Um interessantíssimo artigo etnográfico do escritor e jornalista Joel Neto, publicado na Revista do Expresso, e do qual reproduzimos a parte mais importante, neste dia em que o calendário cristão assinala o dia de Pentecostes:
(…) O culto do Espírito Santo — ou
Espírito da Verdade, ou Paráclito, “aquele que consola” — nasceu da devoção de
Gioacchino da Fiore, um abade cisterciense e filósofo místico calabrês que,
ainda no século XII, se empenhou em oferecer à História um fio condutor capaz
de manter viva a esperança num plano redentor para a existência. O seu
entendimento profético e milenarista do mundo, assente na unidade das três
pessoas da Santíssima Trindade e na ideia de um império do Espírito Santo após
o cataclismo que a desordem anunciava, pareceu de imediato dar resposta às
grandes inquietações da época. Vivia-se um tempo conturbado, com o crescimento
do Islão e as cruzadas, os cismas eclesiásticos e os conflitos entre o papado e
o sacro império: impunha-se à cristandade ser capaz de contrapor a estabilidade
à contingência.
Roma não gostou, e, em 1256, o núcleo
central da doutrina foi condenado pelo Papa Alexandre IV. Mas isso não a
impediu de chegar a Portugal 200 anos depois, viva ainda, pelas mãos de Isabel
de Aragão, a quem viriam a chamar rainha santa. Ritual de celebração e partilha
por ocasião das primeiras colheitas, ganharia expressão em várias regiões do
continente — como Tomar ou Alenquer —, o que faz dele uma das mais antigas
expressões do catolicismo popular português. Mas nos Açores tornou-se mais do
que um culto. Tornou-se (e permanece) um modo de vida — uma visão do mundo.
Favoreceu-o a circunstância de os
povoadores do arquipélago provirem de múltiplas origens, do norte ao sul de
Portugal, e ainda da Flandres e outras regiões europeias. Não existia uma fé
unificadora, e o divino estava recheado de crenças e preceitos convenientes a
uma sociedade em construção a partir de fiapos de gente e de terra. Ademais, a
hostilidade do meio e a angústia do isolamento desafiavam não só à prática da
cooperação, mas à da alegria, que o Espírito Santo sempre permitiu opor à
vocação quaresmal, penitencial — em suma, ao medo —, da liturgia clássica.
Já o cronista Gaspar Frutuoso, escrevendo
150 anos após o início do povoamento, menciona a prática do culto nas ilhas,
indicando ser comum a todas elas. O primeiro hospital dos Açores, criado por
iniciativa da Santa Casa da Misericórdia de Angra do Heroísmo (1498), recebeu a
designação de Hospital de Santo Espírito, que mantém. Entretanto, no século
XVI, a existência de Irmandades do Divino Espírito Santo era generalizada. E,
quando as autoridades civis avançaram com a criação de um grande hospital em
Ponta Delgada também, quase 500 anos depois do de Angra (1990), nem tentaram
inventar: chamaram-lhe Hospital do Divino Espírito Santo.
A ortodoxia torceu o nariz durante
séculos. Iconoclasta, o Espírito Santo, glorificado no Novo mas também no
Antigo Testamento (até no Talmude e na Midrash), era muitas vezes a porta de
entrada dos cristãos-novos judeus no cristianismo, que entretanto iam
contaminando com uma série de práticas ditas pagãs, e apenas permitidas por uma
devoção com a latitude daquela. Mas, sobretudo, era perigoso.
Porque as irmandades sob os seus auspícios
nunca tiveram coluna vertebral. Eram e são organizações inteiramente
horizontais, sem obediência a qualquer entidade superior terrena. Todas as
relações que ali se estabeleciam, então como hoje, resultavam em exclusivo da
dinâmica gerada de modo espontâneo entre os seus membros. Por outras palavras,
dispensavam (e dispensam) a intermediação de um sacerdote, sugerindo que cada
fiel podia ser o eixo — cada fiel era o eixo. E não haveria muitas ameaças
evidentemente maiores do que essa para a pirâmide da Igreja.
A perseguição não tardou. O Concílio de
Trento (1545) e a contrarreforma tridentina ilegitimaram o culto, reduzindo a
sua bênção ao rito romano, às misericórdias e a pouco mais. Por todo o mundo
latino, a Inquisição reprimiu a participação popular na organização dos
festejos, sob o pretexto da depuração de manifestações profanas, e o anátema
prolongou-se no tempo, com diferentes formas e intensidades, vigorando, em
geral, até ao Concílio Vaticano II (1962-1965).
Mas os Açores ficavam longe, e o Tribunal
do Santo Ofício, apesar da representação local, só chegou a fazer-lhes três
visitas solenes, castigando uns quantos comportamentos, mas apenas no domínio
dos costumes. O catolicismo local permaneceu muito tempo nas mãos dos
franciscanos e da Ordem de Cristo, que não se opunham à devoção do divino — e,
depois de um período de submissão à diocese do Funchal, passou a dispor do seu
próprio bispado, tendo além disso como padroeiro o rei de Portugal, mais eficaz
na fiscalização das matérias temporais do que das espirituais. No tamanho, nos
recursos ou na extensão caritativa, mas com frequência nos três ao mesmo tempo,
o universo do divino nunca mais parou de crescer.
