terça-feira, 19 de dezembro de 2017


Turista?

A casa onde nasci, ficava a beira do Igarapé de Manaus. Quando o rio Negro enchia muito o quintal virava uma piscina natural. Diziam. Nunca vi. Pois, com dias de nascido minha avó materna me levou para a fazenda Iracema, no Amatari, onde morava, e lá me criou até os oito anos de idade. A viagem foi de lancha e devia durar umas seis ou oito horas, rio Amazonas a baixo.
Quando voltei para Manaus, para estudar, a família não morava mais na casa da Rua Joaquim Nabuco, a beira do Igarapé, mas na Rua Epaminondas, longe do rio. Casa, na qual, sofri a minha adolescência. Parece que essas duas primeiras viagens marcaram muito a minha futura visão de mundo. Pois um dos passeios solitários que mais gostava de fazer era: visitar o “Roadway”, principalmente nos dias de chegadas ou partidas de navios.
No Ginásio, era apaixonado pelas aulas de geografia do professor Agnelo Bittencourt. Passei a gostar de mapas. A poesia de Branca Menescal de Vasconcelos me apresentou o mar. Ansiei por conhecê-lo. Até que um dia tomei um navio no norte (parodiando Caimy) e vim a Fortaleza, onde tinha parentes.  E conheci os verdes mares bravios... de Alencar. E entendi também que viajar era preciso.
Quando comecei a trabalhar pra valer, passava o ano inteiro juntando uns trocados para nas férias fazer uma viagem. Os meus colegas de trabalho, no Rio, diziam que eu era como os componentes das escolas de samba. Eles passavam o ano inteiro economizando para o carnaval, eu, para as viagens.
Assim, viajei o Brasil, de norte ao sul, de leste a oeste. Viajei, não, ainda viajo. Creio que não há no mundo país mais mutante que o Brasil. Cinco anos de ausência – e o lugar já não é o mesmo. Ainda que as cidades não mudem, creio que nunca se faz a mesma viagem. Cada viagem é uma nova viagem. Ninguém vê tudo. Principalmente nos lugares onde as estações são bem definidas.
Ganhei o título de turista. O que sempre me propus ser. Não o “Turista Aprendiz”, de Mário de Andrade, talvez, um turista apressado, tout court.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017


Da velhice
 Até os trinta, os homens pensam para a frente; dos quarenta em diante, começam a olhar para trás; até que um dia seus assuntos são exclusivamente – o passado.
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Não me importa ser chamado de velho, não quero que digam que sou antigo. Antigo é peça de museu. Eu não.
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Velho com alma de jovem – é aleijão. Comigo não, violão.
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A velhice não proporciona sabedoria a ninguém. Só é sábio o velho que já o era antes.
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O homem tem a idade que tem. Seja sábio, seja tolo. O velho, por ser homem, não foge a regra.
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Viver é como escalar um Aconcágua.  A cada degrau perdemos mais e mais oxigênio, sem possibilidade de reposição.
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A velhice é também uma questão de ponto de vista. Para o menino de cinco anos o rapaz de quinze já é “tio”, o de vinte e cinco já é “coroa” e o de trinta e cinco já é o “velho”.
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A vida é longa para aqueles que nada fizeram. Para quem tudo fez a vida é do seu próprio tamanho.
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Eu sei que é por higiene, mas me dá uma pena danada ver esses velhos muros gretados, cobertos de heras e musgos, pintados de novo. Parece esses velhos querendo disfarçar a idade, com os cabelos pintados de acaju.                    
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Ah! Esses velhos de cabelos pintados de preto preto, ressaltando o macerado da pele pontilhada de manchas senis, velhos “peruas”.            
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Envelhecendo vamos perdendo a memória. Vamos apagando a nossa própria história.
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Como os velhos não teem futuro, pensam no pretérito. Predicam com exemplos. Daí, os moços pensarem que eles estão sempre se tomando como paradigma. Simples erro de perspectiva. Quem viver, verá.
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Há velhos que usam da idade para obter privilégios. Mutatis mutandis, é o mesmo tráfico de influência dos políticos. Argh!
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Uma das compensações da velhice é que o velho pode dizer o que quiser. Se agradar é porque ele é sábio; se não agradar é – esclerose.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017



