Como água e óleo, petistas e tucanos, corintianos e palmeirenses, Montecchios e Capulettos, desde a decisão do Conselho Mundial da FIA, que mais ou menos puniu a McLaren, assim nos dividimos, os amantes de automobilismo. Os que consideraram o veredicto uma injustiça e os que o acharam normal.
Estou entre os primeiros, lembrando a frase que já escrevi aqui e no GPTotal: Alonso e Hamilton não disputam o campeonato a pé, mas a bordo de carros da McLaren, a equipe considerada culpada no caso de espionagem. No calor da discussão – saudável e bendita discussão, um dos sustentáculos da democracia – algumas idéias muito complexas e interessantes brotaram.
Duas delas, particularmente, me levaram à reflexão. A primeira, saída da boca do tricampeão Jackie Stewart, sir Jackie, que já mereceria minha admiração mesmo que não fosse o monumental piloto que foi, mas apenas por ser criador de frases geniais. Sir Jackie disse que o caso todo era problema interno da Fórmula 1, que deveria ser discutido entre quatro paredes, sob pena de levar toda a categoria de roldão.
Sir Jackie, com todo o respeito, shame on you! Que vergonha, Mr. Stewart...
Mas não vou julgá-lo, compreendo o ex-piloto como um homem de outros tempos, de uma Fórmula 1 de outros tempos. Longínquas eras nas quais quatro ou cinco chefes de equipe se reuniam e davam as cartas. O que acertassem entre eles, correto ou amoral, ficava entre eles, os demais acatavam porque sabiam que aquele centro de poder falava pelo bem dos negócios da categoria, e a nós, devotados amantes das corridas, sobravam as manobras, os pegas, as ultrapassagens.
Só o que Sir Jackie não parece levar em conta é que esse tempo acabou. A Fórmula 1 achou por bem crescer à estatura de um gigante corporativo. Como tal, ofereceu-se para seus pares da mesma envergadura – as grandes empresas globalizadas – como um parceiro de admirável potencial. E passou a receber recursos financeiros em volumes nunca antes vistos no esporte a motor, como se um dique de incontáveis hectolitros de água despejasse seu conteúdo por ali. Montadoras, sim, mas não só. Bancos, empresas de telefonia, seguradoras, empresas de bebidas. Todas com olhos enormes – ainda que algumas orientais – para o desmedido poder de divulgação da Fórmula 1.
A categoria não cansa de apregoar que se tornou “profissional” e quanto a isso não pairam dúvidas. Não dá, Sir Jackie, para ser profissional, globalizada, social e ambientalmente responsável e continuar decidindo ações e resolvendo problemas entre quatro paredes. Isso é um choque conceitual inconciliável com algo muito caro a esses gigantes corporativos que a Fórmula 1 atraiu, o conceito de Compliance.
Quem trabalha em certas empresas sabe do que se trata. Compliance é a obediência a leis e regras. Uma empresa que adota essa postura preza por vários conceitos: a transparência, o combate à corrupção em todas as suas formas, o repúdio a toda espécie de preconceito etc.
Empresa, hoje em dia, para estar na Bolsa de Nova York, por exemplo, é obrigada a manter um canal de denúncia anônima para acolher relatos de conduta inadequada. E não é entre quatro paredes que se resolve isso.
Nos últimos anos, não foram incomuns os casos de empresas enredadas em condutas impróprias que se viram obrigadas a corrigir publicamente tais erros, muitas vezes até cortando na carne da própria diretoria, demitindo presidentes, CEOs e todo o alto escalão.
É com essa realidade corporativa que a Fórmula foi se meter, Sir Jackie. Ganharam, vocês aí, muito dinheiro. Tudo tem preço. E o senhor pode ter certeza de que a alta direção da Mercedes Benz está fula da vida com esse arranhão monstruoso no nome da empresa.
A segunda idéia que me chamou a atenção foi a do hábito consolidado de se trocarem informações na Fórmula 1. Essa muita gente comentou. Concordo que é natural trocar idéias, eventualmente soprar um segredinho ao colega ou mesmo inocentemente comentar uma solução que se torna o pulo do gato para algum problema. Mas não acho nada normal que um sujeito, descontente na empresa, mordido pelo despeito de ter sido preterido a outro, despache mais de 700 páginas de informação para um amigo de uma empresa rival.
Foi o que Nigel Stepney fez. Isso não é uma troca de informações. No mundo corporativo, institucionalizou-se a prática do chamado “benchmarking”. Uma empresa visita a outra, oficialmente, e busca informações sobre alguma prática bem sucedida. Claro que isso não impede a troca informal de dados, nem de eventuais práticas ilícitas de fornecimento de segredos. Mas, baseadas no conceito de cumprimento a leis e regras, o tal Compliance, essas empresas: primeiro, exigem de seus funcionários o conhecimento e a assinatura em um documento em que se comprometem a andar na linha e, segundo, combatem atitudes inadequadas exemplarmente.
O que Stepney fez na Ferrari, e por isso foi demitido, nessas empresas globais é combatido no nascedouro, em um esforço de “atrair, contratar e reter os melhores profissionais”. No mundo empresarial de hoje, ser bom profissional já não é só ter as melhores credenciais técnicas. A conduta é igualmente valorizada. Por isso, para empresas atreladas a esse tipo de preceito, o episódio todo foi um descalabro: a McLaren deu o péssimo exemplo de ter um funcionário que recebeu informações sigilosas, mas a Ferrari não sai totalmente como vítima nessa história, ao manter em um cargo de alta responsabilidade um homem capaz literalmente de vendê-la.
Depois, volto para falar sobre outra questão polêmica, sobre a punição aos pilotos da McLaren.