domingo, 28 de fevereiro de 2010

Os "bagdás" da minha infância



Quem viveu os anos cinquenta do séc. XX em Alvalade, bairro de Lisboa que recentemente se construíra, certamente estará recordado da modesta pastelaria de nome Bagdá (assim mesmo se escrevia, ainda que se referisse e homenageasse a cidade de Bagdade) aberta ao público na Rua Acácio de Paiva, lá ao cimo do lado esquerdo, antes de se chegar à Rua Luís Augusto Palmeirim.
A grande atracção era uns quadrados, que o Sr. Gonçalves cortava de um enorme tabuleiro normalmente mantido num frigorifico, sendo que aí, por cima de uma base de pão de ló, havia um belíssimo creme de chocolate (que mais tarde viria a ser designado vulgarmente de "mousse"), coberto esse mesmo por uma camada de pão de ló fininha ainda barrada levemente de um pouco do dito creme.

Custava esse bolo quinze tostões, um bom bocado mais caro do que os outros vulgares, que se adquiriam por doze tostões. Mas valia a pena. Eu aguardava por vezes que o Sr. Gonçalves vendesse todo o conteúdo de um tabuleiro e repimpava-me, com sua autorização, a rapar os copiosos restos que lhe ficavam agarrados.

Depois da minha criteriosa “limpeza”, a Srª. D. Lina tratava do resto, silenciosamente. Ela era o contrário do marido, trabalhando incansavelmente, limitando-se a isso mesmo. Ele era o artista que, ainda que com alguma modéstia, gostava de explicar as voltas a que a sua obra de arte obrigava.

A pequenez da loja e a simplicidade do local não estavam de acordo com o sucesso merecido, de modo que o casal passou para a Avenida da Igreja à esquina com a Rua José Duro, do lado direito de quem sobe. E o nome passou a ser de “Nova Bagdá”. Era uma pastelaria/café, já com dimensão, que, albergando um bom conjunto de mesas, logo passou a ser o nosso local de estudo e... de deleite: os “Bagdás” , como o Sr. Gonçalves lhes chamava, eram atracção, não só nossa, mas de cada vez maior clientela. Julgo que depois este tipo de bolo se vulgarizou como “Garibaldi".

Texto de Nuno Roque da Silveira

(excerto do artigo "Grandes artistas do efémero", que vai sair no nº 8 do boletim "ALDRABA", actualmente na tipografia)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

"Chove a cântaros"


Neste dias de invernia, em que a chuva e os temporais fustigam o país e trazem a tragédia e a devastação, vem a propósito assinalar alguma coisa da sabedoria e dos ditos populares acerca da chuva.
Expressões como "chove a cântaros", "chove a potes", "chovem picaretas", "chovem calhaus", ou "chove que Deus a dá", dão conta do sentimento de pequenez das pessoas do nosso povo perante um fenómeno que as ultrapassa e as atemoriza...
Os brasileiros falam em "chover canivetes", os ingleses em "raining cats and dogs"...
É sempre um estado de impotência, por vezes de horror, perante manifestações da Natureza que os conhecimentos científicos de certa época não conseguem prever, ou, quando conseguem prever, quando não se dispõe de meios técnicos para os contrariar. E, quase sempre, é sobre os mais pobres que recaiem as consequências destrutivas da meteorologia. Daí, a perplexidade e a revolta, mas quase nunca a resignação. Quem prega a resignação e o "castigo", geralmente, são os que estão comprometidos com as causas sociais da pobreza.
Mais frases sábias do nosso povo que falam em chuva, mas relativas já a outras situações: "tirar o cavalinho da chuva", "chuva de molha-tolos", "isto anda a pedir chuva", "está aqui está a chover". E muitas mais, que seria interessante que os leitores do blogue também partilhassem aqui.
JAF (foto reproduzida de "Amorizade")

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A "Aldraba" no "Café Portugal"



A revista electrónica CAFÉ PORTUGAL, dedicada aos "prazeres de viagem e de passeio", e que é animada pelo conceituado jornalista Rui Dias José, quis distinguir a Associação Aldraba numa das suas últimas edições.

A repórter Sara Pelicano entrevistou Luís Filipe Maçarico e José Alberto Franco, e daí resultou a crónica que aqui reproduzimos, com a devida vénia:


«Trus, trus», portas e aldrabas também contam histórias

Pormenores discretos, as portas e aldrabas contam histórias, enchem memórias, são uma feição do nosso património pouco referenciada. Uma realidade que a Associação Aldraba quer proteger e dar a conhecer. O caderno temático «Aldrabas e Batentes de Porta - Uma reflexão sobre o património imperceptível» revela algumas curiosidades sobre portas, aldrabas e batentes, tal como a simbologia de cada um destes elementos que ainda são preservados com orgulho em algumas localidades do país.

