terça-feira, 28 de junho de 2022

XLI Encontro da ALDRABA - "A Real Fábrica do Gelo e a Serra de Montejunto", Cadaval, sáb. 3 junho 2023



 








O nosso quadragésimo primeiro Encontro temático esteve para se realizar em julho de 2022, mas teve de ser adiado dois dias antes, pela emergência florestal verificada, que impediu quaisquer atividades públicas na Serra, como medida de prevenção contra os incêndios.

A ALDRABA deixou para agora a concretização desta atividade, e vai proporcionar-nos, assim se espera, o conhecimento direto de "uma construção única, um prazer intemporal"...

É assim caracterizada a Real Fábrica do Gelo, ou Fábrica de Neve da Serra de Montejunto, situada na parte cimeira da serra, no concelho do Cadaval.

Esperam por nós os competentes guias do Centro Interpretativo Ambiental, para uma visita de uma hora a esta edificação singular, que data de 1741 e que funcionou até 1885, produzindo gelo natural, armazenado durante o inverno e transportado no verão (em carroças até ao Carregado e depois em barcaças pelo Tejo) para Lisboa, destinado aos sorvetes na casa real e em alguns cafés da Baixa - como o centenário Martinho da Arcada...

O encontro vai ter o seu início às 10h00, no Centro Interpretativo, que fica no cimo da Serra, aonde se acede por estrada alcatroada muito bem sinalizada, a cerca de 60 km de distância de Lisboa. Acessos rodoviários sugeridos: pela autoestrada A1, até ao Carregado, ou até Aveiras de Cima, passando-se depois por Alenquer ou pelo Cadaval, respetivamente.

Durante a manhã, teremos uma breve palestra no Auditório do Centro e a visita propriamente dita à Fábrica do Gelo. De seguida, visitaremos o Santuário de N. Srª das Neves (local de uma importante romaria anual) e as ruínas do Convento dominicano do séc. XIII, acompanhados pelo respetivo zelador.

Findo esse período da manhã, desceremos até à localidade de Pragança, onde seremos recebidos pela nossa amiga Raquel Marques, presidente da Sociedade Filarmónica 1º Dezembro, fundada em 1882, que se mantém em pleno funcionamento, e que nos dará a conhecer as suas atuais atividades.

É na Sociedade Filarmónica de Pragança que teremos o nosso almoço, preparado e servido pelos ativistas dessa coletividade, e que constará de uma ementa integrada, ao preço único de 15 euros, incluindo entradas, sopa de legumes, prato principal (carne à portuguesa ou chanfana), bebidas (águas, sumos ou vinhos), sobremesa (pudim ou salada de frutas) e café.

Pelas 16h00, teremos uma interação com o CRASM - Centro de Recuperação de Animais Selvagens de Montejunto, na aldeia da Tojeira. Recebidos pela nossa amiga Filomena Barros, que nos apresentará em detalhe o trabalho que ali desenvolvem de proteção do património natural, o que incluirá, provavelmente, a libertação ao vivo de uma ave selvagem já recuperada pela instituição.

Para finalizar, pelas 17h30, teremos na aldeia do Vilar a visita a um moinho tradicional da Serra, devidamente mantido pelo seu proprietário Miguel Luís.

Estima-se o final do encontro para cerca das 18h30.

Todos os que desejarem participar deverão transmiti-lo, telefonicamente ou por mail, para o Nuno Silveira (TM 962916005, nunoroquesilveira@gmail.com), para a Ana Isabel Veiga (TM 932260334, anaisa1640@gmail.com) ou para a própria Aldraba (aldraba@gmail.com), o mais tardar até 4ª feira, 31 de maio.

JAF


segunda-feira, 20 de junho de 2022

13ª Rota da Aldraba: "Da arquitetura do Estado Novo ao Bloco das Águas Livres", sábado, 25 junho 2022, 11 horas













Este evento, organizado pelo Fórum Cidadania Lisboa no âmbito do centenário do Nuno Teotónio Pereira, é temático, inspirado em trabalhos do Nuno sobre a arquitetura no tempo de Salazar, nomeadamente “duas comunicações (…), a primeira em colaboração com o arquiteto José Manuel Fernandes ao Colóquio sobre o Fascismo em 1980 (A Regra do Jogo) e a segunda a um outro já chamado significativamente sobre o Estado Novo, alguns anos mais tarde (Editorial Fragmentos, 1987)”.

