quarta-feira, 8 de novembro de 2017



Festa das almas

Li, num dos jornais da cidade, que há quase um século no município de Ocara, a noventa e sete quilômetros de Fortaleza, nos dias 1 e 2 de novembro os moradores em vez de chorarem fazem a festa das almas. Começa com terço, depois vem a missa no cemitério e a noite é encerrada com um grande forró, na principal praça da cidade.    
A origem da festa remonta aos anos vinte, quando a prefeitura da cidade resolveu fazer, na véspera de finados, um leilão para construir o muro do cemitério. Terminado o leilão os moradores se reuniram na praça principal da cidade e comemoraram até a madrugada do dia dois de novembro, dia de finados. Daí em diante, virou tradição.
A leitura dessa pequena reportagem me lembrou a comemoração de finados, em Manaus, nos idos de trinta. Que eu me lembre a cidade só tinha um cemitério – São João, na Vila Municipal, hoje Adrianópolis. As famílias costumavam enfeitar a sepultura de seus mortos, com flores naturais e coroas de papel crepom. Era uma disputa. Qual seria a mais bonita? Não havia concurso. Só os comentários de boca a boca e os elogios nos jornais no dia seguinte.
A minha família não fugia a regra. Alguns parentes iam de manhã cedo, ornamentavam os túmulos e, a tarde, as famílias em peso se reuniam para a reza em conjunto: pai nossos, ave marias, salve rainhas e os dedos das mãos tateando as contas dos rosários. Se o defunto fosse recente havia algumas lágrimas, se não só cumprimentos dos amigos na ronda da solidariedade. Tudo isso sob o mormaço escaldante das tardes manauara. E ai de quem desejasse uma chuvinha para refrescar. Fico imaginando a chuva caindo, a tinta do papel crepom se desfazendo e o cemitério inteiro se transformando numa grande exposição de arte abstrata.
Mas o que queria contar mesmo é que eu e meu primo Oni éramos sempre escalados para a guarda dos túmulos depois de ornamentados. Triste com a escalação? Nem pensar. Felicíssimos. Recebíamos um almoço ao meio-dia e dinheiro para comer lanches e bebidas, quando tivéssemos sede. E parece que nunca tínhamos tanta fome e tanta sede como nesses dias. Não me lembro do que comíamos, mas do que bebíamos: garapa de cana, pega-pinto (ele), grosélia, ralarala – tudo. E se tivesse alguma pitanga sobrando também seria deglutida. É que as ruas do cemitério eram ladeadas com pés de pitanga. Creio que nunca nos divertíamos tanto. Com todos esses comes de bebes, essa era, com certeza, a nossa particular – Festa das Almas.

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