«A figura da aldraba sempre me fascinou: no Montijo e em Vila Franca de Xira lembro-me de ficar a olhar para as poucas aldrabas que por lá vi entre os meus seis e os meus quinze anos. Isto porque já havia campainhas, mas o uso da aldraba é assim como uma viagem no tempo. Com a aldraba o mundo era mais quente e tudo era mais próximo nas relações ente as pessoas. Hoje as pessoas comunicam por telemóvel ou por e-mail mas nunca se sabe onde está a pessoa com quem estamos a falar. Com a aldraba a gente sabia». Este excerto é parte do depoimento do poeta e jornalista José do Carmo Francisco no caderno temático «Aldrabas e Batentes de Porta - Uma reflexão sobre o património imperceptível», de Luís Filipe Maçarico. O caderno temático foi editado pela Aldraba – Associação do Espaço e Património Popular que visa precisamente salvaguardar as memórias de pessoas como José do Carmo Francisco, que na meninice utilizavam um engenho de ferro pendurado na porta para anunciar a sua chegada.

Recuperemos também nós algumas dessas memórias e revelações do saber fazer dos ferreiros. As portas e as aldrabas estão carregadas de simbologias. Luís Filipe Maçarico escreve que a porta é a «passagem do espaço público para o privado, a porta protege e guarda intimidades, que desvenda, quando se abre, traduzindo hospitalidade». O autor refere-se à porta de madeira, um material que requer arte para talhar. Neste ponto entra na conversa outro interlocutor, o presidente da Aldraba. José Alberto Franco faz referência a uma localidade, Miranda do Douro, onde as portas de madeira deram lugar ao alumínio pela «vergonha» que a velhinha porta de madeira pode transmitir, revelando épocas menos abastadas. Os dois intervenientes consideram que esta «vergonha» só poderá desaparecer quando as pessoas conhecerem o seu património, por isso a Aldraba tem promovido diversas iniciativas que visam divulgar esse património imperceptível e os espaço onde se insere.

Continuemos então a explorar o caderno temático. Aldraba é uma palavra com origem no árabe que significa «trinco», «ferrolho». Existem de diversas formas e cada uma delas acarreta consigo um significado. Luís Filipe Maçarico conta-nos algumas dessas curiosidades. «A mão está relacionada com a força protectora, quer do poder mundano, quer do poder místico. Invoca energia e a actividade. As flores evocam o efémero, a graciosidade, a harmonia e a paz. Muito outros há para explorar, mas qualquer um deles dá indicações do estatuto social da casa».

A Associação Aldraba foi constituída em 2005 e conta hoje 130 associados. Para José Alberto Franco, o património deve ser experienciado e é isso que a associação tem vindo a promover. Há mesmo um Roteiro das Aldrabas em Montemor-o-Novo, no Alentejo. As autarquias, associações locais e colectividades devem ter aqui um papel importante da difusão deste conhecimento. Mas é neste ponto que entra uma questão levantada por Luís Filipe Maçarico: «Quantos autarcas, construtores civis, arquitec tos e moradores conhecem a história social, cultural e simbólica dos artefactos, quando decidem e autorizam a morte da aldraba ou do batente em troca da aparição da porta de alumínio que descaracteriza aldeias, vilas, bairros e cidades?»

Já citámos em cima o exemplo de Miranda de Douro, onde portas de madeiras e aldrabas deram lugar ao frio e impessoal alumínio. Também de bons exemplos se faz este país, como sublinha José Alberto Franco. «Há municípios, como Faro, Loulé, Beja, em que houve a preocupação de não se perder a porta de madeira e dar lugar a portas de alumínio. Em Beja, o anterior autarca deu mesmo incentivos a quem quisesse recuperar casas mantendo as traças características».

Estes dois representantes da Aldraba confessaram ao Café Portugal que acreditam que este património tem ainda um lugar identitário no futuro, «que deixa memórias de sons, formas, cheiros, saberes e costumes», como reforça Luís Filipe Maçarico. Nesta sequência deixam uma questão: «Numa altura de desemprego e ‘novas oportunidades’ porque não formar pessoas nestes saberes artesanais, como é o ofício de ferreiro ou marceneiro? Há mercado para estes saberes se existirem produtos à venda com gosto».

