Preocupa-me sobremaneira o que se passa em
todos os centros históricos das aldeias, vilas e cidades do país.
O Alentejo, em particular, entristece-me,
porque tal como os restantes lugares do país, está a perder referências
identitárias no seu património.
Falo de pormenores, quase imperceptíveis. De
aldrabas e batentes, idealizados por velhos ferreiros desaparecidos, que não
deixaram seguidores.
Por todo o lado, a porta de alumínio foi
ganhando terreno, invadindo ruas, becos, travessas, largos, onde era suposto
ser apoiada a porta de madeira e ostentar a jóia moldada na oficina de um
Mestre, que se troca por materiais que desvalorizam os lugares.
As Câmaras deixaram de ter gabinetes técnicos
locais (GTL), cujas regras de construção e técnicas arquitectónicas eram
acatadas. Houve manuais para construtores e estudos em escolas, que defenderam
a preservação de um trabalho genuíno, respeitador da herança, que encantava os
visitantes.
Não se concebe uma porta manuelina em
Montemor-o-Novo, com alumínio lacado branco, verdadeiro corpo estranho e
agressivo no contexto do chamado casco antigo da terra. Ou portas de uma cor e
janelas de outra, que vão abundando aqui e além. Ou a multiplicidade de
alumínios (castanhos, verdes, brancos, prateados brilhantes) numa mesma
artéria, de um qualquer lugar outrora repleto de rincões icónicos.
Numa ocasião em que se pretende elevar a
património mundial alguma da melhor imaterialidade que se concebe no sul, seja
o cante, sejam os chocalhos, não se entende o alheamento, a falta de cuidado
com outros patrimónios.
A título de exemplo, recordo que em
Alpedrinha (Beira Baixa), um palácio icónico foi restaurado. A recuperação
muito aceitável, teve contudo um aspecto sofrível: portas de vidro, com um
puxador, que uma amiga definiu desta forma: “Este puxador faz-me lembrar as
portas dos contentores onde eu vendia andares no Feijó!”
Há pequenos “nichos” de permanência da
tradição, onde, a aldraba coexiste com a campainha. Porque para os residentes,
o bater da velha aldraba (associada a um trinco que abre e fecha a porta,
rodando, ao invés do batente comum, imóvel, 180 graus), anuncia alguém que pelo
toque se conhece.
Há igualmente quem se lembre de na infância
tocar naquele utensílio, afinal biográfico, porque o/a acompanhou ao longo da
vida.
A desertificação de um lugar, o território
esvaziado de pessoas, começa com o apagamento das referências, criando imagens
do vazio, como já sucede em aldeias fantasmas, adaptadas a apartamentos de
unidades hoteleiras especiais (casos de Sortelha, Beira Alta ou Cacela Velha,
no Algarve).
Certamente não se deseja isso para um
território que nos orgulha, pelas histórias de vida, pela riqueza cultural,
pelo pequeno património quase invisível, tão importante.
Será que os Autarcas vão ler isto e vão
preocupar-se, num tempo em que as pessoas sofrem com tantos cortes e perdas?
A perda do património, porém, é o começo do
fim.
É tempo do Poder Autárquico dito Democrático
preocupar-se com estas destruições, tentando estancar a sangria desatada do
Património Imperceptível, cada vez mais gritante e actuar, tomando as medidas
que possam evitar o desaparecimento completo de utensílios e recantos que
durante séculos foram sendo transmitidos de geração para geração.
Que Alentejo - em termos de geografia humana
- vamos legar aos alentejanos do futuro?
Luís Filipe Maçarico
(Antropólogo)
[Publicado na revista ALENTEJO, nº 37, Dezembro 2014/ Maio 2015, páginas 32-33.]
Preocupa-me sobremaneira o que se passa em
todos os centros históricos das aldeias, vilas e cidades do país.
O Alentejo, em particular, entristece-me,
porque tal como os restantes lugares do país, está a perder referências
identitárias no seu património.
Falo de pormenores, quase imperceptíveis. De
aldrabas e batentes, idealizados por velhos ferreiros desaparecidos, que não
deixaram seguidores.
Por todo o lado, a porta de alumínio foi
ganhando terreno, invadindo ruas, becos, travessas, largos, onde era suposto
ser apoiada a porta de madeira e ostentar a jóia moldada na oficina de um
Mestre, que se troca por materiais que desvalorizam os lugares.
As Câmaras deixaram de ter gabinetes técnicos
locais (GTL), cujas regras de construção e técnicas arquitectónicas eram
acatadas. Houve manuais para construtores e estudos em escolas, que defenderam
a preservação de um trabalho genuíno, respeitador da herança, que encantava os
visitantes.
Não se concebe uma porta manuelina em
Montemor-o-Novo, com alumínio lacado branco, verdadeiro corpo estranho e
agressivo no contexto do chamado casco antigo da terra. Ou portas de uma cor e
janelas de outra, que vão abundando aqui e além. Ou a multiplicidade de
alumínios (castanhos, verdes, brancos, prateados brilhantes) numa mesma
artéria, de um qualquer lugar outrora repleto de rincões icónicos.
Numa ocasião em que se pretende elevar a
património mundial alguma da melhor imaterialidade que se concebe no sul, seja
o cante, sejam os chocalhos, não se entende o alheamento, a falta de cuidado
com outros patrimónios.
A título de exemplo, recordo que em
Alpedrinha (Beira Baixa), um palácio icónico foi restaurado. A recuperação
muito aceitável, teve contudo um aspecto sofrível: portas de vidro, com um
puxador, que uma amiga definiu desta forma: “Este puxador faz-me lembrar as
portas dos contentores onde eu vendia andares no Feijó!”
Há pequenos “nichos” de permanência da
tradição, onde, a aldraba coexiste com a campainha. Porque para os residentes,
o bater da velha aldraba (associada a um trinco que abre e fecha a porta,
rodando, ao invés do batente comum, imóvel, 180 graus), anuncia alguém que pelo
toque se conhece.
Há igualmente quem se lembre de na infância
tocar naquele utensílio, afinal biográfico, porque o/a acompanhou ao longo da
vida.
A desertificação de um lugar, o território
esvaziado de pessoas, começa com o apagamento das referências, criando imagens
do vazio, como já sucede em aldeias fantasmas, adaptadas a apartamentos de
unidades hoteleiras especiais (casos de Sortelha, Beira Alta ou Cacela Velha,
no Algarve).
Certamente não se deseja isso para um
território que nos orgulha, pelas histórias de vida, pela riqueza cultural,
pelo pequeno património quase invisível, tão importante.
Será que os Autarcas vão ler isto e vão
preocupar-se, num tempo em que as pessoas sofrem com tantos cortes e perdas?
A perda do património, porém, é o começo do
fim.
É tempo do Poder Autárquico dito Democrático
preocupar-se com estas destruições, tentando estancar a sangria desatada do
Património Imperceptível, cada vez mais gritante e actuar, tomando as medidas
que possam evitar o desaparecimento completo de utensílios e recantos que
durante séculos foram sendo transmitidos de geração para geração.
Que Alentejo - em termos de geografia humana
- vamos legar aos alentejanos do futuro?
Luís Filipe Maçarico
(Antropólogo)
[Publicado na revista ALENTEJO, nº 37, Dezembro 2014/ Maio 2015, páginas 32-33.]