Festa das almas

Li, num dos jornais da cidade, que há quase um século no município de Ocara, a noventa e sete quilômetros de Fortaleza, nos dias 1 e 2 de novembro os moradores em vez de chorarem fazem a festa das almas. Começa com terço, depois vem a missa no cemitério e a noite é encerrada com um grande forró, na principal praça da cidade.    
A origem da festa remonta aos anos vinte, quando a prefeitura da cidade resolveu fazer, na véspera de finados, um leilão para construir o muro do cemitério. Terminado o leilão os moradores se reuniram na praça principal da cidade e comemoraram até a madrugada do dia dois de novembro, dia de finados. Daí em diante, virou tradição.
A leitura dessa pequena reportagem me lembrou a comemoração de finados, em Manaus, nos idos de trinta. Que eu me lembre a cidade só tinha um cemitério – São João, na Vila Municipal, hoje Adrianópolis. As famílias costumavam enfeitar a sepultura de seus mortos, com flores naturais e coroas de papel crepom. Era uma disputa. Qual seria a mais bonita? Não havia concurso. Só os comentários de boca a boca e os elogios nos jornais no dia seguinte.
A minha família não fugia a regra. Alguns parentes iam de manhã cedo, ornamentavam os túmulos e, a tarde, as famílias em peso se reuniam para a reza em conjunto: pai nossos, ave marias, salve rainhas e os dedos das mãos tateando as contas dos rosários. Se o defunto fosse recente havia algumas lágrimas, se não só cumprimentos dos amigos na ronda da solidariedade. Tudo isso sob o mormaço escaldante das tardes manauara. E ai de quem desejasse uma chuvinha para refrescar. Fico imaginando a chuva caindo, a tinta do papel crepom se desfazendo e o cemitério inteiro se transformando numa grande exposição de arte abstrata.
Mas o que queria contar mesmo é que eu e meu primo Oni éramos sempre escalados para a guarda dos túmulos depois de ornamentados. Triste com a escalação? Nem pensar. Felicíssimos. Recebíamos um almoço ao meio-dia e dinheiro para comer lanches e bebidas, quando tivéssemos sede. E parece que nunca tínhamos tanta fome e tanta sede como nesses dias. Não me lembro do que comíamos, mas do que bebíamos: garapa de cana, pega-pinto (ele), grosélia, ralarala – tudo. E se tivesse alguma pitanga sobrando também seria deglutida. É que as ruas do cemitério eram ladeadas com pés de pitanga. Creio que nunca nos divertíamos tanto. Com todos esses comes de bebes, essa era, com certeza, a nossa particular – Festa das Almas.

terça-feira, 24 de outubro de 2017



O livro de areia

Em 1960, fiz a minha primeira viagem internacional. Destino: Buenos Aires.  Motivo: trabalho. O tempo foi curto, mas nos pequenos intervalos visitei algumas livrarias  e me relacionei com um argentino, que gostava de literatura brasileira. E eu, sinceramente, tive que  confessar-lhe a minha ignorância da literatura argentina.  Ou melhor, da literatura latino-americana.
Foi então que no final da visita ele me presenteou com "El libro de arena", de Jorge Luis Borges. Autor que completamente desconhecido, para mim, e um dos gênios argentinos, segundo ele. E aqui,  tenho que confessar uma das minhas excentricidades em matéria a de leituras, é o seguinte: gosto de escritores objetivos. Claro na escrita, coerente na exposição do tema, linguagem simples. Mas há escritores difíceis que me atraem, como por exemplo, o mexicano, Octavio Paz, a inglesa, Virginia Woolf, a nossa Clarice ou mesmo Guimarães Rosa e naturalmente,  Jorge Luis Borges.
Com o meu portunhol li mal o livro de Borges, mas tempos depois saiu a tradução em português e o reli. E embora não entendendo quase nada, porém encantado com a escrita ia, aqui e ali sublinhando frases ou períodos inteiros como os que copio, agora:
- Papai sempre com suas brincadeiras contra a fé. Ontem à noite afirmou que Jesus era como os guachos, que não querem se comprometer, e que por isso pregava por parábolas.
- o que dizemos nem sempre se parece conosco.
- Por indecisão ou por negligência ou por outras razões, não me casei, e agora estou só. Não sofro pela solidão; já é bastante esforço alguém tolerar a si mesmo e as próprias manias.
- todos os grupos tendem a criar seu dialeto e seus ritos;
- Notei que as viagens de volta duram menos que as de ida,
- Disse a mim mesmo repetidas vezes que não existe outro enigma senão o tempo, essa infinita urdidura do ontem, do hoje, do futuro, do sempre e do nunca.
- “Quem olha para uma mulher a fim de cobiça-la, já cometeu adultério em seu coração”
- o desejo não é menos culpável que o ato,
- Não existem dois morros iguais, mas em qualquer lugar da Terra a planície é uma só.
- Os fatos... São meros pontos de partida para o  pensamento e a invenção.
- não é importante ler, mas reler.
- Quando quer, se mata. Dono de sua vida, o homem também o é de sua morte.
- Nunca pudemos nos evadir do aqui e do agora.
- toda viagem é espacial. Ir de um planeta a outro é como ir à chácara defronte. Quando entrou neste quarto, estava executando uma viagem espacial.
- um passaporte não modifica a índole de um homem.
- Disse-me que seu livro chamava O livro de areia, porque nem o livro nem a areia têm principio ou fim.
- Lembrei-me de ter lido que o melhor lugar para esconder uma folha é um bosque.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017



