Thursday, February 19, 2015

Vai-Vai: isto não é uma biografia, é um desfile

A passagem do Vai-Vai levantou a arquibancada

É um pequeno milagre que eu seja comentarista de rádio já há alguns anos. O rádio é a agilidade em forma de veículo de comunicação, o aqui-e-agora mais radical da mídia. Foi ao ar, já era. Não tem tecla de backspace, não tem como apagar. E não me sinto incomodada em “ler” uma corrida de Fórmula 1 enquanto ela acontece, na minha frente, tentando desvendar algo que possa ter passado despercebido para os ouvintes. Se eu tivesse que fazer essa mesma leitura de outras coisas, acho que ficaria muda diante do microfone, abestada. Isso vale para as artes, por exemplo. Dificilmente consigo sair do cinema ou de um espetáculo com a ideia formada sobre tudo que vi, ouvi e percebi. Preciso digerir essa sopa de sensações para extrair algo que faça sentido para outras pessoas.
Aconteceu isso neste Carnaval, quando fui a um desfile de escolas de samba pela primeira vez. Sempre adorei desfiles e via tudo que fosse possível pela TV. Desde criança, tinha minha preferência por uma escola em São Paulo (Vai-Vai, a escola alvinegra da Bela Vista, bairro onde nasci) e Mangueira (a verde-rosa que me encantou por influência da minha prima Debora e que, depois, me fisgou de vez com o enredo sobre Carlos Drummond de Andrade).

Mas nunca tinha tido oportunidade de ir à avenida, por falta de companhia, de atitude, pura bundamolice mesmo. No ano passado, quando soube que o Vai-Vai homenagearia Elis Regina, no ano em que ela completaria 70 anos, enfiei na cabeça que estaria no Sambódromo do Anhembi desta vez. A ideia, primeiro, era desfilar. Mas fui adiando minha ida à quadra da escola, mesmo depois de encontrar casualmente o presidente de honra, Tobias, e ser estimulada por ele a fazer parte da festa. De novo, a falta de atitude, que a essa altura eu já reconheço. Foi a mesma que quase me fez perder o espetáculo “Elis, a musical”. Não é só bundamolice, é instinto de preservação: sei que qualquer coisa que se relacione a Elis Regina vai me emocionar de forma irremediável. Acho que fujo dessa fragilidade que a emoção me impõe.

Mas, felizmente, sobrepõe-se o medo do arrependimento. Do mesmo jeito que não admiti perder “Elis, a musical”, fui ao Anhembi no dia do desfile e fiquei quase duas horas na fila. Saí de lá com o ingresso e, enfim, assisti a um desfile de escola de samba. 

Não tenho competência para julgar os quesitos que compõem as notas das escolas, mas os anos de desfiles pela TV me deram algumas pistas. Das escolas da segunda noite, na qual o Vai-Vai se apresentou, achei a Mocidade Alegre favorita. Lindas fantasias, carros majestosos, alas coreografadas, e um nome de peso no enredo – a atriz Marília Pera. Um desfile “correto”, mas que esteve muito distante de empolgar a plateia como fizera a Gaviões da Fiel, ainda no início da noite.

Mais incapacitada ainda eu me encontrava para julgar o Vai-Vai, pela ligação emocional que tenho com tudo que se relacione a Elis Regina. Achei um espacinho na grade e lá me plantei, desde o fim do desfile anterior, da Acadêmicos do Tatuapé, que veio com um samba magnífico, sobre o ouro.

Maria Rita, filha de Elis, na Comissão de Frente
Chega a hora do Vai-Vai e ouço “Elis Regina” à capela, cantando um trecho de Maria, Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Havia informações desencontradas se esse canto à capela seria feito pela filha de Elis, Maria Rita. Na hora, pareceu que se tratava da própria Elis gravada, mas depois eu soube que a dona da voz era a cantora Didi Gomes, de timbre idêntico ao da homenageada. Assim que começou a soar o samba-enredo do Vai-Vai, o Sambódromo entrou em estado de comoção.

As bandeirinhas com o nome do enredo e uma foto de Elis, distribuídas antes do desfile, eram agitadas freneticamente. E o público cantava o samba inteiro. Marotamente, os compositores se apropriaram do refrão de “Maria Maria” e o mestre de bateria integrou-o a uma paradinha estratégica. Resultado: o Sambódromo cantava o “aê-âe-aá-ê” praticamente em uníssono. Eu achava que iria chorar ao longo da homenagem, mas comecei antes que a comissão de frente chegasse ao meu setor.