No artigo sobre esta questão escrito para o jornal Público em 1993, a interrogação de partida era: “Foi o salazarismo um fascismo?” Através do exame da Arquitetura então produzida, a resposta está condensada no último parágrafo: “Hoje, passado que vai meio século, pode e deve fazer-se uma reavaliação do que foi a Arquitetura do Estado Novo, ressaltando daí alguns aspetos positivos, como a solidez dos processos construtivos, com largo emprego de alvenarias de pedra e cantarias, materiais que resistem bem ao tempo, por oposição ao betão armado, bandeira dos modernistas, que se julgava então perene e que hoje apresenta com frequência preocupantes patologias de envelhecimento. Mas do que não pode haver dúvida é de que a instrumentalização da Arquitetura, através de métodos administrativos limitando a liberdade de expressão dos projetistas, revela uma faceta claramente totalitária, prova de que existiu uma componente fascista hegemónica, pelo menos num longo período, no regime de Salazar.

No sábado, 25 de junho, teremos a oportunidade de saber mais, durante o percurso guiado pelo arquiteto José Manuel Fernandes. O encontro está marcado para as 11h, no topo sul da Rua Dom João V em Lisboa-Amoreiras (nº 2). 

Não é necessária inscrição, basta aparecer.

JAF

domingo, 12 de junho de 2022

Ouro sobre azul


 






Durante a manhã e tarde do dia 11 de junho, a Aldraba esteve na Rota Memorial do Convento, organizada pela Fundação José Saramago no contexto do centenário do nosso Nobel da literatura, com a colaboração das Câmaras Municipais de Lisboa, de Loures e de Mafra.

Cerca de 40 participantes (entre os quais um pequeno número de associados da Aldraba) estiveram neste estimulante percurso, que começou com uma pequena visita à exposição biográfica de Saramago na sede da Fundação, e se desenvolveu depois com paragens evocativas no rio Trancão, em Sto Antão do Tojal, em Cheleiros e em Mafra, sempre orientados sabiamente pela Idália Tiago e sua equipa, da Fundação, e por várias competentes técnicas dos Municípios de Loures e de Mafra.

A expressão popular que dá título a este post relaciona-se com três belos azulejos que visitámos nas escadarias monumentais do Palácio dos Arcebispos, em Santo Antão do Tojal, nos quais aparecem representados a cor dourada (o que é muito raro!) bordados em vestuário de luxo de personagens masculinos, no habitual fundo azul dos azulejos portugueses.

JAF

domingo, 5 de junho de 2022

O Divino Espírito Santo nos Açores


 










Um interessantíssimo artigo etnográfico do escritor e jornalista Joel Neto, publicado na Revista do Expresso, e do qual reproduzimos a parte mais importante, neste dia em que o calendário cristão assinala o dia de Pentecostes:

(…) O culto do Espírito Santo — ou Espírito da Verdade, ou Paráclito, “aquele que consola” — nasceu da devoção de Gioacchino da Fiore, um abade cisterciense e filósofo místico calabrês que, ainda no século XII, se empenhou em oferecer à História um fio condutor capaz de manter viva a esperança num plano redentor para a existência. O seu entendimento profético e milenarista do mundo, assente na unidade das três pessoas da Santíssima Trindade e na ideia de um império do Espírito Santo após o cataclismo que a desordem anunciava, pareceu de imediato dar resposta às grandes inquietações da época. Vivia-se um tempo conturbado, com o crescimento do Islão e as cruzadas, os cismas eclesiásticos e os conflitos entre o papado e o sacro império: impunha-se à cristandade ser capaz de contrapor a estabilidade à contingência.

Roma não gostou, e, em 1256, o núcleo central da doutrina foi condenado pelo Papa Alexandre IV. Mas isso não a impediu de chegar a Portugal 200 anos depois, viva ainda, pelas mãos de Isabel de Aragão, a quem viriam a chamar rainha santa. Ritual de celebração e partilha por ocasião das primeiras colheitas, ganharia expressão em várias regiões do continente — como Tomar ou Alenquer —, o que faz dele uma das mais antigas expressões do catolicismo popular português. Mas nos Açores tornou-se mais do que um culto. Tornou-se (e permanece) um modo de vida — uma visão do mundo.

Favoreceu-o a circunstância de os povoadores do arquipélago provirem de múltiplas origens, do norte ao sul de Portugal, e ainda da Flandres e outras regiões europeias. Não existia uma fé unificadora, e o divino estava recheado de crenças e preceitos convenientes a uma sociedade em construção a partir de fiapos de gente e de terra. Ademais, a hostilidade do meio e a angústia do isolamento desafiavam não só à prática da cooperação, mas à da alegria, que o Espírito Santo sempre permitiu opor à vocação quaresmal, penitencial — em suma, ao medo —, da liturgia clássica.