O lugar

No início da quarta década do século vinte, Manaus era uma pequena cidade/capital, com cento e poucos mil habitantes, situada a margem esquerda do rio Negro, a dezoito quilômetros de sua foz, onde com o Amazonas, formam  o  turístico  encontro das águas. Está a mais de mil  e  quinhentos  quilômetros do oceano Atlântico. Justo no coração da Amazônia Ocidental.
Como quase todas as cidades coloniais brasileiras, Manaus nasceu entre a cruz e a espada. Pois, os portugueses sentindo-se ameaçados por ingleses, holandeses e espanhóis mandaram erguer naquele lugar, em 1669, um forte, que denominaram de Forte de São José da Barra do Rio Negro. Ficava no lugar onde hoje se encontra o edifício da antiga Fazenda Pública.
Esse forte foi erguido sob a inspiração de Jesus, Maria e José. E num pequeno monte fronteiro, os carmelitas construíram uma capela para Nossa Senhora da Conceição, que mais tarde se tornou a padroeira da cidade. O lugar é o mesmo onde hoje se ergue a igreja Matriz. Ao redor destas construções, os portugueses reuniram alguns brancos e componentes das tribos dos barés, banibas, passés e manaós, iniciando assim o povoamento do lugar e a estirpe de nós os amazonenses.
Manaus fica a 3º 8’ 7’’ de latitude S e 60º 6’ 34’’ de longitude O de Greenwich. A uma altitude de 44m sobre o nível do mar. Na construção do Forte destacaram-se os nomes de Pedro da Costa Favela, Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho e Francisco da Mota Falcão. Todos portugueses. Manaus teve vários nomes: São José da Barra do Rio Negro, Fortaleza da Barra, Barra do Rio Negro, Lugar da Barra, Vila da Barra e algumas vezes, entre uns e outros, mas desde 1856, definitivamente – Manaus.
Pois, foi nessa pequena cidade/capital, que eu nasci as 9h20min do dia 18 de setembro de 1920, num sábado de final de verão. (Como se aqui tivesse outras estações!) E que, hoje, depois de ver várias etapas longe dela, comemoro noventa e sete anos de idade. São 65 anos de ausência física, mas noventa e sete de interior amazonidade. Creio que ninguém se ausenta do espaço em que sofreu a sua infância e adolescência. Assim, depois de todas essas errâncias fui e continuo a ser -- amazonense.
18/09/2017

quinta-feira, 7 de setembro de 2017



Cinema - uma dependência?