Maria Rita não cantou à capela. Fazia parte da comissão de frente, abrindo a escola. Estava emocionada, muito. Nunca vou deixar de me comover com essa relação entre as duas. Meu pai morreu quando eu tinha 30 anos. Era uma pessoa querida por muita gente. Não é raro que alguém se manifeste ainda hoje sobre a falta que ele faz. Nunca deixou de ser sofrido ouvir esses relatos, e ele não era nenhuma celebridade. Não consigo imaginar como deve ser reagir ao bombardeio de mídia e público, praticamente incessante nos últimos 33 anos, sobre a falta que Elis faz. E, no caso de Maria Rita, primeiro a cobrança para que ela cantasse. Depois, a comparação. É preciso ter força, é preciso ter raça para enfrentar isso, em público, ao vivo, e ainda fazendo o abre alas para a escola.

De tanto ler sobre os preparativos, eu sabia que o Vai-Vai não viria com um desfile linear, histórico. Não iria contar a vida e obra de Elis, mas mergulhar no universo de algumas de suas canções mais famosas. E ali estavam as Nossas Senhoras Aparecidas de “Romaria”, as redes e os peixes de “Arrastão”, o coração flechado de “Tiro ao Álvaro”. E estava também a ala infantil, graciosamente fantasiada de pimentinhas, evocando o apelido de Elis.

João Marcello Bôscoli (à esquerda) e Pedro Mariano (à direita), filhos de Elis

Algumas fantasias eu não sabia explicar, como não soube explicar muito bem a homenagem descomunal a Jair Rodrigues – um parceiro importante, mas não mais relevante para a obra de Elis que, por exemplo, César Camargo Mariano, João Bosco e Aldir Blanc, Milton Nascimento, Ivan Lins. Como no espetáculo “Elis, a musical”, achei exagerada a referência hippie que se tenta colar nela. Elis não foi símbolo da contracultura, como talvez Gal Costa tenha encarnado mais, ambas muito menos que a turma dos Novos Baianos. E entendi menos ainda o carro alegórico que fazia referência à ditadura e à censura, com uma escultura sorridente de Elis que foi definida por alguns fãs, ali mesmo e nos dias seguintes, como mais semelhante a Silvio Santos ou ao Senhor Spock.

Mas, que diabos, por que eu precisava entender para gostar?

Logo me lembrei da cena atribuída ao pintor Matisse, questionado por uma senhora sobre as formas de uma figura humana em um de seus quadros. Teria dito a madame: “isso não é uma mulher!” Ao que o artista respondeu: “isso não é mesmo uma mulher, é um quadro.” 

Ora, por que me importar com imprecisões históricas ou leituras enviesadas se a sensação, afinal, era tão arrebatadora? Afinal, o sambódromo do Anhembi estava em êxtase. A escola já tinha passado e as bandeiras continuavam se agitando, e a arquibancada continuava cantando o samba. Escrevendo dias depois do desfile e com o Vai-Vai campeão, tenho a forte sensação de que essa comoção influenciou as notas. Se eu questionasse os carnavalescos sobre essa minha tola estranheza, eles com razão poderiam me dizer: "isto não é uma biografia, é um desfile".

Além de Maria Rita, os outros filhos de Elis – João Marcello Bôscoli e Pedro Mariano – também desfilaram. Os três já têm mais idade do que Elis tinha, quando morreu. Naquela passarela do samba, tenho a impressão de que metade do público emocionou-se por ver homenageada uma artista que marcou sua vida e cuja morte ficou no imaginário como um dos maiores lutos do povo brasileiro.


A outra metade provavelmente não conheceu Elis em vida, mas tem aqui e ali alguma referência de sua obra. Muito desse reconhecimento vem do mito que se formou em torno dela. Mas muito está relacionado ao trabalho da família em mantê-la viva na cultura nacional. O que o Vai-Vai fez alinha-se a esta missão de preservar Elis viva. “Cantora igual jamais se ouviu”, diz o samba. Mas podemos continuar ouvindo, para sempre. Obrigada, Vai-Vai.

Monday, January 19, 2015

Elis: eu trocaria o mito por qualquer equívoco

Capa do LP Elis - Em pleno Verão, de 1970
No primeiro domingo deste ano, a cantora Maria Rita apresentou o programa “Sai do chão”, na Rede Globo, recebendo vários convidados. Ao cantar “Romaria” com ela, Sérgio Reis chorou. Mas o trecho do programa que mais me impactou foi o dueto com Marcelo D2. Entre outras, a dupla cantou o rap “Desabafo”, do próprio D2. Sou ignorante no gênero, não conhecia a música. Quando soube que ela cantaria uma música com esse nome, confundi com um antigo sucesso do Roberto Carlos (“por que me arrasto aos seus pés... porque me dou tanto assim”). No dueto com o rapper, Maria Rita causou comoção entre seus fãs ao entoar, em agudo rasgado, o refrão da música (“deixa, deixa eu dizer o que penso dessa vida, preciso demais desabafar”). Sou ignorante em rap, mas imediatamente percebi que conhecia aqueles versos. Fui pesquisar e descobri que o trecho era um sampler da música “Deixa eu dizer”, gravada pela cantora Claudia (hoje Cláudya), em 1973. E logo pensei em Elis Regina.

