Aconteceu isso neste Carnaval, quando fui a um desfile de
escolas de samba pela primeira vez. Sempre adorei desfiles e via tudo que fosse
possível pela TV. Desde criança, tinha minha preferência por uma escola em São
Paulo (Vai-Vai, a escola alvinegra da Bela Vista, bairro onde nasci) e
Mangueira (a verde-rosa que me encantou por influência da minha prima Debora e
que, depois, me fisgou de vez com o enredo sobre Carlos Drummond de Andrade).
Mas nunca tinha tido oportunidade de ir à avenida, por falta
de companhia, de atitude, pura bundamolice mesmo. No ano passado, quando soube
que o Vai-Vai homenagearia Elis Regina, no ano em que ela completaria 70 anos,
enfiei na cabeça que estaria no Sambódromo do Anhembi desta vez. A ideia,
primeiro, era desfilar. Mas fui adiando minha ida à quadra da escola, mesmo
depois de encontrar casualmente o presidente de honra, Tobias, e ser estimulada
por ele a fazer parte da festa. De novo, a falta de atitude, que a essa altura
eu já reconheço. Foi a mesma que quase me fez perder o espetáculo “Elis, a
musical”. Não é só bundamolice, é instinto de preservação: sei que qualquer
coisa que se relacione a Elis Regina vai me emocionar de forma irremediável.
Acho que fujo dessa fragilidade que a emoção me impõe.
Mas, felizmente, sobrepõe-se o medo do arrependimento. Do
mesmo jeito que não admiti perder “Elis, a musical”, fui ao Anhembi no dia do
desfile e fiquei quase duas horas na fila. Saí de lá com o ingresso e, enfim,
assisti a um desfile de escola de samba.
Não tenho competência para julgar os quesitos que compõem as
notas das escolas, mas os anos de desfiles pela TV me deram algumas pistas. Das
escolas da segunda noite, na qual o Vai-Vai se apresentou, achei a Mocidade
Alegre favorita. Lindas fantasias, carros majestosos, alas coreografadas, e um
nome de peso no enredo – a atriz Marília Pera. Um desfile “correto”, mas que
esteve muito distante de empolgar a plateia como fizera a Gaviões da Fiel,
ainda no início da noite.
Mais incapacitada ainda eu me encontrava para julgar o
Vai-Vai, pela ligação emocional que tenho com tudo que se relacione a Elis
Regina. Achei um espacinho na grade e lá me plantei, desde o fim do desfile
anterior, da Acadêmicos do Tatuapé, que veio com um samba magnífico, sobre o
ouro.
Maria Rita, filha de Elis, na Comissão de Frente |
Chega a hora do Vai-Vai e ouço “Elis Regina” à capela,
cantando um trecho de Maria, Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant.
Havia informações desencontradas se esse canto à capela seria feito pela filha
de Elis, Maria Rita. Na hora, pareceu que se tratava da própria Elis gravada,
mas depois eu soube que a dona da voz era a cantora Didi Gomes, de timbre
idêntico ao da homenageada. Assim que começou a soar o samba-enredo do Vai-Vai, o
Sambódromo entrou em estado de comoção.
As bandeirinhas com o nome do enredo e uma foto de Elis,
distribuídas antes do desfile, eram agitadas freneticamente. E o público
cantava o samba inteiro. Marotamente, os compositores se apropriaram do refrão
de “Maria Maria” e o mestre de bateria integrou-o a uma paradinha estratégica.
Resultado: o Sambódromo cantava o “aê-âe-aá-ê” praticamente em uníssono. Eu
achava que iria chorar ao longo da homenagem, mas comecei antes que a comissão
de frente chegasse ao meu setor.