Já o cronista Gaspar Frutuoso, escrevendo 150 anos após o início do povoamento, menciona a prática do culto nas ilhas, indicando ser comum a todas elas. O primeiro hospital dos Açores, criado por iniciativa da Santa Casa da Misericórdia de Angra do Heroísmo (1498), recebeu a designação de Hospital de Santo Espírito, que mantém. Entretanto, no século XVI, a existência de Irmandades do Divino Espírito Santo era generalizada. E, quando as autoridades civis avançaram com a criação de um grande hospital em Ponta Delgada também, quase 500 anos depois do de Angra (1990), nem tentaram inventar: chamaram-lhe Hospital do Divino Espírito Santo.

A ortodoxia torceu o nariz durante séculos. Iconoclasta, o Espírito Santo, glorificado no Novo mas também no Antigo Testamento (até no Talmude e na Midrash), era muitas vezes a porta de entrada dos cristãos-novos judeus no cristianismo, que entretanto iam contaminando com uma série de práticas ditas pagãs, e apenas permitidas por uma devoção com a latitude daquela. Mas, sobretudo, era perigoso.

Porque as irmandades sob os seus auspícios nunca tiveram coluna vertebral. Eram e são organizações inteiramente horizontais, sem obediência a qualquer entidade superior terrena. Todas as relações que ali se estabeleciam, então como hoje, resultavam em exclusivo da dinâmica gerada de modo espontâneo entre os seus membros. Por outras palavras, dispensavam (e dispensam) a intermediação de um sacerdote, sugerindo que cada fiel podia ser o eixo — cada fiel era o eixo. E não haveria muitas ameaças evidentemente maiores do que essa para a pirâmide da Igreja.

A perseguição não tardou. O Concílio de Trento (1545) e a contrarreforma tridentina ilegitimaram o culto, reduzindo a sua bênção ao rito romano, às misericórdias e a pouco mais. Por todo o mundo latino, a Inquisição reprimiu a participação popular na organização dos festejos, sob o pretexto da depuração de manifestações profanas, e o anátema prolongou-se no tempo, com diferentes formas e intensidades, vigorando, em geral, até ao Concílio Vaticano II (1962-1965).

Mas os Açores ficavam longe, e o Tribunal do Santo Ofício, apesar da representação local, só chegou a fazer-lhes três visitas solenes, castigando uns quantos comportamentos, mas apenas no domínio dos costumes. O catolicismo local permaneceu muito tempo nas mãos dos franciscanos e da Ordem de Cristo, que não se opunham à devoção do divino — e, depois de um período de submissão à diocese do Funchal, passou a dispor do seu próprio bispado, tendo além disso como padroeiro o rei de Portugal, mais eficaz na fiscalização das matérias temporais do que das espirituais. No tamanho, nos recursos ou na extensão caritativa, mas com frequência nos três ao mesmo tempo, o universo do divino nunca mais parou de crescer.

Hoje, Roma não só já não o persegue, mas parece reconhecer a sua nova acuidade, num tempo de pulverização das referências. João Paulo II atribuiu ao “sopro do Espírito Santo” o “momento de graça” do Concílio Vaticano II, fonte de uma “nova primavera para a Igreja”. Há três anos, na celebração do Pentecostes, Francisco apresentou-o como o “antídoto para o frenesim contemporâneo”, e ainda há meses, em audiência geral, lhe chamou a “memória de Deus em nós”. “Este é o momento”, desafiou, “de dizer ao Espírito Santo: ‘Vem, vem, Espírito Santo, aquece o meu coração.’”

Presentemente, o paráclito é celebrado em todo o catolicismo e, inclusive, na generalidade do cristianismo. Anglicanos e metodistas dão-lhe particular ênfase, inclusive nos países anglófonos, e em nenhuma das congregações — vide as comemorações do Whitsun — os festejos se dispensam de uma dimensão lúdica e profana. O mesmo acontece em Portugal, onde, além de Tomar e Alenquer, a devoção é praticada com fervor, por exemplo, na região de Pombal. A aldeia do Penedo, em Sintra, recuperou pouco antes da pandemia festejos do divino interrompidos há mais de uma década. E na Meia Via, por sinal o palco da adoração à santa da Ladeira, o Espírito Santo não só é festejado com paixão, como preside a várias obras de caridade

Muitos dos investigadores, académicos e curiosos que, a nível nacional, se têm interessado pelo fenómeno não são propriamente pneumatologistas, antes aproximando-se dele por razões esotéricas, se não ocultistas. É frequente vê-lo cruzado com outros sinais do milenarismo joaquimista, do messianismo judaico às chamadas profecias portuguesas, incluindo o ‘milagre de Ourique’, as “Trovas de Bandarra” ou o próprio ‘Quinto Império’, proposto pelo Pe. António Vieira (e professado por Pessoa). Como, aliás, acontece noutros lugares do mundo, em que a devoção se dilui por entre lendas e misticismos que, não constituindo já cristianismo, tentam responder às mesmas urgências.