O património imperceptível faz-se ainda com cataventos e platibandas, muito comuns no Algarve. As platibandas são pequenos muros erguidos na continuação da fachada, já junto ao tecto.

O caderno temático pode ser adquirido através da associação Aldraba.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Em Boticas – S. Cristóvão nas águas do ribeiro

Boticas, é lá muito a norte, em Trás-os-Montes, no reino maravilhoso, mar de pedras, como o descrevia Torga. Terras de Barroso com costumes e tradições estudadas a fundo pelo padre Fontes na sua Etnografia Transmontana: o comunitarismo rural, os fornos do povo, o culto dos animais, com relevo especial para o boi, o forte boi barrosão, o boi do povo, as chegas de bois e tantos outros componentes de uma cultura popular singular.

Em Boticas, na própria cidade, mantém-se uma tradição ligada ao culto de S. Cristóvão, santo que, apesar de na sequência da contra-reforma e após o Concílio de Trento ter tido o culto banido por ser visto como superstição, continua a ser venerado principalmente devido aos seus poderes de boa condução dos viajantes, mas também por ser considerado como interceptador das cheias dos rios.

Em meados de Agosto realiza-se em Boticas a Festa de Nossa Senhora da Livração. Para além das missas e da procissão, da chega de bois e do fogo de artifício, esta festa tem uma particularidade que a diferencia de quase todas as outras que, naquele mês, sucedem de norte a sul de Portugal.

Boticas é atravessada pelo Ribeiro do Fontão e é nas suas águas que, por altura da Festa, é colocada uma gigantesca imagem de S. Cristóvão que, dizem as gentes da terra, dará protecção aos caminhantes. A imagem que faz parte do acervo do Museu Rural, tem efectivamente uma enorme dimensão, fazendo jus à lenda, que fala de um gigante com vários côvados de altura.

Anote-se que, na região, não encontramos qualquer espécie de tradição com estas características, nem festas ou romarias que o tenham como figura central. Da sua colocação em águas de rio só temos conhecimento do que se verificava em Braga, por altura das Festas de S. João, onde a imagem era posta nas águas do Rio Este, muito embora S. Cristóvão seja venerado em muitos locais, com capelas ou imagens em igrejas geralmente situadas junto a cursos de água, como refere Ernesto Veiga de Oliveira em Festividades Cíclicas em Portugal.

Dizem-nos que a tradição data da primeira metade do século XIX, mas a colocação de imagens de santos nas águas dos rios é costume muito antigo, em geral associado a ritos propiciatórios, procurando desencadear ou conter fenómenos atmosféricos que condicionam a vida rural. Aliás podemos encontrar referências a essas tradições, como práticas proibidas, quer nas Ordenações do século XVI (Manelinas, Filipinas) quer nas Constituições dos Bispados ( por exemplo, nas de Évora- 1534). E as penas a que estavam sujeitos os prevaricadores não eram, de modo algum, suaves.

Consiglieri Pedroso e Adolfo Coelho, nos finais do século XIX, recolheram e analisaram toda esta documentação, valendo a pena uma consulta aos seus escritos sobre esta matéria. Encontraremos muitas práticas que nos dias de hoje estão totalmente afastadas do imaginário popular mas também muitas outras que ainda perduram, as mais das vezes ocultadas sob vestes religiosas, num processo de sincretismo que a igreja católica utilizou, desde sempre, como forma de controlar as manifestações populares que considerava como produtos da ignorância do povo ou como influência do demónio.

JMP (texto e fotografia)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Cadernos Temáticos na Sociedade da Língua Portuguesa




Uma vintena de amigos interessados nos temas da cultura popular acorreram à Sociedade da Língua Portuguesa, a esta 6ª sessão de apresentação do nº 1 dos Cadernos Temáticos da Aldraba.

Sessão viva e animada, que se desenvolveu em ricos comentários, desafios e complementos dos presentes.

Entre estes, o Dr. Adalberto Alves teve uma expressão de especial destaque, sublinhando a importância do trabalho da nossa associação e do autor desta publicação.

A presidente da SLP, Drª Elsa Rodrigues dos Santos, acolheu calorosamente a Aldraba e deixou abertas perspectivas para interessantes actividades conjuntas a desenvolver no futuro próximo.

Bem haja a Sociedade da Língua Portuguesa pelo apoio e pelo estímulo ao trabalho da Aldraba.

MEG (texto e fotografias)