De uma obra de ficção, extraímos um texto de rara beleza, que descreve o quotidiano abnegado de um militante clandestino, no Portugal do fascismo. O autor, que usava o pseudónimo de Manuel Tiago, foi um grande dirigente político português, nascido em 1913 e falecido precisamente há 10 anos, em 2005:
Fora o último encontro. Agora, tratava-se de regressar a casa. Às 10 da noite, vendo-se na estrada livre e escura, acomodou-se melhor no selim, apressou o pedalar e ouviu com prazer o chiar dos pneus no asfalto molhado.
(…) Só quando chegou a subida das oliveiras teve a noção da própria fadiga. Não foi além do primeiro marco. As pernas recusavam-se, tinha o corpo alagado em suor e respirava fundo, como se o ar pudesse ir desalojar-lhe do peito a angústia crescente.
Tendo andado mais de cem quilómetros de bicicleta contra o vento e aguentado algumas cargas de água, as batatas que comera ao meio-dia estavam moídas e esmoídas e o organismo cansado pedia novo auxílio. “Tenho de comer alguma coisa”, pensou. E lembrou-se que dali por légua e meia encontraria ainda certamente aberta aquela pequena venda do homem curioso. Ao cimo da ladeira, embalou e deixou correr.
A aragem fresca e húmida fustigava-lhe rosto e pescoço e entrava-lhe pelos punhos, braços acima, revigorando o corpo fatigado. Mais um pouco, comeria um quarto de pão com o mais que houvesse e o resto seguiria melhor.
A venda estava fechada. Na rua escura e silenciosa da aldeia não se enxergava vivalma. Vaz viu então na sua frente todo o longo percurso até casa (…) Viu as aldeias, os casais, as matas, as pontes. E, sentindo a lassidão do corpo e a crescente vontade de se deitar e de se cobrir, lembrou-se do rosto indignado de um camarada médico discordando do ritmo de trabalho nos últimos dois anos: “Andais a matar-vos!”
(…) Todo o cansaço lhe tombava nos olhos. O médico não tinha razão. Há muitas formas de morrer. Via-o como se fosse hoje. Parecia zangado. Depois sorria. Hã?!
A roda resvalou. Procurou ainda segurar-se, mas uma força invencível o atirou pelo ar de encontro à terra, enquanto a bicicleta, dando cambalhota estranha, se ia enrolar na valeta. O farolim apagou-se. Na fundura da noite, em que só muito ao longe se via um salpico de luzes, de novo ouviu o coaxar das rãs, indolente e repousante.
O dínamo funcionava. Ajeitou um ombro dorido, endireitou o guiador e seguiu um bocado a pé, batendo ruidosamente com as botas a espantar o sono.
(…) Quando, já passada a meia-noite, chegou a uma comprida ponte que separava as duas metades de uma aldeia e imaginou a íngreme subida que tinha pela frente, dobrou-se-lhe o cansaço, o peito apertado numa tenaz. Se tudo corresse bem, não chegaria a casa antes das 3 horas.
(…) Depois viria aquela recta de três árvores, e a curva de areia, e o bocado plano com casita de onde uma vez uma miudinha lhe dissera adeus, e a rampa encurvada e enganadora cuja inclinação é muito maior do que parece, e mais a grande serpentina da estrada cortando com largueza o planalto, e depois a pequena aldeia, primeiro sinal de vida após três quilómetros de deserto, e de novo subir, subir, subir até ao alto dos moinhos.
Quando ali chegava e sentia vindo do Norte o bafo frio da noite afagar-lhe a pele suada, costumava pensar: “Estou aqui, estou em casa”. E era com novas forças e nova alegria que se lançava a mais uma hora e meia de caminhada, mais trinta quilómetros de estrada dura e difícil.
Agora faltava ainda muito para “estar em casa”. Ainda algumas luzes tímidas da aldeia junto à ponte se viam abaixo, muito abaixo, como enterradas na massa informe da noite. Adivinhava lá no fundo o rasto sinuoso do ribeiro e as encostas despidas olhando-se por cima das curvas do vale.
Parou um instante. Nem vento, nem chuva, nem uma voz humana, nem um grito de ave, nada perturbava o belo e trágico silêncio da noite. Mas, ao chegar ao muro branco, bateu-lhe em cheio nos ouvidos o cantar distante dos moinhos: Uuu… Uuu… Uuu…
Com que alegria recebeu aquele anúncio do alto. Não era só a antecipação do momento em que teria vencido a grande subida. Era também uma companhia amistosa no descampado. Sabia bem que aquele canto, umas vezes ténue e amortecido pelas encostas que se interpunham, outras vezes ousado e aberto como se toda a atmosfera fosse sua, umas vezes melancólico e fugitivo, outras ameaçador e exaltado, e cada vez mais próximo, mais sentido, mais arrebatador, não o abandonaria até chegar lá acima.
Apesar do cansaço, da fome, do sono que voltava e da fatigante escuridão, sentia-se embalado pela canção estranha e pensava que só por isso valeria a pena passar por ali a horas mortas.
Ó Portugal! Como és belo, na diversidade acolhedora da tua paisagem, na pureza e nos caprichos da tua atmosfera, na melancólica bondade da tua gente! Ó Portugal, país querido! Sairás do longo pesadelo, sairás dele, decerto. O povo acorda e luta.
(...) Na noite, os moinhos cantavam. Um cheiro doce a erva e a terra molhada andava na negrura do ar. Arfando, Vaz caminhava sempre, num passo certo e arrastado, e as pálpebras pesavam mais e mais. Ia acordado ou adormecido?
Álvaro Cunhal, “Até amanhã camaradas”