Nos Açores também se tem aberto espaço a possibilidades semelhantes. Investigadores dedicados à putativa presença humana nas ilhas antes da chegada dos portugueses — ou mesmo à redescoberta da Atlântida perdida desde Homero — nunca deixam de invocar o triunfo do Espírito Santo como demonstração da diferente genética do povo ilhéu. Mas o que impressiona, verdadeiramente, é o culto regular do divino, que volta a atingir o seu zénite este fim de semana, depois de dois anos de condicionamentos radicais — e que na maior parte dos lugares se prolongará ao longo de nove dias (entre o Pentecostes e a segunda-feira da Trindade), mas em alguns casos durará até ao início do outono.

No centro das celebrações estarão os célebres impérios, os pitorescos templos das irmandades. E só os números já são impressionantes. São Miguel, a ilha maior, tem apenas seis, tantos quanto as Flores. O Corvo, minúsculo, tem um só e Santa Maria, no extremo leste do arquipélago, dois, de resto atípicos. Mas a pequena Graciosa já tem 15, correspondentes a outras tantas irmandades. São Jorge tem 17. O Pico, 30. O Faial, 38. E a Terceira, com a (apesar de tudo) módica população de 55 mil habitantes, o fabuloso número de 82 — todos diferentes e irrepetíveis, na arquitetura e nas cores, mas representantes de uma só coleção a que se esforçam por pertencer.

Não há duas irmandades que funcionem exatamente da mesma maneira, mas no essencial cada uma delas assenta num número de irmãos inscritos por motu proprio e aceites por consenso, todos iguais em direitos e deveres; no sorteio que estes promovem para a seleção de imperadores e/ou mordomos, cargos rotativos a cujos titulares cabe a organização das festas a cada temporada (e, quanto a hierarquias, é quanto basta); e em todo o lado são manipulados e ostentados os mesmos objetos de celebração, em especial a coroa, o ceptro, o orbe, a bandeira e as varas.

A sequência ritualística passa pelas Alumiações, misto de veneração das insígnias do divino e de convívio popular, em que se canta o ‘Pezinho’ ao mordomo e às pessoas que fazem oferendas ao Espírito Santo. Inclui o sacrifício do gado com vista aos bodos que, no domingo, os mordomos oferecerão aos convidados. Passa pelos cortejos e pelas procissões, algumas das quais vão a casa do mordomo buscar a coroa, o ceptro e o orbe, depois transportados para a igreja — onde se realizarão as coroações — por jovens vestidas de branco (e portanto puras, inocentes, como o rei do mundo foi uma criança). E tem como pontos altos diferentes refeições, dádivas e distribuições de alimentos às populações — nomeadamente (dantes) o milho e o trigo, como é próprio das culturas agrárias, e (hoje) o pão, a carne e o vinho, as sopas e a alcatra, os bolos de massa sovada, as rosquilhas e/ou o alfenim, tantos deles misturando sabores acolhidos de diferentes geografias e civilizações, e frequentemente o doce com o salgado.

Toda a gente trabalha de borla (como toda a gente come de borla, porque o espírito verga a matéria), e poucas vezes a dedicação não é maior do que aquela que dá à profissão. E isto sem falar nas touradas à corda, manifestação mais do que profana que, na Terceira (e, em menor escala, em São Jorge e na Graciosa), obteve um lugar nos festejos. Chegam a realizar-se quase três centenas por ano, entre maio e outubro, e a maior parte integra as festas do bodo. O touro não é ferido, antes fere — há gerações que os vídeos com marradas fazem as delícias dos turistas —, e o gáudio tem tal significado que, proibidas as corridas em função da covid-19, se temeu que a economia terceirense afundasse duas vezes mais fundo do que as outras.

