Sunday, April 17, 2011
Bravura indômita
O GP da China de 2011 poderia ser daqueles que viram filmes, com todos os ingredientes para uma boa produção de Hollywwod, se Hollywwod desse alguma importância para a Fórmula 1. Drama, ação, suspense, superação, risos e lágrimas no final. Estrelando Lewis Hamilton, Sebastian Vettel, Mark Webber e grande elenco.
Na cena de abertura, mecânicos trabalham freneticamente para sanar um vazamento no carro de Lewis Hamilton, ainda nos boxes. Prosaicos rolos de papel absorvente, daqueles que se usam na cozinha, são utilizados na tarefa. Hamilton sai da garagem faltando menos de trinta segundos para o fechamento dos boxes, alinha na terceira posição e vê a equipe terminar a montagem de seu McLaren já no grid.
Dada a largada, a ação ganha corpo no enredo. Sebastian Vettel larga mal, percebe a aproximação de Hamilton, fecha-lhe a porta e, com isso, abre caminho para Jenson Button. Os pneus entregues pela Pirelli na atual temporada são a antítese da ecoeficiência. Duram pouco, obrigam os pilotos a mais trocas, emporcalham a pista. Tudo o que o KERS soma de ambientalmente amigável, os pneus subtraem de desperdício. As usinas elétricas a carvão, lá na mesma China, sorriem marotas diante de tanto dejeto, como se toda sua poluição subitamente ganhasse salvo conduto na comparação com a borracha esfarelada na pista.
Bom artifício de roteiro, esses pneus. Graças a eles, instala-se o suspense. Duas ou três paradas? Quem lidera agora? Mas vai ter de parar de novo? E esse pneu, aguenta até o final? Nessa ciranda de dúvidas, sucedem-se na liderança Button, Rosberg, Massa, Vettel. Nas duas horas que dura a película, espectadores atentos: qualquer um desse, a rigor, pode ganhar.
Como toda fita que se preza, o filme do GP da China lança mão de coadjuvantes que crescem ao longo da trama. Mark Webber foi o principal deles. Companheiro de equipe na pole, ele em 18º no grid. Tal franco atirador, lançou-se sôfrego na escalada de posições. E conseguiu. Com um carro desses, diriam os mais críticos, não fez mais que a obrigação. Seria como colocar Jack Nicholson para interpretar um malandro sarcástico. Só poderia dar certo.
Mas o duelo da história, claro, estava reservado para os protagonistas, lá na frente. Hamilton, depois do drama da largada, soube gerir bem o entra e sai dos boxes. Previdente, guardou do sábado um jogo de pneus para o dia da corrida. Como suprimento para refugiados, os pneus serão itens de sobrevivência nesta Fórmula 1 de 2011. Como ator afeito ao improviso, pareceu dar de ombros às ordens de seu engenheiro - "espere um pouco mais antes de atacar". O alvo? Vettel. A decisão de Hamilton? Desobediência. Foi para cima do alemão, que ensaiou defesa heróica. Estaria Vettel preparado para vencer de forma diferente, pela primeira vez acossado decisivamente e, ainda assim, mantendo a ponta?
Não. Hamilton tomou-lhe a primeira posição. Talvez menos por sua bravura indômita. Pois ele a tem, ô se tem. Mas eventualmente mais pela artificialidade de pneus que se desmancham como paçoquinha Amor. Ou pela ação algo covarde da asa móvel que anula a vantagem de quem vai à frente (ainda que a ultrapassagem definitiva, a cena de ação máxima, sobre Vettel, tenha sido feita no miolo, e não na zona permitida para o uso da engenhoca). Bravo, aguerrido, indomável, obstinado, inconsequente, lágrimas de emoção ao final. Hamilton foi tudo isso no GP da China de 2011. E a Fórmula 1 atual talvez seja mais roteiro de cinema que competição.
Friday, April 15, 2011
"Eu me adoro cantando"
Jogando baralho com amigos, ela cantarola, ajeita cartas na mão, joga a cabeça pra trás, ouve o som da própria voz em um aparelho de som ao fundo, exclama "ah, eu me adoro cantando", e gargalha. A personagem é Nana Caymmi, o filme, Rio Sonata. Fui vê-lo na quarta-feira passada, em uma sessão especial do Reserva Cultural, provavelmente meu cinema preferido em São Paulo, ao lado do Cine Livraria Cultura, dos poucos que restam com alma, identidade.