Jean-Paul Sartre, em seu livro de memórias, “As palavras”, diz que “os burgueses do século passado, jamais esqueceram de sua primeira noite no teatro”, mas ele desafiava “seus contemporâneos a citar a data de seu primeiro encontro com o cinema”. De minha parte, como bom burguês, isto é, morador de um burgo, é verdade. Não me lembro da data em que vi o primeiro filme, mas não lembro também da primeira peça. Sei qual foi o cinema e porque fui.
Foi, com certeza, na década de trinta. Ou mesmo no ano de l930. Aos dez anos de idade. No Cine Manaus. Dos padres salesianos. O cinema fazia parte de um conjunto de três edifícios num quarteirão rodeado de grades, com a frente para a rua Epaminondas: a Igreja de Dom Bosco, o Colégio e numa pequena elevação, o cinema. Era dirigido pelo famoso padre Agostinho Cabalero Martins (l883/l962). Moreno, baixinho, agitado, falando rápido e com sotaque espanholado. Vinha da aldeia de Avelar, Salamanca, Espanha, via Buenos Aires, onde formou-se em teologia e pedagogia. Chegou em Manaus em l921. Usava uma campainha para impor disciplina. Era um raivoso/manso. Muito popular na cidade e querido da meninada. Uma das suas formas de catequese era distribuir entradas a todo menino que, aluno ou não do seu colégio, fosse a missa de domingo na Igreja de Dom Bosco. Quem se habilitaria? Eu, é claro. Não era aluno, mas ganhava entradas porque me tornei um dos mais assíduos frequentadores da eucaristia dominical salesiana.
Os programas eram compostos de velhos filmes italianos, tragédias e dramalhões históricos. Para a garotada, as l4h, eram as comédias de Buster Keaton, o homem que nunca ria, Harold Lloyd, com seus óculos arredondados e, naturalmente, o genial vagabundo, Carlitos. As cenas de correrias, os quiprocós, os pastelões causavam verdadeira histeria na meninada aos gritos, assovios e pateadas. Havia ocasiões em que as luzes se acendiam e, ao mesmo tempo, o silêncio, como num passe de mágica, se instalava. Truque de Meliès? Apagavam-se as luzes e tudo recomeçava. Eu procurava sentar isolado. Não era aluno. Tinha medo de ser posto para fora. Perder o espetáculo. Dizer que fiquei maravilhado é pouco. Criei uma verdadeira dependência, até hoje.

terça-feira, 29 de agosto de 2017



Cinema II

Quando saí de Manaus, em 1948, a cidade tinha seis cinemas: o Politeama (1904), o Guarani (1907), o Odeon (1913), o Avenida (1936) o Popular (1926) e o Éden. Creio que não existia mais o cine Manaus, dos salesianos, onde me iniciei.
O Avenida e o Odeon ficavam na Avenida Eduardo Ribeiro, o Politeama e o Guarani, nas esquinas da Avenida Getulio Vargas com Sete de Setembro. O Popular e o Éden ficavam na periferia. Todos desaparecidos na década de setenta.
Quando comecei a ir ao cinema na década de trinta no cine Manaus os filmes eram mudos. Algum tempo depois nas matinés do Politeama e do Guarani já eram falados. O Guarani teve um final retumbante. Mereceu até um livro “Hoje tem Guarany”, de Celda Vale da Costa e Narciso Julio Freire Lobo, de onde tirei parte dessas informações e confirmei minhas lembranças.
Os cinemas tinham duas sessões, uma as dezesseis horas e outra as vinte. Para crianças, havia sessões aos domingos: as nove e catorze horas.  Nessas sessões os filmes eram geralmente comédias ou de aventuras. Todo fim de ano passava a Paixão de Cristo. Os filmes de aventura eram cowboys e seriados, tipo Fu-Manchu. Não me lembro dos preços das entradas.  Os cinemas ficavam superlotados. A algazarra era infernal. Principalmente nas cenas de perseguições.
Lá pelos doze anos de idade não me ligava mais a esse tipo de filmes e frequentava as sessões das quatro horas da tarde, dos adultos. As sessões dos adultos começavam com um cine-jornal, trailers ou um documentário. Só depois é que vinha o filme principal. Era a época do star-system. Ninguém ia ver um filme do diretor ou produtor tal. Víamos um filme de Norma Sheare, de Bette Davis, de Joan Crawford ou de Tyrone Powell, Clark Gable ou  Frederich March. Ou então da Metro, da Universal da Fox, da Paramount ou Pathé.
Na crônica anterior, disse que o cinema tinha desenvolvido em mim uma verdadeira dependência. Sim. Mas não de cinéfilo de carteirinha. Daqueles que têm o filme absoluto, que o vêm cinquenta vezes por ano. Sabem de cor o elenco, cantam a música, vibram com as cenas de efeito. Oh! Não, não sou. Pois foram tantos os grandes filmes que vi, tantos os grandes diretores... como excluí-los para escolher apenas um? Me considero um cinemeiro. Isto é, aqueles que vão permanentemente ao cinema e se deliciam com filme e, pronto. Anos depois lembram que o filme é bom, recordam-se vagamente do tema, do diretor ou  dos atores. Principalmente se forem os da sua preferência. "Gilda", por exemplo.   

sexta-feira, 18 de agosto de 2017



Cultura de Almanaque

As primeiras lembranças que tenho da leitura como prazer, me vêm  da fazenda de meus avós. Lembro-me de tia Zulmira, sentada a mesa da sala de jantar, lendo fascículos de romances, sob a luz de  um candeeiro, para toda a família embevecida. Muito tempo depois soube que eram traduções de romances de Peres Escrich, Ponson du Terrail e, quem sabe de Alexandre Dumas com seu “Conde de Monte Cristo”, “O Colar da Rainha”, ou “Vinte Anos Depois”. Eram as novelas de então. Folhetins.

