Uma tarde fui com a mãe à loja do Anastácio comprar um corte de sarja, um carrinho de linhas e alguns botões. Tudo imaculadamente branco, como era obrigatório!
Depois fomos as duas a casa da costureira, a nossa vizinha da rua de trás, a Tainha. Ela e a minha mãe estiveram tempo sem fim a discutir o feitio mais na moda - se aberta à frente, se aberta atrás, com peitilho, sem peitilho, com pregas, com machos… mas para mim nada daquilo interessava.
A minha única reivindicação era que tivesse duas algibeiras, de preferência grandes, coisa que a mãe não queria, pois, dizia ela, só serviam para eu colocar lá as mais variadas porcarias e andarem sempre sujas. Mas, se não tivesse algibeiras, onde poria eu as lagartixas e os gafanhotos que haveria de apanhar no muro de pedras que havia a caminho da escola?
Ao fim de uns dias, depois de duas provas, ali estava ela, a minha primeira bata, com duas algibeiras onde caberiam os mais variados segredos, à espera da grande estreia na escola primária.
No dia 7 de Outubro, lá estava eu com o cabelo penteado a preceito, soquetes brancas rendadas, livros na pasta, a minha mão na mão da mãe, à espera de um mundo novo que se abriria ao entrar na escola.
A escola do Bairro ficava muito perto da minha casa. Duas ruas e menos de cinco minutos depois já se avistavam as casas do bairro municipal de Loulé, que emprestava o nome à escola. Lá dentro só meninas, todas de bata branca, muitas com um ar contente, como eu, e outras a chorar agarradas às saias das mães, que não queriam deixar como se elas fossem as boias de salvação num naufrágio iminente.
Entrei na sala e sentei-me muito direita na carteira que me foi indicada. A mãe tinha tido a esperança de que eu fosse diretamente para a 2ª classe pois já sabia ler e escrever e fazer contas mas, apesar do pedido, não conseguiu que a escola concordasse.
Eu não tinha considerado isso um problema até ao momento em que a professora deu as primeiras lições - as vogais - e mandou que todas nós preenchêssemos linhas e mais linhas de um caderno com aquelas letras. Despachei aquilo num instante para ver se havia mais coisas para aprender, mas a seguir veio o 1 e o 2 e mais linhas e linhas de uns e dois e três e de vogais e ditongos...
Para mim, que queria aprender coisas novas, que já lia livros da biblioteca, aquilo era uma verdadeira perda de tempo.
Um dia, à tarde, quando tocou a sineta, arrumei as minhas coisas e assim que cruzei o portão, informei a mãe da minha decisão:
- Mãe, já não quero vir para esta escola!
E à pergunta apreensiva da minha mãe “então filha?” respondi tudo o que me ia na alma: que eu já sabia ler e escrever, que tinha passado os últimos dias naquele trabalho horrível de alinhar “a,e,i,o,u” num caderno de duas linhas e que a professora não me tinha ensinado nada que eu não soubesse. E rematei com o mais importante, que só queria ir à escola quando fosse para aprender coisas novas.
Depois de me ouvir, a mãe explicou-me o inexplicável: que eu tinha de ir à escola, que não podia faltar mesmo que não fosse aprender nada de novo e que tinha de esperar que as outras meninas aprendessem o que eu já sabia para depois a professora ensinar novas matérias.
Ainda insisti, tentando mostrar como aquilo era disparatado. Mas a mãe respondia que não, que apesar de saber como eu estava aborrecida, não era assim que as coisas se tratavam…
“Se fossemos ricos e influentes, a escola teria agido de maneira diferente. Tinham-na matriculado no ano a seguir”, desabafava em surdina a minha mãe, contando o sucedido às vizinhas e dando exemplos de algumas histórias parecidas que tinham terminado com um final mais feliz.
Andei uns dias muito aborrecida, sem vontade nenhuma de ir à escola. Mas ao fim de algum tempo, os recreios começaram a compensar as tristezas. Assim que tocava a sineta, puxada por uma corda pela senhora Zezinha, a única contínua da escola, saíamos todas em fila e em silêncio para depois atirar ao vento aquela liberdade contada em minutos e aproveitá-la para ir brincar aos potes, às casinhas, à rolha, aos reis e às rainhas, à calha, às cinco pedrinhas, à “maneca”, como chamávamos ao jogo da macaca… ou para dançar danças de roda como a borboleta branca ou a triste viuvinha…
E para além do recreio, mesmo ao lado da escola, também havia um outro mundo novo por aprender:
O bairro com as suas casas todas iguais, encostadas umas às outras, com quintais de muros baixos e amoreiras onde me empoleirava para apanhar folhas para os bichos-da-seda;
O cerro da Cabecinha do Mestre, que tinha uma única casinha no alto da subida e onde o musgo para o presépio nascia nos valados, nas pedras e no chão e donde vínhamos com a alma mais verde e com as unhas pintadas de terra escura;
A olaria do vizinho João e o seu exército de chaminés rendilhadas, vasos, infusas e cântaros, que nasciam da melodia do chiar da roda, da dança rodopiante dos seus pés e do aconchego das suas mãos hábeis;
O largo da feira, o sítio onde acampavam famílias ciganas que influenciavam, com a sua chegada, os locais de brincadeira dentro do recreio. Nos dias em que tínhamos aqueles vizinhos, nenhuma menina se aproximava do muro daquele lado e partilhavam histórias e medos entre elas. Só eu ficava empoleirada, olhando para eles, sem achar que pudesse vir dali qualquer sinal de perigo, imaginando como seria bom viver assim, uns dias aqui, outros ali, brincando na terra, correndo ao sol com os cães, estendendo cordas de roupa como bandeiras ao vento, esquecendo o frio da noite com labaredas e música e cumprimentando o luar antes de adormecer. Em noites de sonhar ser livre como os ciganos, adormecia contando as estrelas para lá do teto do meu quarto.
Andar na escola, afinal, valia mesmo a pena!