendo novidades para meu mundo virtual. Achei interessante sua devoção pelo tuning e comentei, assim por cima, com ele. Comentei, ainda, que Felipe falava de um tal drift, e quis saber do que se tratava. Ele franziu a sobrancelha, respirou fundo, levantou-se a falou: “Preciso agir rápido”.
Meu marido não deixa coisas para depois. Se tem que fazer, faz na hora e tanta diligência é algo bom, por um lado, mas me causa certo desconforto quando menciono, assim por cima, que poderíamos começar a ver um carro novo para substituir o meu, porque o homem, por ele, sai e fecha o negócio na primeira concessionária que lhe oferece um bom preço. Enquanto me explicava que drift são provas de arrancada, mania nascida no Japão e que não tem lugar para acontecer – pode ser em um autódromo ou no estacionamento de um shopping – ele separou as revistas que escreve para uma marca de automóveis. Não apenas uma marca, não apenas automóveis. A marca, o carro. Em uma palavra: Porsche. Colocou tudo em um envelope e escreveu na frente: Felipe. “Vou deixar na portaria do prédio dele amanhã. Esse menino precisa saber o que é carro de verdade.”
Não falou muito mais, mas sei. Sei que adoradores de carros e de corridas de carros veneram essas máquinas como se elas fossem mais que meios de transporte. São capazes de falar horas sobre bolas de alavanca de câmbio, frisos laterais, forrações, restaurações, bananinhas, pálpebras. Não sei se entendo tudo o que falam, mas o dialeto deve ser muito diferente do que contém caranga socada e nitro, ou ele não teria providenciado o tal envelope com tanto sentido de urgência. Olhei aquele homem de cenho franzido e não pude deixar de lembrar que ele escandalizou minha família quando lá chegou, cheio de uns hábitos muito modernos para aquela turma da Zona Norte, há quinze anos. Agora, o moderno é o Felipe, com seu tuning, seu drift, seu reggae.
Eu sabia que tuning é a versão moderna de “envenenar” os carros, mais ou menos o que a juventude transviada já fazia nos anos 60 e 70. Fico meio abestalhada quando sei que um sujeito é capaz de gastar 30 mil dinheiros em um carro e atulhá-lo com equipamentos e soluções que, juntos, somam outros 30 mil. E acho que não entendo o que falam quando mencionam coisas como caranga socada e nitro, mas assim é a vida, vamos aprendendo, nem que para isso a fonte de informação seja o cinema, mais exatamente o filme “Velozes e Furiosos”, que parece ter espalhado pelo mundo a febre do tuning.
Reggae eu conhecia, claro. Música jamaicana, Bob Marley, no woman, no cry, Gilberto Gil, Jimmy Cliff. Conhecia as obviedades, óbvio, mas não sabia que a juventude do século 21 tinha se encantado pelo reggae e que o ritmo tinha voltado com força. Desculpem, sou bem alienada mesmo, meus discos são de outrora, meus programas de TV, compilações de seriados já extintos, alguns em DVD e outros, ainda, em fita de VHS. Mas não posso dizer que não sabia o que era raggae quando Felipe pulou outro dia, no cantinho da tela, com uma frase de devoção ao Natiruts que descobri ser o must da moçada reggaera destes tempos.
O que me entortou mesmo foi o drift. Esse eu nunca tinha ouvido falar.
Felipe tem dezessete anos e é o filho mais velho da minha prima Debora. Quando nasceu, tive pela primeira vez a sensação de que os bebês são muito, muito pequenos. Hoje, sei lá, deve ter quase um metro e noventa, e fica trazendo novidades para meu mundo virtual. Achei interessante sua devoção pelo tuning e comentei, assim por cima, com ele. Comentei, ainda, que Felipe falava de um tal drift, e quis saber do que se tratava. Ele franziu a sobrancelha, respirou fundo, levantou-se a falou: “Preciso agir rápido”.
Meu marido não deixa coisas para depois. Se tem que fazer, faz na hora e tanta diligência é algo bom, por um lado, mas me causa certo desconforto quando menciono, assim por cima, que poderíamos começar a ver um carro novo para substituir o meu, porque o homem, por ele, sai e fecha o negócio na primeira concessionária que lhe oferece um bom preço. Enquanto me explicava que drift são provas de arrancada, mania nascida no Japão e que não tem lugar para acontecer – pode ser em um autódromo ou no estacionamento de um shopping – ele separou as revistas que escreve para uma marca de automóveis. Não apenas uma marca, não apenas automóveis. A marca, o carro. Em uma palavra: Porsche. Colocou tudo em um envelope e escreveu na frente: Felipe. “Vou deixar na portaria do prédio dele amanhã. Esse menino precisa saber o que é carro de verdade.”