Um dia, ouvi minha tia-leitora dizer que quando se casasse e tivesse uma filha a batizaria com o nome de Mildred. Uma de suas heroínas. Não se casou. E estou certo de que morreu virgem. É pena. Embora preferisse que a minha inexistente prima viesse a se chamar Joaquina, Antônia ou Manuela.

Na casa da fazenda não havia estante de livros. E, segundo soube, meus avós maternos mal sabiam escrever o nome. Mesmo assim meu avô tinha uma Bíblia, que ainda hoje está em meu poder. Porque a Bíblia? Católico não lia a Bíblia naquela época. E, que eu saiba a religião da família foi sempre o catolicismo. Embora aqui e ali mesclado com um pouco de kardecismo, meu pai e um pouco de advinhos, minha mãe.

Na casa de meus pais, em Manaus,também não havia livros de literatura. Biblioteca. Só livros escolares. Meu pai era comerciário. Não sei qual era a sua escolaridade. Sua letra era muito bonita. Suas cartas corretamente escritas. Minha mãe nunca frequentou escola, mas aprendeu a ler e escrever. A educação das mulheres da família era do tipo prendas domésticas: cozinhar, costurar  e bordar. Enfatizando sempre uma dessas especialidades.

Creio que o gosto da leitura me veio de professoras do curso primário e secundário, D. Mundica Chevalier e Lia Garcia, respectivamente. O casal Garcia (Lia e Alfredo) me infundiram o gosto pelo francês (D.Lia era francesa) e ele pelo inglês (fôra criado por uma família inglesa, os Baird). Daí a minha preferência pelas línguas francesa e inglesa. No Colégio Santo Antônio, dos Garcias, havia sempre competições de composição entre os alunos e eu estava sempre entre os melhores.

O primeiro livro que li foi “Robinson Crusoé” de Defoe. Primeiro e único prêmio que recebi na vida. Porque? Não lembro. Foi no Instituto Universitário Amazonense, dos Chevalier. Unica lembrança do livro, os passos de Sexta-feira na areia da praia. Que medo! Nunca o reli. Foi dessa mesma época o meu interesse por uma coleção de livrinhos de histórias: “Ali-Babá e os quarenta ladrões”, tão atual,” O Chapeuzinho Vermelho”, “ Alice no País das Maravilhas”, eroticamente reinterpretado pelos escritores/psicanalistas de hoje. Me interessavam tanto os textos como os desenhos que os ilustravam. Depois veio a “Ilha do Tesouro”, de Stevenson. Como me chegou as mãos “O Coruja”, de Aluízio de Azevedo? Me comovi. Me apaixonei pelo livro. Lia devagar para não terminar. Daí em diante não parei mais: José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo, Manoel Antônio de Almeida...Machado de Assis.

Os poetas, li-os primeiramente nos livros escolares, em seguida nos almanaques. Daí a observação irônica de um colega de trabalho, dr. Barreto, que a minha cultura era de almanaque. Eu que nem sabia que tinha cultura. “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu, “Visita a casa paterna”, de Luís Guimarães Junior, “Via Láctea”, de Olavo Bilac e outros que em certos sábados éramos obrigados a recitar, de pé diante de toda a classe, ávida de erros para a gozação posterior. Que vergonha, meu Deus. Se a terra se abrisse ali, eu seria o primeiro a ser tragado.

Isso quer dizer que leio contínua e ininterruptamente desde a década de trinta. Quantos livros? Impossível dizer. De que serviu tanta leitura, se me sinto hoje tão ignorante como ontem. Não importa. Me deram muita emoção. Muito prazer. Conversei com muitos autores. Conheci muitos personagens: nobres, clérigos e plebeus. As vezes fico imaginando o prazer dos cegos lendo no escuro pela ponta dos dedos, porque o simples fato de tê-los nas mãos me sustenta, diverte e estimula.

segunda-feira, 7 de agosto de 2017


QUERMESSES


Os contos de Lygia Fagundes Telles falam muito do cotidiano. Em “Noturno Amarelo”, por exemplo, há um personagem, que está se preparando para ir a uma quermesse, onde as tias são barraqueiras. Imediatamente me lembrei das décadas de trinta e quarenta, do século passado, em Manaus, onde nos meses de dezembro, durante os festejos da padroeira da cidade, Nossa Senhora da Conceição, também havia  quermesses.
     