Eu não sabia nada sobre o documentário, mas a simples referência a Nana Caymmi me fez vencer um monstruoso congestionamento na cidade (por conta do último show do U2?) e me proporcionou uma das noites mais memoráveis dos últimos tempos. Nana e seu irmão Dori Caymmi estavam lá. E também meu querido Zuza Homem de Mello, que me apresentou ao som de Nana há 28 anos, quando ela lançou o extraordinário álbum "Voz e Suor", que contava apenas com o piano de César Camargo Mariano e a voz de Nana.
O filme foi produzido pelo suíço George Gachot (não consegui descobrir se ele tem algum parentesco com o piloto Bertrand Gachot). Aqueles do copo meio vazio diriam "que pena, precisa vir um estrangeiro para produzir um filme sobre uma cantora como Nana Caymmi". Os do copo meio cheio - incluindo-me entre eles - prefeririam o benefício do olhar estrangeiro, distanciado, capaz de enquadrar Nana em moldura feita de percepções, não de estereótipos.
Porque o estereótipo, o senso comum, a visão estreita tendem a pintar Nana como cantora sofisticada, de elite, difícil. A visão ampliada de Gachot levou à tela uma cantora rigorosa com suas escolhas e, sobretudo, consigo mesma(singela, Nana em dado momento revela que é difícil cantar músicas como "Ponta de Areia" e "João Valentão", e fica evidente que a dificuldade está menos nas músicas e mais no tom desafiador que ela e seus maestros se impõem). Rigor à parte, Nana revela-se realizada em seu ofício, exercendo a profissão de cantar com um hedonismo que transparece em vários trechos do filme, como o "eu me adoro cantando" do animado carteado.
Quando o letreiro anunciou o final do filme, fui tomada de certa decepção e até exclamei: "mas já?". Eu assistiria e ouviria aquele documentário por muito mais tempo. A música de Nana seria suficiente para justificar esse apego, mas a beleza do filme também há de ser destacada. Gachot foi ao ponto: contextualizou Nana em um Rio - sua terra natal - nublado, sombrio, melancólico. O tom de sua voz de lamento, o lamento dos olhares e gestos simples das pessoas retratadas no filme. Porteiros, crianças brincando no subúrbio, donas de casa, camelôs. A Nana de Gachot não é sofisticada, blasé, intangível, difícil.
Sem ser linear, e sem se preocupar em ser documental, o filme vai reconstituindo a história de Nana, mostrando cenas do seu cotidiano, mesclando-as com imagens do passado. A diva que se apresenta ao lado de Tom Jobim no instante seguinte é uma mulher de quase 70 anos à procura dos "óculos para longe", encontrados depois de certo esforço na bolsa enorme. A cantora alçada à popularidade em anos recentes, graças a temas de novelas, ganha depoimentos de gente de várias tribos - do ex-marido Gilberto Gil ao Tremendão; de Milton Nascimento a Mart´nália. E vai falando sobre cantar e amar e sobre cantar o amor, definindo-se uma cantora de Bossa Nova que ninguém nunca assim reconheceu (Milton decifrou-a: na Bossa Nova, cantava-se baixinho, e Nana tem esse vozeirão...). A diva refere-se ao irmão Dori como um de seus compositores preferidos, e o chama de Dorivalzinho, transportando para a tela uma intimidade familiar que não nos pertence, mas que enche o filme de uma ternura que nada tem a ver com a cantora sofisticada que sempre se pintou.
Em uma das sequências mais divertidas do documentário, no que parecem ser os bastidores de um show, Nana, Miúcha e Maria Bethânia improvisam sobre uma canção de Dorival. Bethânia, gestual dramático, altivo, comandante, lança o primeiro verso, dá o tom. Miúcha embala, quase tiete entre as duas prima donas. Nana apodera-se da batuta, baixa o tom da canção, gestual maternal e firme, recoloca em seu lugar a moreninha da sandália do pompom grená da canção de seu pai. Uma brincadeira, quase um duelo de vozes, ou de estilos. Perdoe-me, mana, Nana ganhou.