Não falou muito mais, mas sei. Sei que adoradores de carros e de corridas de carros veneram essas máquinas como se elas fossem mais que meios de transporte. São capazes de falar horas sobre bolas de alavanca de câmbio, frisos laterais, forrações, restaurações, bananinhas, pálpebras. Não sei se entendo tudo o que falam, mas o dialeto deve ser muito diferente do que contém caranga socada e nitro, ou ele não teria providenciado o tal envelope com tanto sentido de urgência. Olhei aquele homem de cenho franzido e não pude deixar de lembrar que ele escandalizou minha família quando lá chegou, cheio de uns hábitos muito modernos para aquela turma da Zona Norte, há quinze anos. Agora, o moderno é o Felipe, com seu tuning, seu drift, seu reggae.
Monday, November 06, 2006
Que música marcou sua vida?
Ouvi dia desses um programa de rádio que tinha um quadro com esse nome – que música marcou sua vida? Gostei da brincadeira e achei que cabia bem no espírito do blog. Eu, sempre ligadíssima em música, não seria capaz de escolher uma apenas. Dividi por quesitos e deixo aqui minha contribuição, ansiosa por ler as de vocês. Vamos lá?
Tudo bem, eu começo.
Quesito “Auto-conhecimento”
“Sou a Mônica, sou a Mônica...” – talvez tenha sido a primeira música que me marcou. Em casa, tinha um compacto duplo com os temas de alguns personagens da Tuma da Mônica – tinha a própria, o Cascão, o Chico Bento e o Bidu. Atacadinha como sempre fui, lembro que gostava particularmente dos versos “quando diz que sim, quando diz que não, mostra ter opinião”. Muitos anos mais tarde, quando começou a passar no Brasil o seriado Friends, de cara me identifiquei com a personagem Monica Geller, cujas características principais são a competitividade exacerbada e a mania de arrumação. Minha querida amiga Cynthia, que também gostava do programa, certa vez comentou: “Você É a Monica.” Não contestei. Já era desde criança, sempre serei.
“Dona” – ah, Sá & Guarabyra na interpretação do Roupa Nova... Manja aquela cena de novela?! A adolescente sonhadora escutando uma música, um tanto melancólica, olhando pela janela e sonhando com o futuro de glórias? Chuva lá fora, de preferência. “Não há pedra em teu caminho, não há ondas no teu mar, não há vento ou tempestade que te impeçam de voar”. Ah, como eu queria ser essa dona! Tudo bem que era tema da Viúva Porcina, em Roque Santeiro, mas eu queria aquela música para mim, queria ser essa mulher de pulso impaciente batendo – tan-tan-tan – na porta. Acabei madrinha de casamento na época, vestindo um modelito de lamê prateado, mangas presunto enormes, saia sereia com enchimento de tule, a própria Porcina. Mas a culpa era do terror fashion dos anos 80, não da música, isso eu sei.
Quesito “Talismã"
“Eduardo e Mônica” – Será que mais gente tem isso? De ouvir uma música e achar que ela deu sorte para alguma coisa? Vamos, confessem! Eu tive duas músicas talismã na vida. Quando ainda estava no segundo colegial, resolvi prestar vestibular só para ver como era, se eu estava me preparando bem, essas coisas de menina CDF sem namorado. Antes de sair para a prova, tocou a música do Legião Urbana no rádio. Como fui muito bem na prova, associei uma coisa à outra. No ano seguinte, quando prestei vestibular para valer, sempre colocava “Eduardo e Mônica” para tocar antes de sair. Não foram os livros, foi Renato Russo que me fez passar! (E lá está a Mônica de novo a me perseguir...)
“Maria de Verdade” – Alguns anos depois, já formada, casada e teoricamente adulta, me agarrei a outra canção. Em 1995, o Corinthians viveu um ano maravilhoso, com dois títulos conquistados. A Copa do Brasil e o Paulista, ganho em uma final memorável sobre o Palmeiras. Mas a responsabilidade pelos troféus erguidos não foi das cobranças de falta certeiras de Marcelinho Carioca. Não, para mim, a grande responsável era a faixa de abertura do CD “Cor de Rosa e Carvão”, da Marisa Monte, que eu sempre ouvia antes de cada jogo. Nos atuais tempos bicudos, abandonei os CDs por muita reza e calmante antes das partidas do Timão.