O que eram as quermesses? Eram festas que os paroquianos organizavam no adro das igrejas para arrecadar dinheiro para as paróquias. Armavam-se barracas para vender, rifar, leiloar prendas ou guloseimas, oferecidas pelos paroquianos. Aconteciam ao anoitecer, durante o novenário. Os leilões eram quase sempre feitos por pessoas divertidas e por isso muito concorridos.
     
Havia também barracas de jogos: tiro ao alvo, arco e flexa e pontaria, que consistia em atirar um aro para que ele caísse sobre um dos pinos metálicos espalhados num retângulo delimitado, os vencedores ganhavam prêmios. Bonecos, enlatados, brinquedos ou vidros de perfumes baratos ou latinhas de brilhantina. Conforme fosse o vencedor: marmanjo ou menino. Pois o espaço era quase sempre um clube de bolinhas.

   Mas as meninas também tinham as suas tarefas: vender prendas mais delicadas, como flores, que com um pregador colocavam nas lapelas dos paletós ou no peito das camisas dos rapazes. E eram nessas ocasiões que os olhares se cruzavam ou algum recado se confirmava, com o beneplácido das mães, que não os viam ou ouviam, mas tinham certeza que suas filhinhas estavam fazendo uma obra beneficente.
     
Eu ia sempre, pois minhas irmãs eram filhas de Maria. Mas não ficava preso as suas saias. Gostava de andar dum lado para o outro. Vendo tudo, comendo de tudo: bolo de milho, bolo de macaxeira, bolo de carimã, bebendo guaraná, ralarala, tacacá,  munguzá...provando de cada um a cada noite. Gostava principalmente de subir e descer correndo as escadarias da Matriz. Suando em bicas pois, no mês de dezembro o calor lá é “amazônico”.
      
Mas o que não podia faltar na quermesse eram as marchas, xotes e dobrados da Banda de Música da Polícia. Bonito mesmo eram as valsas vienenses, como vim saber mais tarde: Danúbio Azul, Contos dos Bosques de Viena... Ao ouvi-las minha cabeça ficava rodopiando, rodopiando... Havia até alguns desinibidos que saiam aos pares volteando, volteando, num verdadeiro vai da valsa. E como iam! Bons tempos, bons tempos aqueles, como diria hoje o Chico Buarque, bons tempos.

domingo, 9 de julho de 2017



SÁBADOS DE POESIA

Quando comecei a frequentar a escola, em Manaus, aos oito anos de idade, já sabia ler e escrever regularmente. Nesse tempo, a alfabetização, de um modo geral, era feita por professoras que mantinham em suas casas cursos para essa finalidade. Ou em casa, com algum familiar.  Meu caso.

O ensino era dividido em primário, secundário e superior. A língua portuguesa era ensinada no primário e no secundário por um só professor: gramática, leitura e redação. Os livros traziam textos dos grandes escritores portugueses e brasileiros que eram lidos em voz alta e dos quais eram feitos ditados. Aos sábados, havia sabatina ora de verbos ora de tabuada, apanhei muito nestas, pois as sabatinas eram acompanhadas pelo som das palmatórias.

Fiz esses cursos em três escolas: Liceu Sarmento (que fechou no fim do ano que eu entrei), Colégio Rayol e Instituto Universitário Amazonense.  Mensalmente havia prova de redação: narração, descrição ou dissertação. Algumas vezes, eram apresentados quadros (creio que de pintores famosos) para que os interpretássemos por escrito.  Os três melhores trabalhos eram lidos para a classe pelo autor...

Em sábados, predeterminados, tínhamos que recitar uma poesia, de cor, em pé, diante de toda a classe e professores. Eu era (era?) muito tímido e isso era um suplício para mim. Mas era um suplício prazeroso, pois esperava esses sábados com certa ansiedade. Há dias, conversando com um amigo sobre nossas experiências escolares, ele perguntou se ainda me lembrava de algumas dessas poesias. Sim. Não de cor, é claro. Sempre fui de muitas lembranças e pouca memória. E isso são fatos do século passado, imagina!