E o pai - a origem - é quem vem encerrar o filme, em uma sequência bela, inesquecível, recontando a história de "Acalanto", a canção de ninar que fez para Nana, a diva que casou-se cedo, foi para a Venezuela, teve três filhos, separou-se, venceu festival, casou-se com Gil sem nunca olhar para a Tropicália ("não entendi aquilo até hoje, se alguém quiser me explicar..."), e trilhou sua carreira baseada em um princípio básico - o prazer de cantar. Simples assim.
Se eu tivesse essa voz, Nana, eu também iria me adorar cantando.
Sunday, April 10, 2011
Paradoxo
Não esperem de mim análises que terminem com "a corrida foi chata". Já viram aqueles adesivos que propagam a ideia de que um mau dia no surfe é melhor que um bom dia no escritório? Pois para mim funciona assim: um dia com corrida sempre vai ser melhor que um dia sem corrida, seja a corrida como for. Porque, insisto, a corrida da Malásia pode ter sido chata para brasileiros, espanhóis e britânicos. Mas, para os alemães, foi uma corrida fantástica, como fantásticas eram as provas que Ayrton Senna liderava de ponta a ponta. Chatas para os franceses, adoráveis para os brasileiros.
Se nosso automobilismo não foi capaz de produzir um novo campeão nos últimos vinte anos, a culpa provavelmente é menos da F1 e mais da gestão do automobilismo no Brasil. É certo que a FIA esforçou-se por criar regras bizarras que tornaram a categoria por vezes risível, outras ininteligível, outras simplesmente idiota. Mas pilotos continuaram ganhando corridas e campeonatos enquanto isso, e o fato de não serem brasileiros não pode diminuir seus méritos, até por se darem bem na barafunda esquizofrência das mudanças de regras.
Sebastian Vettel provavelmente será bicampeão do mundo, conquistando o título de maneira muito mais tranquila do que o fez em 2010. É admirável ver conjuntos vencedores de piloto e máquina, como foram tantos na história da F1. Só para ficar nos mais recentes: Button e a Brawn, Alonso e a Renault, Schumacher e a Ferrari. É o state of the art em termos de desenvolvimento tecnológico e perícia. Vettel tem uma receita de vitória que leva um dia para a marinada terminar de dar o tempero. Começa no sábado, com a pole. Termina no domingo, depois de liderar a corrida inteira. Fácil é achar que isto é simples. Vê-lo extenuado após a corrida dá uma medida do esforço que é cozinhar esse boi em fogo lento. Mas, desculpe-me jovem alemãozinho, ainda estou esperando sua grande corrida. Porque, mesmo enaltecendo sua capacidade de tirar tudo do carro nas situações-limite, gostamos do embate, da disputa, da refrega. De ultrapassagens, em resumo.
E por mais que a organização da F1 tenha tentado criar condições para mais ultrapassagens, lá na frente não está sendo nada útil. Vettel não precisou ultrapassar ninguém neste ano, ainda. Largou lá na frente e sumiu. No máximo, negociou com retardatários. Não é testemunho para o funcionamento da asa móvel. Nem o KERS da Red Bull, que parece ser o grande - senão único - calcanhar de Aquiles da equipe austríaca está lhe fazendo falta. Vai altivo, soberano lá na frente. Nossa sanha por disputa nos faz desejar um escorregão que seja do alemão e de seu boi voador. Quem sabe assim, acossado pela desvantagem, Vettel faça a corrida que espero e que, de fato, não lhe fez falta nenhuma do ponto de vista prático até agora.
Mas, a despeito do espetacular e modorrento domínio de Vettel, a F1 atual vive uma espécie de paradoxo em relação ao ano passado. Em 2010, a alternância na ponta da tabela à primeira vista poderia sugerir um campeonato eletrizante. E era, porém formado de corridas "chatas". Em 2011, graças principalmente à necessidade de mais trocas de pneus e à ação da asa traseira móvel, tivemos duas corridas movimentadas. OK. Não chegarei ao ponto de dizer "eletrizantes". Mas corridas inegavelmente movimentadas, que provavelmente resultarão em um campeonato "chato".
Para nós. Não na Alemanha.
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