Maria Rita não cantou à capela. Fazia parte da
comissão de frente, abrindo a escola. Estava emocionada, muito. Nunca vou
deixar de me comover com essa relação entre as duas. Meu pai morreu quando eu
tinha 30 anos. Era uma pessoa querida por muita gente. Não é raro que alguém se
manifeste ainda hoje sobre a falta que ele faz. Nunca deixou de ser sofrido
ouvir esses relatos, e ele não era nenhuma celebridade. Não consigo imaginar
como deve ser reagir ao bombardeio de mídia e público, praticamente incessante
nos últimos 33 anos, sobre a falta que Elis faz. E, no caso de Maria Rita,
primeiro a cobrança para que ela cantasse. Depois, a comparação. É preciso ter
força, é preciso ter raça para enfrentar isso, em público, ao vivo, e ainda
fazendo o abre alas para a escola.
De tanto ler sobre os preparativos, eu sabia que
o Vai-Vai não viria com um desfile linear, histórico. Não iria contar a vida e
obra de Elis, mas mergulhar no universo de algumas de suas canções mais
famosas. E ali estavam as Nossas Senhoras Aparecidas de “Romaria”, as redes e
os peixes de “Arrastão”, o coração flechado de “Tiro ao Álvaro”. E estava
também a ala infantil, graciosamente fantasiada de pimentinhas, evocando o
apelido de Elis.
João Marcello Bôscoli (à esquerda) e Pedro Mariano (à direita), filhos de Elis |
Algumas fantasias eu não sabia explicar, como não soube
explicar muito bem a homenagem descomunal a Jair Rodrigues – um parceiro
importante, mas não mais relevante para a obra de Elis que, por exemplo, César
Camargo Mariano, João Bosco e Aldir Blanc, Milton Nascimento, Ivan Lins. Como
no espetáculo “Elis, a musical”, achei exagerada a referência hippie que se
tenta colar nela. Elis não foi símbolo da contracultura, como talvez Gal Costa
tenha encarnado mais, ambas muito menos que a turma dos Novos Baianos. E
entendi menos ainda o carro alegórico que fazia referência à ditadura e à
censura, com uma escultura sorridente de Elis que foi definida por alguns fãs,
ali mesmo e nos dias seguintes, como mais semelhante a Silvio Santos ou ao
Senhor Spock.
Mas, que diabos, por que eu precisava entender para gostar?
Logo me lembrei da cena atribuída ao pintor Matisse,
questionado por uma senhora sobre as formas de uma figura humana em um de seus
quadros. Teria dito a madame: “isso não é uma mulher!” Ao que o artista
respondeu: “isso não é mesmo uma mulher, é um quadro.”
Ora, por que me importar com imprecisões históricas ou
leituras enviesadas se a sensação, afinal, era tão arrebatadora? Afinal, o
sambódromo do Anhembi estava em êxtase. A escola já tinha passado e as
bandeiras continuavam se agitando, e a arquibancada continuava cantando o samba. Escrevendo dias depois do desfile e com o Vai-Vai campeão, tenho a forte sensação de que essa comoção influenciou as notas. Se eu questionasse os carnavalescos sobre essa minha tola estranheza, eles com razão poderiam me dizer: "isto não é uma biografia, é um desfile".
Além de Maria Rita, os outros filhos de Elis – João Marcello
Bôscoli e Pedro Mariano – também desfilaram. Os três já têm mais idade do que
Elis tinha, quando morreu. Naquela passarela do samba, tenho a impressão de que
metade do público emocionou-se por ver homenageada uma artista que marcou sua
vida e cuja morte ficou no imaginário como um dos maiores lutos do povo
brasileiro.
A outra metade provavelmente não conheceu Elis em vida, mas
tem aqui e ali alguma referência de sua obra. Muito desse reconhecimento vem do
mito que se formou em torno dela. Mas muito está relacionado ao trabalho da
família em mantê-la viva na cultura nacional. O que o Vai-Vai fez alinha-se a
esta missão de preservar Elis viva. “Cantora igual jamais se ouviu”, diz o
samba. Mas podemos continuar ouvindo, para sempre. Obrigada, Vai-Vai.