Na obra “Alfaiates e Costureiras: Um olhar
sobre o engenho da agulha e do dedal” (2008), da autoria de Ana Durão Machado e
editado pela Câmara Municipal de Santiago do Cacém, assegura-se que “A arte da
confeccção do vestuário” é “uma das mais antigas actividades humanas”.
O termo alfaiate vem do árabe al-kaiat,
remontando as primeiras referências sobre a função no nosso país ao século XII.
Decorridos duzentos anos, o desempenho de alfaiate estava representado na Casa
dos Vinte e Quatro sendo obrigatória a presença destes artífices nas
procissões, como a do Corpo de Deus, porque as confrarias religiosas
regulamentavam a actividade de profissionais e aprendizes.
No século XIX as associações profissionais
substituíram as antigas confrarias e as mulheres passaram a integrar as
oficinas de alfaiate. Nos anos 70 do século XX as lojas de pronto-a-vestir
contribuíram para o declínio do ofício hoje quase em extinção. (Machado, 2008:6-7).
Natural de Alcafozes, Delfim Correia completou
o ensino primário, em Idanha - a - Nova, sede do Concelho, a 13 km. “Quando fiz
o exame da quarta classe, eu sabia a Geografia, a História de Portugal, as
Ciências, etc.”
Os pais trabalhavam no campo e “Andavam a
vender loiça vidrada, com a carroça e machos” e o jovem Delfim “andava a vender
com eles nas férias.”
Mais tarde, “Já tinham uma carrinha…A
minha mãe tirou a carta, era uma mulher determinada!”
E enquanto os pais iam para as feiras e
“dormiam aqui e acolá, como os nómadas” o miúdo ia às feiras, com eles, também
participava nas vendas. Todavia, chegou a ficar em casa, enquanto os pais
procuravam o sustento. “Eu lá ficava sozinho com a candeia de azeite, uma
torcidazinha. Depois mais tarde, veio o petróleo. Na província era assim!”
Os pais na altura pensaram que “para ele
não ir para o campo, podia ir aprender um ofício. A única solução que eles
achavam que era boa era os Alfaiates. Aprendia a costura e também barbeiro (os
alfaiates ao fim de semana cortavam o cabelo). Estive num que também arrancava
dentes com a turquêz. Hoje os jovens não sabem nem imaginam como era a vida na
província naquele tempo, que não havia luz eléctrica, nem outras coisas
necessárias, era uma vida difícil que a gente passava!”
Ao longo desta conversa, Delfim Correia,
revelando a cultura aprendida na experiência vivida e nos livros que gosta de
ler, com notável memória foi contando os enredos da sua história de vida.
Quisemos saber quanto tempo fez a aprendizagem do ofício. Mestre Delfim foi aprendiz
dos doze aos dezasseis anos, tendo estado em três alfaiates, tantos quantos
existiam na sua terra. Esteve num, onde aprendeu a fazer “casas” (o sítio para
meter o botão). “Ele punha-me o cabresto para o dedo aguentar dobrado…Cabresto
era o que se punha aos burros e machos”, esclarece, acrescentando: “Ele atava
ali e o dedo já não abria…No segundo, aprendi a barbeiro. Os clientes
trabalhavam nos campos e só no fim - de - semana, ou seja no sábado é que iam
ao barbeiro cortar o cabelo e fazer a barba mas ninguém queria ir para o rapaz
até que apareceu um velhote cheio de coragem “Faz aqui a barba, corta à
vontade, não tenhas medo, faz como sabes!” A partir daí já todos queriam ir
para o rapaz, perderam o medo.”
“Havia três alfaiates, dois deles também eram
barbeiros”, recorda. “O último foi com quem aprendi.”
Fazia serões nas festas, até às tantas,
conta. “O meu pai, ao fim de três anos, teve de pagar setecentos escudos. Tenho
a impressão que ainda tenho a cadeira de barbeiro, lá na terra…Depois, com dezassete
anos, os meus pais - por portas e travessas - lá arranjaram um conhecimento em
Santarém. Um dos melhores alfaiates de lá. A minha mãe fez a mala, com uma
roupinha…”Quando chegares, desces do comboio, que há-de lá estar alguém à tua
espera.”
Provavelmente não teria andado de comboio,
se não fosse a necessidade de se especializar, pois havia dificuldades em tudo,
nota.
“Lá estava uma senhora, à minha espera e
a chamar por mim: “Delfim, Delfim!” O marido era alfaiate.”
Esteve um ano em Santarém, cidade da qual
gostou muito; arranjou amigos, conhecidos. Ao fim de um ano meteu-se no comboio
a caminho de Lisboa.
“Tinha morada de alfaiate que trabalhava a
obras [Trabalhavam em casa, faziam as obras para lojas] Era tudo feito por
medida. Andei nos oficiais a obras. Arranjei quarto em Campolide. Vinha a pé
para a Baixa porque não havia dinheiro para transportes.
Tinha aqui uns tios deste lado. Eu não
gostava muito de Lisboa, mudei para Almada. Com 18 anos quase 19 não me
alimentava bem, adoeci, voltei à terra, para os pais. Recuperei, voltei para a
cidade. Arranjei uma senhora da terra, pagava a pensão.
Depois, abriu a Fábrica “Confecções Tejo”,
em Almada, onde conheci a minha esposa. A minha esposa é de Moura e eu sou da
Beira Baixa. Conhecemo-nos na costura. Ela era minha aprendiza. Trabalhei nas
“Confecções Tejo”, até que passei a trabalhar na Cova da Piedade (Lãs Labete),
com o senhor Sebastião.”
Mestre Delfim contou que algum tempo
decorrido passou a laborar no “Rodrigues & Rodrigues”, no Largo de São Paulo,
em Lisboa. Faziam tudo. “Fui o oficial escolhido para fazer os fatos por
medida.”
Posteriormente, “os meus pais compraram
uma máquina e viemos trabalhar a obras para casa. Vinham a minha namorada e
outras raparigas.
Casei com 23 anos, aluguei uma casa e nela
desenvolvi a arte de alfaiataria. Arranjei loja de alfaiataria. Naquela altura
não estava parado.”
Ao perguntamos quantos metros de tecido
transformou em fatos, responde que na época em que o ofício não tinha a
concorrência do pronto - a - vestir, “por semana e por mês era capaz de fazer
20 a 30 fatos à medida.
Foi um dos fundadores do “Solar dos Leões
de Almada”, em 23 de Julho de 1969, o prestígio que granjeou está visível nas
fotografias antigas que guarda e mostra ao entrevistador: Numa, Eusébio e
Hilário, ídolos do desporto português, aparecem na sua loja. Noutra, a filha de
Romeu Correia destaca-se na mesa de um convívio gastronómico.
Leitor assíduo “Gosto muito de Poesia e
História”, o senhor Delfim também gosta de ler a Bíblia,
contando que se baptizou como testemunha de Jeová em 1973.
No final da entrevista, o nosso
interlocutor recorda que começou no seu ofício de alfaiate aos 12
anos. Tendo completado 79 anos, Mestre Delfim Correia quer continuar “enquanto
tiver boa disposição.”
Luís Filipe Maçarico (texto e fotografias)
(*) Artigo divulgado na revista nº 25 da Aldraba, Associação do Espaço e Património Popular