Hoje, Roma não só já não o persegue, mas
parece reconhecer a sua nova acuidade, num tempo de pulverização das
referências. João Paulo II atribuiu ao “sopro do Espírito Santo” o “momento de
graça” do Concílio Vaticano II, fonte de uma “nova primavera para a Igreja”. Há
três anos, na celebração do Pentecostes, Francisco apresentou-o como o
“antídoto para o frenesim contemporâneo”, e ainda há meses, em audiência geral,
lhe chamou a “memória de Deus em nós”. “Este é o momento”, desafiou, “de dizer
ao Espírito Santo: ‘Vem, vem, Espírito Santo, aquece o meu coração.’”
Presentemente, o paráclito é celebrado em
todo o catolicismo e, inclusive, na generalidade do cristianismo. Anglicanos e
metodistas dão-lhe particular ênfase, inclusive nos países anglófonos, e em
nenhuma das congregações — vide as comemorações do Whitsun — os festejos se
dispensam de uma dimensão lúdica e profana. O mesmo acontece em Portugal, onde,
além de Tomar e Alenquer, a devoção é praticada com fervor, por exemplo, na
região de Pombal. A aldeia do Penedo, em Sintra, recuperou pouco antes da
pandemia festejos do divino interrompidos há mais de uma década. E na Meia Via,
por sinal o palco da adoração à santa da Ladeira, o Espírito Santo não só é
festejado com paixão, como preside a várias obras de caridade
Muitos dos investigadores, académicos e
curiosos que, a nível nacional, se têm interessado pelo fenómeno não são
propriamente pneumatologistas, antes aproximando-se dele por razões esotéricas,
se não ocultistas. É frequente vê-lo cruzado com outros sinais do milenarismo
joaquimista, do messianismo judaico às chamadas profecias portuguesas,
incluindo o ‘milagre de Ourique’, as “Trovas de Bandarra” ou o próprio ‘Quinto
Império’, proposto pelo Pe. António Vieira (e professado por Pessoa). Como,
aliás, acontece noutros lugares do mundo, em que a devoção se dilui por entre
lendas e misticismos que, não constituindo já cristianismo, tentam responder às
mesmas urgências.
Nos Açores também se tem aberto espaço a
possibilidades semelhantes. Investigadores dedicados à putativa presença humana
nas ilhas antes da chegada dos portugueses — ou mesmo à redescoberta da
Atlântida perdida desde Homero — nunca deixam de invocar o triunfo do Espírito
Santo como demonstração da diferente genética do povo ilhéu. Mas o que impressiona,
verdadeiramente, é o culto regular do divino, que volta a atingir o seu zénite
este fim de semana, depois de dois anos de condicionamentos radicais — e que na
maior parte dos lugares se prolongará ao longo de nove dias (entre o
Pentecostes e a segunda-feira da Trindade), mas em alguns casos durará até ao
início do outono.
No centro das celebrações estarão os
célebres impérios, os pitorescos templos das irmandades. E só os números já são
impressionantes. São Miguel, a ilha maior, tem apenas seis, tantos quanto as
Flores. O Corvo, minúsculo, tem um só e Santa Maria, no extremo leste do
arquipélago, dois, de resto atípicos. Mas a pequena Graciosa já tem 15,
correspondentes a outras tantas irmandades. São Jorge tem 17. O Pico, 30. O
Faial, 38. E a Terceira, com a (apesar de tudo) módica população de 55 mil
habitantes, o fabuloso número de 82 — todos diferentes e irrepetíveis, na
arquitetura e nas cores, mas representantes de uma só coleção a que se esforçam
por pertencer.
Não há duas irmandades que funcionem
exatamente da mesma maneira, mas no essencial cada uma delas assenta num número
de irmãos inscritos por motu proprio
e aceites por consenso, todos iguais em direitos e deveres; no sorteio que
estes promovem para a seleção de imperadores e/ou mordomos, cargos rotativos a
cujos titulares cabe a organização das festas a cada temporada (e, quanto a
hierarquias, é quanto basta); e em todo o lado são manipulados e ostentados os
mesmos objetos de celebração, em especial a coroa, o ceptro, o orbe, a bandeira
e as varas.
A sequência ritualística passa pelas
Alumiações, misto de veneração das insígnias do divino e de convívio popular,
em que se canta o ‘Pezinho’ ao mordomo e às pessoas que fazem oferendas ao
Espírito Santo. Inclui o sacrifício do gado com vista aos bodos que, no
domingo, os mordomos oferecerão aos convidados. Passa pelos cortejos e pelas
procissões, algumas das quais vão a casa do mordomo buscar a coroa, o ceptro e
o orbe, depois transportados para a igreja — onde se realizarão as coroações —
por jovens vestidas de branco (e portanto puras, inocentes, como o rei do mundo
foi uma criança). E tem como pontos altos diferentes refeições, dádivas e
distribuições de alimentos às populações — nomeadamente (dantes) o milho e o
trigo, como é próprio das culturas agrárias, e (hoje) o pão, a carne e o vinho,
as sopas e a alcatra, os bolos de massa sovada, as rosquilhas e/ou o alfenim,
tantos deles misturando sabores acolhidos de diferentes geografias e
civilizações, e frequentemente o doce com o salgado.