Como poderia um culto desta têmpera, e para mais desta compleição, não moldar a personalidade de todo um povo? Os açorianos são o Espírito Santo, mais até do que os vulcões, os terramotos e os vendavais. E isso é pelo menos tão evidente — talvez mais — nas terras para onde emigraram como nas ilhas. Estacionadas no arquipélago, as naus do Brasil e da Índia não tardavam a integrar o culto, apressando-se a eleger um imperador para a festa de Pentecostes. No século XVIII, em pleno fluxo migratório dos Açores para o Brasil, já a fé se praticava no Rio de Janeiro, na Baía e nas zonas de colonização açoriana de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Pernambuco. No século XIX, foi levada não só para o Massachusetts e a Califórnia, mas para a Bermuda e o Havai.

Hoje, continua a existir em quase todos esses lugares. E, porque um povo é sempre mais igual a si mesmo à distância, mantém neles tradições que até já se praticam menos nas ilhas. Ainda não há muitos anos, de passagem pelo Rhode Island, estive a ouvir os desabafos de uma jovem luso-americana, emigrante de segunda geração, que voou para as ilhas para participar na festa do império do pai e, instituída mordoma, deu por si indignada com o facto de os colegas de comissão não terem programado uma briança. “Nem sequer sabiam enfeitar um bezerro. Ainda tive que lhes ensinar!”, repetia, no seu sotaque desconcertante e encantador.

E a verdade é que, antes e depois de ser religiosa, a maneira como o Espírito Santo define os açorianos é política. Em especial os do dito grupo central, e exemplarmente os da Terceira. Basta olhar para a famosa gravura de Jan Huygen van Linschoten, flamengo nascido na ilha, e que ainda no século XVI (1595) desenhou a primeira carta geográfica dela: já lá estão os cerrados, a quadrícula verde e negra que continua a marcar a paisagem, denunciando uma vocação precoce para o emparcelamento e a partilha da propriedade. Basta lembrar a ‘justiça da noite’, a tradição miliciana formada no século XIX (e que durou até depois do 25 de Abril, já centrada nos costumes) pelos camponeses que de dia erguiam os muros com que os latifundiários reclamavam a posse dos baldios, de acordo com o decreto régio, e de noite vestiam capuzes para os irem derrubar, pois era ali que iam buscar lenha ou levar o gado doméstico a pastar.

Terceirenses, mas também (em diferentes graus) graciosenses, jorgenses, picoenses, faialenses: os açorianos da região central do arquipélago, para se caracterizarem genericamente, são horizontais, libertários, irresistivelmente subversivos, e também por isso bastante passionais, amiúde vaidosos, quase sempre dados às artes. Thomas More teria gostado de conhecê-los. Não há família em que não nasça um músico, um escritor ou um artista de palco. Quase toda a gente pratica algum género de abstração, ou pelo menos de reordenação do mundo. E nada se diz, no falar da Terceira (supremo exemplo, mais uma vez), sem uma nota de emoção, quando não de chantagem.

É o culto do indivíduo por excelência — contra qualquer género de reverência. E toda a gente “tem o direito”, sejam quais forem as circunstâncias. Há uns tempos, enquanto anfitrião de um evento literário em que recebia uma série de escritores de renome, tive de dirimir um burburinho na plateia provocado por uma senhora (e uma série de amigas) que havia imprimido poesias de amor numa chancela de autopublicação e também tinha o direito de dar uma entrevista. As histórias que guardo de como a iconoclastia local pode subverter a sentido das proporções, e por isso também coartar a mundividência, são incontáveis. (…)

Joel Neto, "As ilhas da utopia", in Expresso, 3/6/2022


JAF

quinta-feira, 2 de junho de 2022

12.ª Rota da Aldraba: "Rota Memorial do Convento", sáb.11junho, a partir das 9h30

 


A ALDRABA junta-se à Fundação José Saramago na realização deste evento em 11 de junho próximo, que consistirá num passeio guiado a locais de referência nos concelhos de Lisboa, Loures e Mafra, evocativos de momentos importantes do romance do Nobel português da literatura.

A oportunidade e o interesse patrimonial deste percurso foram recentemente destacados no artigo de João Coelho publicado no n.º 31 da nossa revista.

A partida para a viagem terá lugar às 9h30 do dia 11.6.2022, sábado, à frente da sede da Fundação (Casa dos Bicos), no Campo das Cebolas em Lisboa. O percurso é feito de autocarro, e é gratuito. O almoço será em Santo Antão do Tojal. O regresso está previsto para as 18h30, no local da partida.

Os interessados em participar devem inscrever-se através do endereço eletrónico secretaria@josesaramago.org com indicação de nome e de um número de telefone de contacto.

Convidamos todos os associados e amigos a aproveitarem esta bela oportunidade e a inscreverem-se sem demora, pois a lotação do autocarro é limitada.

JAF (gravura de Roque Gameiro, de 1917)