Quesito “Ternura”
“Unforgettable” – No ano de 1991, Natalie Cole lançou aquele CD de standards no qual ela cantava com a voz do pai Nat, morto muitos anos antes. Tocava em tudo que é canto, até encheu de tanto tocar! Tocava no saguão do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, quando voltávamos de uma viagem “profissional” que acabou sendo nossa primeira lua-de-mel. Logo depois, ele me deu o CD de presente. Inesquecível mesmo...
Mal termino de escrever e já penso em tantas outras músicas que marcaram minha vida. Mas, se deixar, não paro nunca! E aí, e você? Que música marcou sua vida?
Tudo bem, eu começo.
Quesito “Auto-conhecimento”
“Sou a Mônica, sou a Mônica...” – talvez tenha sido a primeira música que me marcou. Em casa, tinha um compacto duplo com os temas de alguns personagens da Tuma da Mônica – tinha a própria, o Cascão, o Chico Bento e o Bidu. Atacadinha como sempre fui, lembro que gostava particularmente dos versos “quando diz que sim, quando diz que não, mostra ter opinião”. Muitos anos mais tarde, quando começou a passar no Brasil o seriado Friends, de cara me identifiquei com a personagem Monica Geller, cujas características principais são a competitividade exacerbada e a mania de arrumação. Minha querida amiga Cynthia, que também gostava do programa, certa vez comentou: “Você É a Monica.” Não contestei. Já era desde criança, sempre serei.
“Dona” – ah, Sá & Guarabyra na interpretação do Roupa Nova... Manja aquela cena de novela?! A adolescente sonhadora escutando uma música, um tanto melancólica, olhando pela janela e sonhando com o futuro de glórias? Chuva lá fora, de preferência. “Não há pedra em teu caminho, não há ondas no teu mar, não há vento ou tempestade que te impeçam de voar”. Ah, como eu queria ser essa dona! Tudo bem que era tema da Viúva Porcina, em Roque Santeiro, mas eu queria aquela música para mim, queria ser essa mulher de pulso impaciente batendo – tan-tan-tan – na porta. Acabei madrinha de casamento na época, vestindo um modelito de lamê prateado, mangas presunto enormes, saia sereia com enchimento de tule, a própria Porcina. Mas a culpa era do terror fashion dos anos 80, não da música, isso eu sei.
Quesito “Talismã"
“Eduardo e Mônica” – Será que mais gente tem isso? De ouvir uma música e achar que ela deu sorte para alguma coisa? Vamos, confessem! Eu tive duas músicas talismã na vida. Quando ainda estava no segundo colegial, resolvi prestar vestibular só para ver como era, se eu estava me preparando bem, essas coisas de menina CDF sem namorado. Antes de sair para a prova, tocou a música do Legião Urbana no rádio. Como fui muito bem na prova, associei uma coisa à outra. No ano seguinte, quando prestei vestibular para valer, sempre colocava “Eduardo e Mônica” para tocar antes de sair. Não foram os livros, foi Renato Russo que me fez passar! (E lá está a Mônica de novo a me perseguir...)
“Maria de Verdade” – Alguns anos depois, já formada, casada e teoricamente adulta, me agarrei a outra canção. Em 1995, o Corinthians viveu um ano maravilhoso, com dois títulos conquistados. A Copa do Brasil e o Paulista, ganho em uma final memorável sobre o Palmeiras. Mas a responsabilidade pelos troféus erguidos não foi das cobranças de falta certeiras de Marcelinho Carioca. Não, para mim, a grande responsável era a faixa de abertura do CD “Cor de Rosa e Carvão”, da Marisa Monte, que eu sempre ouvia antes de cada jogo. Nos atuais tempos bicudos, abandonei os CDs por muita reza e calmante antes das partidas do Timão.
Quesito “Ternura”
“Unforgettable” – No ano de 1991, Natalie Cole lançou aquele CD de standards no qual ela cantava com a voz do pai Nat, morto muitos anos antes. Tocava em tudo que é canto, até encheu de tanto tocar! Tocava no saguão do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, quando voltávamos de uma viagem “profissional” que acabou sendo nossa primeira lua-de-mel. Logo depois, ele me deu o CD de presente. Inesquecível mesmo...
Mal termino de escrever e já penso em tantas outras músicas que marcaram minha vida. Mas, se deixar, não paro nunca! E aí, e você? Que música marcou sua vida?
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