Eu sempre dizia os sonetos: “Visita a casa paterna”, de Luis Guimarães Júnior e “O Acendedor de Lampiões”, de Jorge de Lima, até ser criticado publicamente por um professor. Daí então emudeci. Detalhe: ai daquele que não soubesse o nome do autor. A que eu mais gostava era,  na verdade, o soneto de Jorge de Lima: O Acendedor de lampiões de ruas:

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, três lampiões, acende e continua
Outros mais a acender imperturbavelmente,
À medida que a noite aos poucos se acentua
E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita: –
Ele que doira a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua
Crenças, religiões, amor, felicidade,
Como este acendedor de lampiões da rua!

quinta-feira, 22 de junho de 2017


FLORES PARA LOS MUERTOS


Há muitos, muitos anos, para falar a verdade,  no século passado,comecei (mas, como  sempre, não terminei)  um curso de espanhol, no Instituto Brasileño de Cultura Espanica, no Rio de Janeiro, na rua Álvaro Alvim,  ao lado do Teatro Dulcina. A professora, Emília Navarro era, como na marchinha de João de Barros, natural da Catalunha. Diziam no curso que ela era uma autoridade em Cervantes. Quando algum intelectual brasileiro precisava de qualquer informação sobre o cavalheiro da triste figura, era a ela que procuravam. O que me parecia era que ela sabia tudo, mas tudo mesmo, sobre literatura de língua espanhola.

Foi por causa dela que li alguns autores de Espanha e espanamérica. Os poetas sobretudo me encantaram com seus ritmos de tons fortes, dramáticos, declamatórios. Alguns desses versos ficaram-me martelando na cabeça até agora, mais de meio século depois. Por exemplo, estes que não consigo me lembrar de quem são:
             
               “Mamita, yo quiero um barco
                No me lo niegues a mi.”

A imprecação dessa criança pedindo um barco a sua mãe marcou-me profundamente. Eu que sempre achei que “navegar é preciso.”
       
Nunca fui cavaleiro, mas acho que um dos animais mais bonito e  elegante é – o cavalo. Não poderia deixar de admirar estes versos do poeta colombiano, José Santos Chocano:

           “Los caballos eran fuertes!
            Los caballos eran agiles!
            Sus pescuezos eran finos y sus ancas
            Relucientes y sus cascos musicales...

            Los caballos eran fuertes!
            Los caballos eran agiles!

Ou a voz meio rouca e meio máscula de Emília dizendo excertos do dramático poema de Federico Garcia Lorca, “ Llanto por Ignácio Sánchez Mejías”

         “Cuando el sudor de nieve fue llegando
          A las cinco de la tarde
          La muerte puso huevos em su herida
          A las cinco de la tarde.
          A las cinco em punto de la tarde.”

Mas a expressão espanhola que mais me marcou mesmo,  foi a de uma personagem da peça de Tennesse Williams – “Uma rua chamada pecado”. É apenas uma figurante. Uma velha atriz, talvez contratada na Casa dos Artistas, para faturar um pequeno cachê. Mas que atriz! E o papel dela é apenas este: passar em frente a casa da perturbada Blanche Du Bois, oferecendo:

              “Flores para los muertos.
              Flores para los muertos.”

Pena que não tenha guardado também o nome dessa extraordinária atriz. Que há tantos anos depois ainda enche os meus ouvidos com a sua voz clara, serena, antecipando com seu timming dramático o destino da Bu Bois, uma metáfora para o destino de todos nós “Flores para los muertos...”

sexta-feira, 26 de maio de 2017



A casa dos três telhados


A casa foi construída numa pequena elevação  de terreno. Aberto o portão,  sobe-se por uma rampa e vai-se até o primeiro quadrado, coberto de telhas de barro, que tanto pode ser garage, sala-de-estar ou varanda para se armar belas redes de embalar. Na parte da frente e dos lados, um jardim agreste. Chão de cimento. Compridos bancos de madeira de ambos os lados. Pedaços de vidro coloridos decoram a única parede de tijolos aparentes dessa ante-casa. As telhas brique, as vigas negras têm nuances inusitadas, a luz dos vários momentos do dia.