Toda a gente trabalha de borla (como toda
a gente come de borla, porque o espírito verga a matéria), e poucas vezes a
dedicação não é maior do que aquela que dá à profissão. E isto sem falar nas
touradas à corda, manifestação mais do que profana que, na Terceira (e, em
menor escala, em São Jorge e na Graciosa), obteve um lugar nos festejos. Chegam
a realizar-se quase três centenas por ano, entre maio e outubro, e a maior
parte integra as festas do bodo. O touro não é ferido, antes fere — há gerações
que os vídeos com marradas fazem as delícias dos turistas —, e o gáudio tem tal
significado que, proibidas as corridas em função da covid-19, se temeu que a
economia terceirense afundasse duas vezes mais fundo do que as outras.
Como poderia um culto desta têmpera, e
para mais desta compleição, não moldar a personalidade de todo um povo? Os
açorianos são o Espírito Santo, mais até do que os vulcões, os terramotos e os
vendavais. E isso é pelo menos tão evidente — talvez mais — nas terras para
onde emigraram como nas ilhas. Estacionadas no arquipélago, as naus do Brasil e
da Índia não tardavam a integrar o culto, apressando-se a eleger um imperador
para a festa de Pentecostes. No século XVIII, em pleno fluxo migratório dos
Açores para o Brasil, já a fé se praticava no Rio de Janeiro, na Baía e nas
zonas de colonização açoriana de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e
Pernambuco. No século XIX, foi levada não só para o Massachusetts e a
Califórnia, mas para a Bermuda e o Havai.
Hoje, continua a existir em quase todos
esses lugares. E, porque um povo é sempre mais igual a si mesmo à distância,
mantém neles tradições que até já se praticam menos nas ilhas. Ainda não há
muitos anos, de passagem pelo Rhode Island, estive a ouvir os desabafos de uma
jovem luso-americana, emigrante de segunda geração, que voou para as ilhas para
participar na festa do império do pai e, instituída mordoma, deu por si
indignada com o facto de os colegas de comissão não terem programado uma
briança. “Nem sequer sabiam enfeitar um bezerro. Ainda tive que lhes ensinar!”,
repetia, no seu sotaque desconcertante e encantador.
E a verdade é que, antes e depois de ser
religiosa, a maneira como o Espírito Santo define os açorianos é política. Em
especial os do dito grupo central, e exemplarmente os da Terceira. Basta olhar
para a famosa gravura de Jan Huygen van Linschoten, flamengo nascido na ilha, e
que ainda no século XVI (1595) desenhou a primeira carta geográfica dela: já lá
estão os cerrados, a quadrícula verde e negra que continua a marcar a paisagem,
denunciando uma vocação precoce para o emparcelamento e a partilha da
propriedade. Basta lembrar a ‘justiça da noite’, a tradição miliciana formada
no século XIX (e que durou até depois do 25 de Abril, já centrada nos costumes)
pelos camponeses que de dia erguiam os muros com que os latifundiários
reclamavam a posse dos baldios, de acordo com o decreto régio, e de noite
vestiam capuzes para os irem derrubar, pois era ali que iam buscar lenha ou
levar o gado doméstico a pastar.
Terceirenses, mas também (em diferentes
graus) graciosenses, jorgenses, picoenses, faialenses: os açorianos da região
central do arquipélago, para se caracterizarem genericamente, são horizontais,
libertários, irresistivelmente subversivos, e também por isso bastante
passionais, amiúde vaidosos, quase sempre dados às artes. Thomas More teria
gostado de conhecê-los. Não há família em que não nasça um músico, um escritor
ou um artista de palco. Quase toda a gente pratica algum género de abstração,
ou pelo menos de reordenação do mundo. E nada se diz, no falar da Terceira
(supremo exemplo, mais uma vez), sem uma nota de emoção, quando não de
chantagem.
É o culto do indivíduo por excelência —
contra qualquer género de reverência. E toda a gente “tem o direito”, sejam
quais forem as circunstâncias. Há uns tempos, enquanto anfitrião de um evento
literário em que recebia uma série de escritores de renome, tive de dirimir um
burburinho na plateia provocado por uma senhora (e uma série de amigas) que
havia imprimido poesias de amor numa chancela de autopublicação e também tinha
o direito de dar uma entrevista. As histórias que guardo de como a iconoclastia
local pode subverter a sentido das proporções, e por isso também coartar a
mundividência, são incontáveis. (…)
Joel Neto, "As ilhas da utopia", in Expresso, 3/6/2022
JAF