Sem falsidade. Não preciso de motivos para lembrar Elis. Ela está na capinha do meu celular, em um ímã na minha geladeira, na estampa de uma camiseta, junto com o nome do show/disco “Falso brilhante”. Foi, é e sempre será meu maior ídolo. Ponto. A menção à cantora Claudia me fez lembrar de uma passagem contada por uma testemunha ocular de um show de Elis, ainda nos tempos da TV Record. Elis recebia convidados no programa que apresentava com Jair Rodrigues, “O fino da Bossa”. Claudia foi cantar no programa e Elis a recebeu de maneira no mínimo fria, como se duvidando da perenidade da carreira da colega. De fato, hoje faz 33 anos que Elis morreu, gerações de amantes de MPB nasceram depois disso e aprenderam a cultuar Elis pelas qualidades óbvias de sua arte.

Não é preciso gastar muitas palavras para enumerar várias delas: cantora superdotada, com enorme alcance vocal e afinação; intérprete privilegiada, que conseguia carregar as músicas com a emoção precisa, a ponto de cantar sorrindo ou chorando, sem perder o tom, uma verdadeira atriz da música; artista musical completa, que se enquadrava no arranjo como um instrumento da banda; produtora cultural em sentido amplo, concebendo, junto a parceiros músicos, espetáculos e discos a partir de conceitos consistentes e, em muitos casos, transgressores; isso sem contar na capacidade aguçada para garimpar novos compositores e instigá-los na produção de letras e melodias que traduziam sua própria visão, expectativas, ansiedades. É até óbvio que Elis tenha se eternizado na memória cultural brasileira, sendo uma referência para jovens adultos que nem sonhavam em nascer quando ela morreu, naquela manhã de 19 de janeiro de 1982.

Claudia (ou Cláudya) surgiu como um fenômeno naqueles anos 1960. Contemporânea de Elis, ganhou o Troféu Roquete Pinto (uma espécie de Troféu Imprensa ou Melhores do Ano, à época) como cantora revelação. Se é verdade que Elis baniu Claudia do programa “O fino da Bossa” por insegurança não sei. Elis vaticinou que Claudia não duraria. Claudia continuou cantando. Gravou mais de três dezenas de discos, interpretou Evita no teatro. Nunca arrastou multidões, mas ficou no imaginário popular a ponto de ser sampleada por um rapper já no século 21. Elis não durou em vida. Mas eternizou-se na arte. Saber quem levou a melhor na eventual pendenga é discussão filosófica à qual não me aventuro.

Mas sempre me pego pensando que Elis Regina leva imensa vantagem por estar cristalizada em nossas mentes e inconscientes como uma mulher altiva de 36 anos. Gal e Bethânia, beirando os 70, ganharam peso e cabelos brancos, enquanto Elis está lá, exuberante naquele macacão dourado de seu último show, “O trem azul”. Gal gravou Michael Sullivan e Paulo Massadas. Bethânia flertou com os sertanejos. E Elis lá, firme com Tom, Milton, Chico, João Bosco & Aldir Blanc, Joyce, Ivan Lins.

Elis não vivenciou as Diretas Já, a democratização do Brasil, a invasão dos importados, a privatização de bancos e concessionárias de energia e de telefonia. Não viveu para comentar o Mensalão, o BBB, a glamourização dos trios elétricos, o surgimento do “politicamente correto” e seu avesso em programas de humor ou talk shows. Aliás, nem os talk shows ela conheceu. Não viveu para assistir à ascensão de novas religiões, o beijo gay na novela, a Copa do Mundo no Brasil, o nascimento do telefone celular ou das redes sociais.

Ai, que medo de imaginar Elis convertida a uma seita bizarra, cantando músicas de qualidade questionável, defendendo posições retrógradas, antagônicas com seu passado de indignação e dedo em riste contra gorilas fardados. Por mais que eu pense que ela não faria nada disso, que diabos. Elis viva seria humana, não mito. Não viveria para consolidar perenemente minha imagem idealizada dela. Viveria, correria riscos, acertaria e erraria. Pensando assim, eu quase consigo imaginar que foi melhor, para a imagem dela, ter se cristalizado no tempo como a cantora altiva de 36 anos, embrulhada em um datado macacão dourado.


Mas a verdade é que eu trocaria esse mito por qualquer um desses eventuais equívocos, só para que este dia 19 de janeiro não martelasse na minha cabeça há 33 anos. Para que ela pudesse ter conhecido Zeca Baleiro. Ou Adriana Calcanhoto. Ou Arnaldo Antunes. Ou Nando Reis. Ou Jair Oliveira...