Se a casa é o que esconde, entra-se nela por uma porta dupla: a primeira de treliças e a segunda de vidro. Ambas de correr. Aberta a porta entra-se no segundo quadrado. A passagem de um para o outro é protegida pelo encontro de dois telhados. No primeiro quadrado da casa, propriamente dita, encontram-se três ambientes: sala de visitas, sala de refeições e       cozinha. Uma janela de cada lado. A meia parede da frente, como a da varanda, é decorada com pedaços de vidro coloridos. Nas cavidades obras de artesanato: barro, louça, cobre. Num recanto improvisou-se um armário. Livros. Diante do sofá uma velha mala de couro serve de arca e mesa. Os tapetes de rodelas de panos, formando intrincados arabescos. A mesa de refeições é ladeada por dois compridos bancos. Poucas cadeiras. Tudo rústico. Mas usado. Mesa marcada pelo calor dos alimentos; os bancos e as cadeiras pelo calor dos corpos. Chão pisado, andado, lavado, varrido. Casa realmente habitada.

O segundo e terceiro quadrados se encontram. Liga-os o banheiro e um corredor de saída lateral. No terceiro quadrado, tem-se uma sala de estudos – mesa, cadeiras, estantes – e três quartos – camas, armários, espelhos, janelas. A casa que antes era pública, depois comum, aqui, torna-se íntima, secreta, nupcial. Está tão perto e ao mesmo tempo tão distante, que se vai lá apenas para colher ou se recolher. Na parede da saleta de estudos ele incrustou uma porta (ou janela?) de madeira, que o mar atirou na praia. Aliás, na casa, o mar é uma presença auditiva, olfativa e táctil. O quebrar das ondas na praia, o cheiro da maresia e no corpo o frescor da brisa constante.

Esta é a casa dos três telhados. Ele a imaginou, projetou e construiu. Telha a telha, tijolo a tijolo, viga a viga. A mulher mora na casa mas quem a habita é ele. Seu silêncio escorre pelas paredes, aprisiona-se na gaiola sem pássaro, concretiza-se nos painéis de ladrilhos. Madeira em madeiro reduzida, argila em telhas e tijolos acolhida, cantar de ondas pela brisa trazido, acalanto para Mariana dormida. Esta é a casa de Madeira, Angélica, Mariana.

quinta-feira, 4 de maio de 2017



VENTO LOUCO, VENTO LOUCO

 O que é o vento? Diz o dicionário, que é ar em movimento. Corrente de ar resultante de diferenças de pressão atmosférica, provocadas, na maioria dos casos, por variações de temperatura. E que existem ventos gerais e locais. Os gerais são os alísios, soprando periodicamente das regiões temperadas para a região equatorial; e monções, soprando regularmente em determinada direção, numa estação do ano, e em sentido contrário noutra época do mesmo ano. Os locais são muitos. Registrei apenas aqueles que a literatura me apresentou e praticamente os transformou em personagem, como: o frio mistral francês; o terreal que sopra da terra para o mar; o simum, quente e abrasador na África do norte; o siroco, aquecendo o mediterrâneo; e o cortante minuano, que me fazia tremer de frio, lendo os romances de Érico Veríssimo, em Manaus ou a lembrança de minha mãe nos dias de ventania, segurando a saia e andando pela casa, exclamando para si mesma: vento louco, vento louco...
       
A simples mensão da palavra, vento, me lembra logo o mar, ondas, marés, jangadas e barcos a vela. É lírico e trágico, de vez em quando. Ele é sempre matéria de poesia. Está frequentemente presente em Cecília, em Quintana e até em Thiago de Mello, que tem uma coleção de seus poemas intitulada – “Ventos Gerais”, e nela um poema chamado, “Barcos e ventos” que por muito bonito transcrevo:

Estimo o velejar fácil
de barca singrando o rio
sem qualquer ânsia de porto.
No singrar já se compraz.

Além do singrar, desejo
ouvir o rumor do vento
que agita o mar e saber
a que rumo ele me impele.

Ai, triste é ser como búzio
que, fabulário, resguarda
em seu côncavo o murmúrio
do mar a que pertenceu,
no entanto jamais se escuta.      

Mas, a que vem toda essa lenga lenga sobre ventos? Claro, os que sopram nesses “bros” sobre Fortaleza. Dizem as autoridades que eles têm uma velocidade média de 28 quilômetros, com rajadas de até 70 quilômetros por hora, amenizando o calor, mas provocando muitos incêndios. Antes, havia também as "chuvas do caju”. Porque se acabaram? Esse vento de setembro, outubro e novembro, que parece não ter sido batizado ainda, só serve para derrubar no nascedouro, mangas e maturis e assustar os velhinhos em suas tocas. Ele surra tão forte as janelas do meu apartamento e urra tanto  em suas frestas, que até já o apelidei de “apartamento dos ventos uivantes”, com o perdão, é claro, de Emily Brontë. 

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